O grupo coral, composto tanto por senhoras como senhores da igreja, bradava em alta voz no altar improvisado no descampado ao largo da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Aos poucos vinham entrando os padres, as freiras e, por fim, o bispo, este último com traje talar e mitra na cabeça, devidamente equipado para as grandes ocasiões. E era uma grande ocasião. A ordenação do Pe. João Augusto. Eu era ainda pré-adolescente e usava aquele meu vestido festivo da cor de cascadeovo e sapato crau-crau, preto e envernizado, de bico redondo. Tinha um penteado a condizer com a idade, reguinhos cacheados no alto da cabeça, o que hoje se designa por tranças corridas na língua de Camões (tresses plaquées, comme on dit dans la langue de Molière). Foi assim, nesse dia de festa, que vi pela primeira vez o bispo Dom Paulino Évora.
Repetiu-se a ocasião com a ordenação do Pe. Teodoro (hoje nosso bispo em missão no Brasil... como diz o outro: da crise de padres naturais da terra, agora já temos bispos até para exportação... teria sido fruto do trabalho de Dom Paulino Évora?). Na altura da ordenação de Teodoro como padre, eu já era uma adolescente em flor e me recordo com maior precisão das coisas. Não cabia mais no vestido da cor de cascadeovo. Dessa vez, estava à moda da época: tinha usado um body preto com renda no peito, calças de ganga à boca-de-sino e uma sapatilha. O bispo entrava no altar ao som de «Cristo Jesus, tu me chamaste, eu te respondo, estou aqui. Tu me chamas-te pelo meu nome, eu te respondo, estou aqui… quero subir a montanha, quero ouvir a tua voz, quero subir a montanha e falar contigo a sós.»
Não fui crismada em Cabo Verde, pelo que as outras vezes que vi o bispo de perto foram menos marcantes. Em todo o caso, para um povo católico como o nosso, uma eucaristia celebrada por um bispo tinha sempre sabor especial. Não que o bispo da época fosse simpático. Disso nunca cheguei a saber. O que me lembro é que nunca o vi esboçando um sorriso, nem nunca o vi em contacto com a multidão. Parecia reservado. Apesar de tudo, o nome do malogrado fica na minha memória, até porque, na minha infância, quando domingo significava primeiro missa e mar depois, eu rezava ao Papa João Paulo II e ao nosso bispo Dom Paulino Évora. Não sabia por que razão tinha-se de rezar desta maneira, mas já tinha aquilo de cor na cabeça. Acompanhava só. Como também bastas vezes ouvi dizer: «nhu bispo fla». Se a palavra de padre tinha a força de uma lei, imagine-se a palavra saída da boca do bispo, ainda por cima o único naquela altura, cuja função era a mais elevada e nobre na hierarquia da igreja católica no nosso arquipélago (hoje temos outro bispo, Dom Arlindo Furtado, que subiu na estrutura da igreja, tornando-se Cardeal)!
Com o tempo, fui sabendo que, enquanto foi líder da igreja católica no país, Dom Paulino Évora teve a habilidade de exercer com mestria a sua influência na sociedade cabo-verdiana, indo um pouco além do adro da igreja, transpondo então as fronteiras do religioso e do sagrado para se atingir o âmago do anterior regime. Se para uns, ele teria sido politicamente muito interventivo, controverso, polémico, crítico e, quiçá, até de certa maneira abertamente contra o sistema político que vigorava (como uma espécie de espinha na garganta do regime); para outros, ele teria desempenhado um papel importante enquanto defensor da dignidade da pessoa humana, bem como enquanto opositor ao artigo 4.º da Constituição de 1980, contribuindo de forma muito singular para a institucionalização da democracia e, por conseguinte, para a consagração dos direitos sociais, cívicos e políticos no país. Trata-se de uma mesma pessoa, vista de modo diferente conforme os ângulos de observação.
Seja lá como for, há uma unanimidade nesta operação de flashback. De uma forma ou de outra, os dados que têm vindo a ser lançados evidenciam que, de facto, o bispo Dom Paulino Évora não teve uma vida em branco. De certa maneira, fez história. E esta história, que é recente, ainda não foi contada. Evidentemente que, de modo mais amplo, tem que ver com o papel da própria igreja (especialmente da igreja católica).
Sabe-se que, durante os quinze anos do regime de partido único, um partido político assumia-se como a única força dirigente da sociedade e do Estado. Por esta razão, as organizações da sociedade eram legitimadas e controladas pelo partido que se apregoava tal prerrogativa histórica, sendo as esferas de actuação da própria sociedade e as formas de participação cidadã circunscritas às acções do partido em apreço. É nesta circunstância histórica que o papel da igreja católica e do seu então líder merecem ser equacionados.
É fácil hoje falar-se de Estado laico. Porém, isso não significará a ocultação do facto de que, de modo particular, a igreja católica (também outras!?) teve um papel importante na edificação do país soberano e, mais tarde, democrático (escrevi em Janeiro passado sobre o papel da igreja católica e da visita do Papa João Paulo II no processo de abertura política e transição para a democracia num arquipélago onde mais de noventa por cento da população era católica... sobre o impacto da visita histórica do Papa já há algum debate e parece não subsistirem dúvidas de maior).
Certamente que não é tãosomente o posicionamento do Papa, de um bispo ou de alguns padres que se deve ter em consideração quando se pensa no processo histórico de tomada de consciência cívica e política no arquipélago, nomeadamente no período após à independência nacional. Tudo isto é sem dúvida parte de um processo maior, que evidentemente conheceu diversos outros protagonistas e acções em prol do pluralismo cívico e político para o povo das ilhas.
Dom Paulino impõe às mãos sobre Dom Arlindo
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019.