Interior de Santiago: um espaço histórico especial de exclusão?! - (Parte I)

PorCrisanto Barros,7 ago 2020 7:03

Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara. (Saramago, Ensaio sobre a Cegueira)

Por volta das seis horas da manhã, ainda em meio à geada e maresia matinais, caminhava, na Achada Santo António (ASA), em direção à Quebra Canela para o meu exercício habitual. Ao lado do hotel Santiago, deparei-me, para a minha surpresa, com uma moça na casa dos vinte anos, sentada num banquinho, com uma criança repousando às suas costas (bombudo), a cabeçarecaída sobre o dorso da mãe, encoberta por um pano azul… em sono profundo. No chão, viam-se hortaliças (tomates, cebolas, repolhos, etc.) e frutas (bananas, maçãs, peras, etc.), embaladas em saquinhos de plástico, com preço pré-definido, pronto a vender. A cada transeunte que por ali passava, ela alongava a vista, rua adentro, na expetativa de um freguês. Numa outra ocasião, deambulando pelas bandas do conhecido largo da Bolsa de Valores, ecoara aos meus ouvidos uma voz musicada és banana, és banana, és bananaaaaaaa. Segundos depois, assomara uma senhora esguia, já na casa dos 50, que transportava à cabeça, debaixo de um sol a pino, um balde apinhado de frutas. Abeirando-se de mim, com um olhar lânguido, disse-me: “é nhô, nhu dam 20 escudos pan kumpra pom” (…). Já em casa, pus-me a matutar sobre mais uma jornada (a)normalizada dos encontros fortuitos.

Todo este introito, para dizer que a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV2 colocou a descoberto inúmeras vulnerabilidades socioeconómicas estruturais do país, cujas consequências nefastas se repartem de forma desigual, tanto entre e intra-ilhas como no seio das gentes que nelas residem. Santiago é a ilha mais infetada e afetada pela pandemia, pois, representa mais de 75% dos casos registados da doença e, em termos proporcionais e absolutos, a esmagadora maioria da população pobre do país. A nosso ver, a crise sanitária desencobriu a vida de pandemónio de quem sobrevivia, há muito, numa pandemia da pobreza.

Se é verdade que os efeitos do SARS-CoV-2 e da seca prolongada atingem todas as ilhas, no entanto, não devemos, sob pena de omissão, coibirmo-nos de perguntar quem e de onde são e serão as pessoas mais atingidas pela crise sanitária? Parece-nos que quando olhamos para as periferias da Praia, Sal-Rei, Espargos e Santa Maria restar-nos-ão poucas dúvidas quanto aos mais afetados e penalizados: na sua esmagadora maioria, são os originários do interior de Santiago

Por interior de Santiago, denominamos o espaço geográfico histórico que resulta, a partir dos finais do século XVII, da mobilidade da população das duas capitanias fundadoras do povoamento de Cabo Verde situadas na Ribeira Grande de Santiago e Alcatrazes. Trata-se de uma zona socioeconómica, cuja população originária era composta maioritariamente por negros escravizados e por um punhado de brancos da terra. Estes entreviam no movimento de interiorização uma forma de recriar as condições de reprodução violenta do capital económico, entretanto, enfraquecido com a mudança do epicentro do tráfico negreiro de Santiago de Cabo Verde para a Costa da Guiné. Meio século após esse deslocamento, eis alguns traços dessa população inserta na Carta que o Bispo de Cabo Verde mandara ao Rei, no segundo quartel do século XVIII:

Quadro 1 – População de Cabo Verde em 1731

Fonte: AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos

A grande maioria dessa população, que à época representava 47% dos habitantes do arquipélago, foi aquela que historicamente esteve mais exposta à violência e ao desprezo dos sistemas escravista e colonial e aos efeitos horríveis dos longos ciclos de seca geradores de mortandades assombrosas. Foi apartada das oportunidades económicas, através de mecanismos de exclusão de acesso à terra e menores chances de admissão à escolarização, como revelam as estatísticas escolares do final desse século XIX.

Quadro 2 - Movimento dos alunos no ano letivo 1889-1890

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Fonte: AHN. Dados adaptados da estatística de instrução pública publicados no B.O em 1891 estatística da população de Cabo Verde

Essa população integrou-se, gradativamente, no sistema económico por um longo processo de recusa ao aviltamento da exploração sob a liderança dos morgados da ilha e pela construção de formas de trabalho por conta própria. As ondas de transformações políticas, económicas e culturais geradas pelos movimentos liberal e republicano, que ecoaram na província ao longo do século XIX, tocaram de forma extremamente marginal a essas gentes, as quais foram submetidas, constantemente, a estratégias de reescravização e discriminação material e simbólica.

Na verdade, somente na segunda metade de século XX, na sequência das vagas de movimentos independentistas, é que o Estado tardo-colonial português repolitiza as suas funções, incorporando essa população na esfera social, através de obras públicas (vulgo, trabalho de apoio) e expansão das escolas primárias (posto-escolar). Aquando dessa virada, parte importante dessa população pobre já havia entrevisto na emigração, sobretudo para a Europa, uma forma de aquisição de rendimento económico para a sua sobrevivência na diáspora e para o sustento dos familiares na terra natal. Ademais, foi por iniciativa própria que reabilitaram as suas habitações, substituindo a cobertura em palha pela telha e desta pela de betão – epopeia celebrizada por Zezé di Nha Reinalda no monumental cântico “Guentis d’Azágua”. Além do mais, erigiram um eficiente sistema de transportes rodoviários entre e inter-localidades, mediante o financiamento de veículos coletivos (das lendárias Bedford e Dina de caixas abertas, evoluindo depois para as confortáveis Hiace e Hilux), viabilizando a rápida mobilidade de pessoas entre as várias comunidades até então encravadas.

Com o advento do Estado nacional, as mudanças introduzidas nas condições de acesso à terra, educação, saúde, água, saneamento, eletricidade, captação da água e estradas de ligação entre e intra-concelhos contribuíram para melhorar as condições de vida dessas populações. Contudo, volvidos 45 anos após a independência e à beira dos 30 anos da institucionalização do regime democrático, os concelhos do interior ostentam os piores indicadores nacionais, sendo o seu o PIB per capita de 38% do valor médio, a taxa de subemprego quase duas vezes superior à média nacional, a pobreza absoluta atingindo quase a metade de sua população, o acesso à água e ao saneamento muito abaixo das taxas globais, como se denota no quadro infra.

Quadro 3 - Indicadores demográficos e condições de vida das populações

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Fonte – INE (Dados 2017 e 2018)

Contrariamente ao que uma certa mindset (mentalidade)propala nos media, a principal periferia de Cabo Verde, quer em termos de acesso a rendimentos quer em termos de acesso a serviços básicos, é sem margem de dúvida o interior de Santiago que, curiosamente, dista a poucos quilómetros da capital. Portanto, aferir os alegados efeitos do “centralismo” com base no critério milhas marítimas é, no mínimo, inconsistente. Aliás, a proximidade e a distância do Estado não se mensuram em função de espaçamentos físico-geográficos, mas, acima de tudo, pela (in)capacidade de possuir redes de influência sobre o aparato político-administrativo na definição e implementação de medidas de política, bem como na habilidade de as inscrever nos meios de comunicação social. Por isso, não é de todo verossímil que a centralização favorece mais a ilha de Santiago, a menos que reduzamos Santiago à Cidade da Praia. Mas, se sim, seria interessante escrutinar quem dela mais beneficia (empresários, classe política, elite burocrática, estrangeiros ocidentais e asiáticos, etc.)

Nas últimas duas décadas, importa realçar, o interior da Ilha beneficiou de avultados investimentos através da edificação de infraestruturas de acessibilidade (estradas circundantes e vicinais asfaltadas), eletrificação (central única), mobilização da água superficial através de barragens e diques, tendo em vista a criação de condições para alavancar a sua economia, integrando-a de forma mais competitiva na produção riqueza da ilha e do País. Em relação às barragens, tudo indica que, possivelmente, ao invés de as espalhar para o interior de Santiago e em outras ilhas sem uma avaliação rigorosa do seu impacto, seria mais racional construí-las em menor número, entretanto, com toda a cadeia conexa completa (retenção da água, construção de infraestruturas de irrigação e de correção torrencial a montante, gestão, manutenção, formação, produção e comercialização). Infelizmente, nessas horas, o frenesim político e a cultura do sta na moda falam mais alto.

Recentemente, as intervenções do Governo, em colaboração com as autarquias, quer através de apoios aos agricultores (vale-cheque-seca) quer mediante à (re)qualificação urbana, ajudam a aliviar e a distender os efeitos negativos das secas, a embelezar os espaços urbanos e elevar alguma autoestima. Contudo, não constituem, nem de perto nem de longe, uma resposta estruturante capaz de debelar, a médio e longo prazo, o desemprego, melhorar a qualidade vida das famílias de forma sustentável e, consequentemente, reduzir o êxodo rural acelerado e seus efeitos – às vezes negativos –, seja na origem seja no destino.

Neste sentido, importa perguntar por que motivos os importantes investimentos canalizados para o interior da ilha não se traduzem na melhoria significativa nas condições de vida de parte importante das gentes que nele residem, quer em matéria de acesso a serviços básicos quer em termos de empregos e rendimentos? Por que razão a ilha de Santiago continua a funcionar de forma espartilhada e não como unidade, em termos políticos e de ordenamento socioeconómico?

(O ensaio "Interior de Santiago: um espaço histórico especial de exclusão?!" continua aqui)

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Autoria:Crisanto Barros,7 ago 2020 7:03

Editado porSara Almeida  em  21 mai 2021 23:21

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