Uma boa oportunidade para eu escrever a minha primeira crónica sobre a capital do meu país. Satisfaço, assim, uma solicitação que há muito me faziam os meus amigos de infância e adolescência praienses, a quem normalmente respondo que gosto de escrever sobre o que conheço... a Praia Maria dos nossos dias teve um crescimento tão grande e modificou-se de tal forma que não me sentia habilitado a analisar o fenómeno. Mas, tendo recentemente passado alguns meses na capital, por razões profissionais, acabei por ganhar algum conhecimento de causa, por isso aqui vamos...
A forma como nascem as cidades pode ser determinante para o seu futuro. Lembro-me de uma crónica magistral, denominada Metropolis, escrita por Rosário Luz neste jornal há alguns anos, em que a autora dizia que a nossa capital acabou por transformar-se “num pequeno condomínio administrativo alimentado por um pequeno comércio subsidiário”. De facto, a cidade capital de Cabo Verde foi durante muitas décadas uma cidade administrativa, habitada principalmente por funcionários públicos.
Foi essa Praia altamente elitista que eu conheci na minha infância, ainda antes da independência. Uma cidade que não era propriamente de hábitos democráticos. Lembro-me de praienses mais velhos a contarem como, por exemplo, a praia conhecida por Prainha era uma autêntica praia privada, onde o povo não se atrevia a pôr os pés.
A juntar a todos esses factores, um outro ainda mais relevante: a orografia da cidade. As cidades são normalmente construídas à volta de uma zona baixa, denominada down-town pelos anglo-saxónicos, para onde geralmente convergem as populações para trabalhar, para tratar dos seus assuntos e também para o lazer colectivo.
A cidade da Praia nunca teve uma down-town, muito pelo contrário. A sua localização no cimo de um pequeno planalto transformou-a numa fortaleza quase que inacessível aos habitantes das classes mais desfavorecidas, que residiam nas zonas baixas. Assim se formou uma cidade constituída por uma classe privilegiada, que vivia “riba Praia”, e os restantes, que ocupavam “baxu Praia”. Ainda hoje, muitas pessoas continuam a dizer que “vão à Praia” quando se deslocam dos restantes bairros para o Plateau.
Com este conjunto de factores adversos, a cidade desenvolveu-se com especificidades muito próprias, pouco recomendáveis para a convivência democrática entre segmentos populacionais que habitam uma mesma urbe.
Nada disto é culpa dos cidadãos que moram nesta cidade e que nela escolheram viver.
Foi esta cidade que acolheu as primeiras fornadas dos milhares de jovens que o país enviou para o estrangeiro para estudar logo a seguir à independência, entre os quais me incluo.
Lembro-me com saudades de quando, em meados do ano de 1992, desembarquei na capital do país, com um diploma universitário e a mala cheia de energia e sonhos. Como eu, chegavam todos os anos centenas de recém-formados, ainda com os ouvidos a ecoar com frases repletas de palavras de ordem do tipo “vamos trabalhar para a reconstrução nacional”, aprendidas no liceu ainda no tempo do regime chamado de partido único. Já no advento da democracia, éramos todos militantes do sonho comum de ajudar o país a desenvolver-se, com um romantismo e energia contagiantes!
Às 18h, a Praça Alexandre Albuquerque enchia-se de gente jovem e bonita, maioritariamente empregada em instituições públicas, cujos escritórios ainda estavam todos no Plateau. Moços e moças recém-formados, casadoiros, com a vida pela frente.
Aos fins-de-semana, não havia muitas opções, mas as que havia eram aproveitadas até às tantas, numa cidade que não conhecia a palavra ‘insegurança’. Quantas vezes fiz a pé de madrugada o percurso do restaurante Cometa na Achada Santo António até ao Ténis, onde morava, por não encontrar um táxi!
A maioria desses jovens por cá ficou e fez vida, aqui criando os seus filhos. Eu fui dos poucos que regressou à ilha de origem, remando contra a maré de um centralismo já instalado e impulsionado por um Estado omnipresente, que se tornou imparável em anos subsequentes.
A cidade que deixei a 26 de Dezembro de 1992 nada tem a ver com esta aonde regressei passados 26 anos. No espaço de tempo de uma geração, a cidade da Praia cresceu de uma forma “absurda” (leia-se insustentável) como mostram as estatísticas que o INE nos disponibiliza (uma pausa para felicitar o bom trabalho que o INE vem fazendo).
Sem que os praienses fossem consultados, a cidade foi sendo “assaltada” ano após ano por fluxos migratórios de outras ilhas e do interior da própria ilha, resultado da incompetência colectiva do país e, particularmente, dos seus líderes políticos.
A cidade limpa, bonita e segura que conheci bem em criança, onde passava as minhas férias da adolescência e onde iniciei a minha vida profissional, ficou nas lembranças, apesar do esforço permanente da edilidade em contrariar o aparecimento de bairros clandestinos e restantes “mazelas” que vêm por acréscimo.
Recordo-me das primeiras casas a serem construídas em 1992 no novel bairro do Palmarejo, que tinha uma linda planta urbana, cheia de praças, uma nova cidade moderna pronta a nascer. As praças foram todas comidas pela voracidade da venda de lotes e hoje só resta uma (que nunca chegou a ser), prestes a ser sacrificada aos interesses imobiliários, o que já motivou a revolta dos habitantes do bairro...
No meio de todas estas vicissitudes, os praienses foram recebendo os que foram chegando com o melhor que lhes podiam oferecer: a tradicional morabeza cabo-verdiana. Apesar dos sacrifícios que tiveram de consentir em termos de perda de qualidade de vida, designadamente a nível da segurança e saneamento, não me lembro de ouvir os praienses a reclamarem de forma veemente (o que se compreenderia perfeitamente).
Costumo dizer, e fi-lo publicamente na qualidade de moderador do debate sobre a regionalização organizado pela Presidência da República no ano passado, que a principal vítima da centralização que se abateu sobre o país é a própria cidade da Praia, capital da República.
E, por ordem decrescente, as vítimas que se seguem são os concelhos do interior da ilha de Santiago, que continuam a ser dos mais pobres do país, e só depois as outras ilhas.
Apesar dos milhões que têm sido (mal) investidos anualmente na ilha maior, o resultado cristalino é o seguinte: a cidade capital tem a pior qualidade de vida das cidades nacionais e o interior da ilha continua a ser das zonas mais pobres do país. As estatísticas não mentem e qualquer um pode constatar isso.
Os praienses e santiaguenses deveriam, por essas razões, ser os principais entusiastas da regionalização do país, como defendi na minha intervenção final no referido debate.
Este é o país que temos 45 anos depois da independência: rios de dinheiro gastos em políticas eleitoralistas à base do betão e do alcatrão que resultaram no que se vê. E no resto do país, temos ilhas com enorme potencial de desenvolvimento a perderem população para os três centros mais dinâmicos do arquipélago, Praia, Sal e Boa Vista, onde barracas se amontoam em bairros que não orgulham a nação.
Voltando à cidade da Praia, preocupa-me o que vejo: uma faixa litoral de gente que vive razoavelmente bem, rodeada por uma enorme cintura de bairros cuja qualidade de vida dispensa comentários.
A pergunta que se impõe: que tipo de cidadãos serão as crianças que crescem em bairros sem praças, sem espaços abertos de convívio e interacção social e com um acesso cada vez mais difícil às praias da sua própria cidade? Crianças que correm o risco de crescer sem poderem ver o mar, tapado pelas construções cada vez maiores e que dificultam o acesso às praias... Como irão encarar os concidadãos das zonas privilegiadas, que vivem a escassas milhas?
Há já algum tempo tinha colocado uma questão semelhante em relação ao bairro de barracas que vi na ilha da Boa Vista, onde crescem crianças a olhar ao longe os hotéis.
Os responsáveis municipais e as forças vivas da capital do país, e já agora toda a nação verdiana, deveriam reflectir seriamente sobre estas temáticas.
Mas nem tudo está mal na capital da nação cabo-verdiana. A cidade está cheia de bons restaurantes, com uma oferta variada, sempre cheios de gente jovem, bonita e sofisticada, vinda de todos os cantos do país e do estrangeiro, emprestando aquele cosmopolitismo típico das capitais. Dá gosto ver essa juventude elegante a degustar bons vinhos com a mesma elegância dos jovens de outras cidades por esse mundo fora. Faz-me lembrar a minha vivência da cidade há 26 anos atrás, embora o nível de vida da altura desse para pouco mais que umas cervejas (vinhos sofisticados não entravam ainda na equação de vida cabo-verdiana).
Apesar de tudo, sente-se um clima de confiança no ar, não fôssemos nós os campeões da esperança, moldados por séculos à espera da chuva.
A Praia Maria festejou com muita música os seus 160 anos, fazendo jus à nossa relação privilegiada com esta forma de expressão cultural. Do Kriol Jazz, passando pelo AME e até chegar ao Festival da Gamboa, a cidade não parou de cantar e dançar ao som de muito boa música. A Câmara Municipal e os praienses estão de parabéns.
A cidade pacata que eu conheci há muitas décadas é hoje uma cidade vibrante e que quer ter o seu lugar no mundo, como urbe atractiva e repleta de eventos.
Que o esforço de requalificação da cidade continue, com mais debate e maior iniciativa dos seus habitantes.
A capital berdiana precisa urgentemente de uma down-town à beira-mar, que vá da Gamboa ao Palmarejo baixo. Os projectos anunciados parecem indicar que isso poderá vir a acontecer, desde que não se caia no erro de permitir construções à frente da Avenida Marginal, e desde que se permita o livre acesso de todos os cidadãos da Praia ao Atlântico, esse continente oceânico a quem a nação crioula cabo-verdiana deve a sua existência.
A cidade da Praia, herdeira da Ribeira Grande de Santiago, onde nasceu esta primeira nação crioula do pós-Descobrimentos, sabe disso. Do mar viemos, com o mar estamos condenados a viver, pois é ele a nossa principal fonte de inspiração e de ligação com o mundo.
Bem haja a cidade capital, bem haja Cabo Verde!
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 913 de 29 de Maio de 2019.