Os donos do maior Carnaval de África, o futuro e os clichés do costume (I)

PorJosé Almada Dias,19 mar 2019 6:20

​Reza a História que, após a independência do Brasil em 1822, os intelectuais, artistas e jornalistas desse país irmão decidiram que era hora de cortar com as festas do Entrudo, de origem portuguesa, por o considerarem uma festa “atrasada” e grosseira. O Entrudo (palavra derivada do latim introitus e que significa ‘entrada, início’, nome com o qual a Igreja denominava o começo das solenidades da Quaresma) tinha sido levado para as terras de Vera Cruz em 1723 por portugueses das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde, muitos deles judeus em fuga da Inquisição.

Para substituir as festas do Entrudo, os intelectuais brasileiros foram buscar o exemplo dos sofisticados bailes e desfiles de corso dos Carnavais de Paris e de Itália, marcando uma ruptura total com as tradições anteriores.

Ao tomarem esta histórica decisão, esses intelectuais, artistas e jornalistas da época estariam longe de pensar que iriam dar o mote para a criação da maior festa de origem popular do planeta, hoje a espalhar-se por todo o mundo à velocidade da globalização. Basta ver o Carnaval que os japoneses fazem há já alguns anos em Tóquio, com ritmos, plumas e roupas importados do Brasil.

O Carnaval é hoje o maior evento cultural do mundo e transformou-se numa verdadeira indústria, com efeitos positivos directos no sector das viagens e turismo, que, por sua vez, arrasta a economia dos países em que festa do Rei Momo é cartaz turístico.

Presumo que, quando fina flor da elite brasileira tomou a decisão de importar os modelos francês e italiano, terá havido debates e vozes contra. A mudança traz sempre resistências e, nesse caso, tratava-se de substituir uma festa popular de rua por uma festa mais sofisticada, cara e ao alcance de muito poucos.

Quer parecer-me que estaremos a viver um momento semelhante (em parte) em Cabo Verde, a julgar pelos debates nas redes sociais e nas ruas acerca do futuro do Carnaval no nosso país, particularmente nas ilhas de São Vicente e de São Nicolau, onde a festa há décadas envolve as respectivas sociedades locais e já tem pergaminhos de cartaz turístico. O Carnaval do Mindelo, o maior evento cultural do país, foi considerado este ano o maior Carnaval de África, o que não é de surpreender. E é nesta ilha que se notaram algumas tensões, particularmente no seio da LIGOC, a associação criada pelos grupos carnavalescos ditos “oficiais”, seguindo o exemplo do que existe no Brasil, que possui o Carnaval mais bem organizado e mediático do planeta.

São debates normais que fazem parte do crescimento e que mostram, sobretudo, um espírito de cidadania activo e atento, muito característico das gentes da cidade do Mindelo, uma cidade que nasceu democrática e habitada por gente livre ligada ao sector privado e aos negócios internacionais.

Algumas decisões tomadas pela LIGOC não caíram bem a muita gente, e daí até se gerar uma verdadeira “novela carnavalesca” nas redes sociais foi um passo: polémica por causa da aceitação de mais um grupo no desfile “oficial” de terça-feira, controvérsia sobre a localização das bancadas, gritaria porque as bancadas pagas estão a retirar espaço aos mais desfavorecidos, manifestação por não haver bancadas suficientes para os que podem e querem pagar, ou seja, houve de tudo um pouco neste Carnaval 2019, que teve vários Carnavais paralelos.

Um dos debates mais interessantes gerou-se à volta da argumentação usada por muitos de que o Carnaval é do povo e que as decisões da LIGOC estariam a contrariar a “soberania” popular da festa.

Presume-se que essa designação de povo se refere às pessoas das classes mais desfavorecidas, pelo menos pela forma como é utilizada nos debates. E aqui reside a primeira confusão conceptual: uma festa ser de origem popular não significa automaticamente ter tido origem no seio das classes mais desfavorecidas da população.

E o caso do Carnaval demonstra claramente isso: estamos a falar de uma festa de origem elitista, mas que acabou por ser apropriada por todas as camadas da população, desde a Grécia Antiga, passando por Veneza, por França (onde era o próprio rei Luís XIV que organizava os bailes de Carnaval), até chegar à América Latina, onde, com o tempo, os senhores foram permitindo aos escravos participarem nas comemorações, terminando na decisão dos intelectuais do Brasil em imitarem os sofisticados bailes e desfiles com corso de Paris e de Veneza.

Portanto, não entendo como é que nos dias de hoje estamos a tentar ressuscitar uma eventual “luta de classes” entre a burguesia e o proletariado no Carnaval mindelense, até porque ela nunca existiu por cá nesta festa democrática em que todos participam.

De todo o modo, embarcando no espírito satírico próprio da festa, não posso deixar de dizer que os apaixonados pronunciamentos que vi membros da elite mindelense fazerem em defesa do povo me fizeram recordar a conhecida novela brasileira que tinha o personagem Sassá Mutema, o “chapéu do povo”!

Houve ameaças mais ou menos veladas a antever uma possível manifestação popular para tomar de assalto as famigeradas bancadas! Eita, que temos por aí gente com vocação de Capitão Ambrósio!

Toda a gente acha normal que se pague para ir ao teatro e ao futebol. Nos primórdios, em Cabo Verde, tudo isso começou por ser grátis. Quando se jogava futebol e cricket na zona de Salina (hoje, Praça Estrela), ninguém cobrava entrada. Mas já na década de 50 já se cobravam bilhetes no então Estádio da Fontinha, segundo relatos de pessoas mais velhas. Se hoje todo o mundo paga para ver desporto e teatro, porque não havemos de pagar para ver um espectáculo que exige muito maior investimento?

O Rio de Janeiro teria as receitas que tem se não cobrasse e bem pelo seu Carnaval? O povo carioca é contra?! Acho que não, preferem antes ganhar dinheiro com o Carnaval, aproveitando as oportunidades de negócio e os postos de trabalho criados.

Vi muitas frases do tipo “o Carnaval é do povo e para o povo”. O que quer isso dizer? Quem é essa entidade povo que é dona do Carnaval? Se essa denominação significa as classes menos abastadas da população, e se são os donos da festa, vamos tentar esmiuçar o contributo que dão para a mesma. E aqui é que a porca torce o rabo, passe a expressão: é que, por muito que me esforce, não consigo descortinar a contribuição que as empregadas domésticas, os estivadores e outros membros dessas camadas da população dão ao Carnaval, para além de cumprirem o seu papel de espectadores que apreciam de forma ordeira todos os eventos que se fazem nesta ilha. Não são eles que se vestem nos grupos, porque fica além das suas possibilidades financeiras. Também não são eles que andam à procura dos indispensáveis patrocínios nem são os donos nem gestores das empresas que financiam os grupos. Em que ficamos? Estaremos a falar da participação da população nos grupos denominados espontâneos? Serão esses grupos que atraem as multidões que todos os anos se acotovelam para ver os desfiles? Sobre esta última questão, falaremos na segunda parte desta crónica.

Na realidade, sabemos todos quem é que mete a mão na massa. São os líderes dos grupos, que mobilizam os artistas e os músicos, que organizam os grupos e que não dormem o ano todo para angariar patrocínios junto das empresas para pôr na rua um espectáculo tão grandioso e completo. Há um nome que descreve essa gente: são a elite, uma palavra que foi banida e quase proibida no pós-independência, substituída pelo populista e demagogo camarada.

Mantendo o espírito carnavalesco, será que a utilização da palavra povo não passa de um disfarce para os conceitos anteriores de proletariado, massas trabalhadoras, etc.?!

Sente-se esse cheiro a milhas de distância, quase que tresanda apesar do disfarce (que não é carnavalesco, mas sim ideológico, para mal dos nossos pecados). Mas estamos em democracia e cada um tem direito à ideologia que bem entender e no Carnaval ninguém leva nada a mal.

Apraz-me perguntar: foi o povo que há 30 anos criou o grupo Samba Tropical, que mudou para sempre o paradigma e a qualidade do Carnaval mindelense e, por arrastamento, o das outras ilhas? É o povo que organiza e desfila nesse grupo que trouxe glamour, sofisticação, brilho e ote level ao nosso Carnaval e que fez com que os outros grupos elevassem o nível?! Não foi de todo, foi sim uma feliz iniciativa das elites mindelenses (tal e qual no Brasil pós 1822).

A meu ver, dizer que o Carnaval é do povo, diluindo o esforço de uns poucos que são quem faz tudo, fica perto de ser desrespeitoso! Diz muito da falta de consideração com que tratamos os que, de forma abnegada, se esforçaram ao longo dos anos, trabalhando com afinco e sem remuneração para que todos (incluindo o povo e os seus defensores) usufruíssem, de graça, de manifestações culturais de envergadura internacional que hoje nos orgulham a todos e que projectam o país além-fronteiras (e que ainda têm de ouvir críticas duras e até maldosas quando as coisas não agradam a esses espectadores).

Mas como é Carnaval, no fim tudo não passou de novelas carnavalescas nas redes sociais, e a população mindelense deu como é hábito uma lição de civismo, tendo a festa decorrido com o brilho e a animação do costume. E o povo, alheio a todo este debate, curtiu a festa comme d’habitude e regressou para casa tranquilamente à espera que alguém lhe prepare a edição do próximo ano e pague as dívidas deste ano. Por que se há quem goste de ver luxo e glamour no asfalto é a população, sem querer saber a proveniência, que isto de ditados populares – quem quiser luxo, que lhe custe – não se aplica por cá.

Na segunda parte desta crónica, continuaremos a nossa viagem pelos debates do Carnaval 2019, abordando temas como o ressuscitado cliché da imitação do Brasil, o Carnaval genuinamente cabo-verdiano anunciado em São Nicolau, entre outras preciosidades carnavalescas.

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 902 de 13 de Março de 2019.

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Autoria:José Almada Dias,19 mar 2019 6:20

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  19 mar 2019 6:20

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