“O espancamento do Willy representa o naufrágio da nossa civilização” – Liliane Segre

PorMaria Silva,21 set 2020 7:28

Presidente da Associação de Amizade Itália Cabo Verde - Kriol Itá
Presidente da Associação de Amizade Itália Cabo Verde - Kriol Itá

​Os primeiros jornais de Domingo, dia 6 de Setembro, na Itália traziam o seguinte título: Morre na Ambulância Jovem de 21 anos de origem cabo-verdiana, espancado nesta noite de Domingo

Aquele jovem era o Willy Monteiro Duarte, filho do Armando e da Lúcia, naturais da ilha de São Nicolau, que escolheram esta terra de Dante Alighieri para crescerem os seus filhos, o Willy e a Milena.

O Willy era um jovem bom e altruísta, qualidades reconhecidas por todos e será a sua bondade e altruísmo a conduzi-lo à morte.

Tinha estudado hotelaria, trabalhava como ajudante de cozinheiro. O seu grande sonho, contava a mãe, era o de ser um grande Chefe com estrelas. Jogava futebol na equipa de Paliano – Distrito de Frosinone, onde nasceu e cresceu. Segundo os amigos, nos últimos anos tinha-se afastado do futebol para se dedicar à profissão que tinha escolhido.

Um amigo dizia: “o Willy era a alma da equipa, alegria e adrenalina para todos”.

A Lúcia e o Armando, ambos católicos praticantes, transmitiram aos filhos princípios tais como o respeito pelo próximo, ajudar um amigo ou mesmo um desconhecido que se encontre em dificuldade, viver com alegria porque cada dia que vivemos é um dom de Deus.

E o Willy, naquela madrugada de domingo 6 de Setembro, meteu em prática os ensinamentos dos pais; perante um amigo que precisava não hesitou.

Entrando no seu carro, após uma noite com os amigos em Colleferro, cidade a cerca de uma hora de Roma, vê ao longe que uns jovens estão numa rixa pegada, e reconhece entre eles um seu colega da escola de hotelaria. Aproxima-se para tentar pacificá-los e afastá-lo.

Entretanto, chega um todo-o-terreno com 5 rapazes: descem 4 deles e começam a empurrar e a espancar as pessoas aí presentes e uma delas é o Willy. O Willy apanha um soco, cai, tenta levantar-se, como conta o amigo, mas estes continuam a pontapeá-lo brutalmente por todo o lado, o jovem vomitava, tentava reagir, até que desmaiou e, mesmo assim, as testemunhas dizem que os agressores continuaram a golpeá-lo e subiam em cima dele, pisoteando-o.

Tudo isto aconteceu com muita gente por perto, inclusive, atrás de uma esquadra de carabineiros. Mas, segundo o que afirmam muitos jovens, não se aproximaram porque para eles era a rixa do costume. Batem-se todos os sábados, provocam-se entre si, “pode até provocar um ferido mas um morto nunca”, afirma um jovem.

Foi um dos carabineiros que ouvindo os gritos, depois que os assassinos se afastaram deixando o pobre Willy no chão, se aproxima e chama uma ambulância e dirá aos jornalistas que em todos os seus anos de serviço nunca tinha visto nada do género. O Willy viria a morrer na ambulância.

Na mesma manhã de domingo, foram presos dois irmãos Gabriele (de 24 e 26 anos), Marco Bianchi, Mario Pincarelli de 22 anos e Francesco Belleggia de 23 anos. Eram todos conhecidos como jovens violentos que exibiam uma certa musculação; praticavam MMA, uma disciplina que combina várias artes marciais. Segundo o Chefe da Polícia da zona “eram conhecidos pelos polícias pois já tinham antecedentes com a justiça”.

Aterrorizavam todos os jovens daquelas localidades limítrofes como Artena, Paliano, Colleferro, Lariano. Como testemunham, os traficantes de droga serviam-se deles para recuperarem créditos. E efectuavam aquilo que se chama missão punitiva. É o que aconteceu naquela noite de domingo: estavam, como afirmaram ao magistrado, num cemitério a fazer sexo, quando recebem uma chamada de apoio e partem para Colleferro onde, na Praça Oberdan, espancarão até à morte o pobre Willy.

Na segunda-feira, dia 7 de Setembro foi-lhes confirmada a detenção por homicídio preterintencional, sendo que a um deles, Francesco Belleggia foi concedido a prisão domiciliar. A acusação viria, todavia, a ser transformada após a autópsia, em homicídio voluntário, agravado por motivos fúteis.

O Willy, dizia o médico que realizou a autópsia, sofreu traumas múltiplos no abdómen, pescoço, tórax e cabeça.

A morte deste jovem italo-cabo-verdiano, amado por todos os que o conheceram levantou uma onda de solidariedade, onde os média não pouparam títulos, entrevistas, debates; os italianos, a comunidade cabo-verdiana na Itália, em Cabo Verde e no mundo inteiro, os governantes de ambos os países, manifestaram a própria dor e indignação perante um espancamento de tamanha atrocidade.

Várias incitativas surgiram antes do funeral do Willy, entre as quais se destaca uma marcha silenciosa realizada pelos habitantes de Paliano onde participaram milhares de pessoas entre as quais uma Delegação da missão diplomática sediada em Roma, chefiada pelo Embaixador Jorge Gonçalves.

O Funeral do Jovem Willy teve lugar no sábado dia 12/09 no Campo desportivo de Paliano, sua cidade natal, naquele mesmo campo onde centenas de vezes tinha jogado com os seus amigos e a sua equipa. Uma multidão rigorosamente de branco, assistiu dentro e fora do campo à cerimónia fúnebre celebrada pelo bispo Mauro Parmeggiani, onde estiveram presentes também o Primeiro-Ministro Italiano Giuseppe Conte, a Ministra da Administração Interna Luciana Lamorgese e o Governador da Região Lazio Nicola Zingaretti. No domingo sucessivo ao funeral, a comunidade cabo-verdiana apareceu em massa em Colleferro para, mais uma vez, numa marcha composta e silenciosa, manifestar a sua solidariedade para com a família e pedir que justiça seja feita.

Aquilo que certamente os hediondos não esperavam era que a morte daquele jovem, para eles um insignificante jovem estrangeiro, ignoravam decerto que era italiano como eles, iria suscitar uma onda de protesto e indignação, de maneira transversal.

Os políticos presentes no funeral e outros em geral, no fundo, reconheciam certamente, que aquela tragédia encerrava temas profundos ainda longe de serem resolvidos na Itália como a integração, o racismo, as periferias abandonadas, o mau estar social dos jovens, em particular, das localidades como aquelas de Paliano, Colleferro e Artena onde o desemprego juvenil ronda os 20%, onde é mais fácil recuperar créditos de droga ou vender droga do que fazer um curso de cozinheiro como fez o Willy.

No espaço de 24 horas, o Willy tornou-se num mártir, num símbolo. In primis, este lindo rapaz com um sorriso que te entra na alma tornou-se no filho, no irmão, no primo de todos. Tornou-se no símbolo daquela integração que se deseja.

Mas, como escreviam no jorna da ANPI (Associação Nacional dos Resistentes Italianos) – “virá o momento da justiça que já começou, mas virá também o momento para reflectirmos acerca daquilo que aconteceu na nossa cidade, no nosso território”.

Uma reflexão que começou desde o primeiro momento que vimos aquele título nos jornais de domingo dia 6 de Setembro.

Muitos choraram e choram pela morte absurda e atroz do jovem italo-cabo-verdiano. A senadora Liliana Segre afirmou “o espancamento do Willy representa o naufrágio da nossa civilização”.

Os habitantes de Artena, Colleferro, Paliano e a Itália inteira estão vivendo um enorme sentimento de culpa

A justiça sabia quem eram aqueles jovens, que eram violentos e nada fizeram; quase todos os jovens sabiam e não reagiram por medo, pela “lei do silêncio”.

Muitos afirmam que por detrás de todo este horror existe uma ideologia racista, em particular modo, nas localidades de Paliano e de toda a chamada “Ciociaria” que inclui Colleferro, de uma herança do movimento social de Mussolini e hoje marcada pela presença importante da direita italiana. Uma senhora dizia: “aqueles são animais e basta, incapazes de pensar, de ter uma ideologia”.

Mas, para outros, o espancamento daquela natureza é a manifestação do ódio racial. Giada de 24 anos dizia: “decerto que são racistas e fascistas. Eram conhecidos na zona, aterrorizavam todos”.

Fascismo ou não, os agressores cultivam a cultura da violência, aquele fascínio do mal que atrai muitos jovens hoje em muitas sociedades.

Pairam no ar algumas perguntas tais como: teriam batido no Willy até à morte se o Willy fosse branco ou aqueles pontapés e socos foram a expressão de um certo ódio pela sua origem estrangeira, pelo seu ser negro?

Terão punido o Willy por se ter intrometido num “assunto de brancos”?

Será que o Willy era para os agressores, um intruso, um negro, alguém que meteu o nariz nos assuntos deles mudando assim a lógica do espancamento?

Será que a lição a cada pontapé era “negro schifozo fatti i affari tuoi”, ou seja, “negro nojento, não te deves intrometer nos nossos assuntos”?. Um momento onde o nós é o branco e ele é o negro, o estrangeiro.

Um jovem nas redes sociais escrevia: “dizem que eras um italiano mas para mim eras um imigrado negro porque, pelo que eu sei, o italiano é branco”.

Um parente de um dos agressores afirmou: “ui. Tanta tanta história. No fundo mataram um imigrado”.

O longo processo que terá início daqui a poucos meses, talvez nos ajudará a perceber este hediondo homicídio que nos deixa todos mergulhados numa grande vergonha porque muito podia ter sido feito para que ele não pagasse com a sua jovem vida a indiferença, o individualismo, os mil preconceitos que minam as nossas sociedades.

O Willy deixa-nos uma herança importante: ensinou-nos o verdadeiro sentido da amizade, do amor pelo próximo; que não devemos resolver as nossas questões com a força, com a violência.

Ele ensinou-nos que, no fundo, tudo se alicerça na educação que nos transmitem os nossos pais e deixa a todos a responsabilidade de colocar o conhecimento e a convivência com o Outro como prioridade.

Talvez tenhamos que fazer com que, como uma mancha de óleo, aquilo que ele conseguiu com os habitantes de Paliano, ou seja, conquistar a amizade de todos, com o seu sorriso e comportamento, se espalhe por toda a Itália, de modo a construirmos uma sociedade baseada na amizade, na entreajuda, na convivência. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 981 de 16 de Setembro de 2020.

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Autoria:Maria Silva,21 set 2020 7:28

Editado porSara Almeida  em  21 set 2020 11:01

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