As Mulheres de Monteiro

PorAdilson F. Carvalho Semedo,28 jun 2021 7:32

Professor Auxiliar da FCSHA – Uni-CV – Cientista Social/Sociólogo
Professor Auxiliar da FCSHA – Uni-CV – Cientista Social/Sociólogo

​No passado dia 17 de junho de 2021, foi lançado o segundo volume da trilogia de Eurídice Monteiro, intitulado A Praia dos Amores Clandestinos. Neste romance conhecemos diversas personagens no tempo/memória que perpassam as suas vidas e envolvemo-nos com os assuntos/temas que enredam as suas vivências.

No rol das personagens, destacam-se algumas mulheres que espelham as transformações que marcam a condição feminina em Santiago no decurso dos últimos cem anos.

O passamento de Tabugal, que encarna a condição de mulher memória, dona do ponto lúdico principal do centro da vila, compassa a sequência da narrativa. Na Taberna de Tabugal, enquanto espaço mimético ou espaço onde se liberam as pulsões socialmente reprimidas, eram permitidas sensações que o mundo local das obrigações, como a família, o trabalho, a Igreja, não aceitava, permitindo que o morador ou o viajante se desvinculasse dessa moral totalitária para uma moral “um pouco menos regrada”, onde vamos encontrar, por exemplo, a permissão de xingamentos em jogos, o consumo de bebidas alcoólicas, o flerte, etc.

Tabugal dá lugar ao protagonismo central de Naia. A jovem moça de comportamento irrascível, que teve, inclusive, a coragem de mediar o encontro de um vivente com o Senhor do Inferno no primeiro volume da trilogia, transforma-se numa feroz doçura, numa leoa devoradora de acordar os vizinhos. Testemunhamos a angústia da sua queda no abismo social e o seu renascer como mãe e mulher, nas suas alegrias e tristezas, sempre sob o peso dos condicionalismos coercivos da realidade social.

Tudo indica que Naia deixara o seu legado para ser continuado por Aspásia no volume que falta. Nesta revela-se a perene busca identitária cabo-verdiana. Através do legado de Nhu Akintola Abelha, um dos personagens centrais do primeiro volume da trilogia, ela vai ao encontro do que as palavras preservaram.

Assim, o romance tem a essa particularidade de nos trazer três subjetividades marcadas pelo tempo e devotas do tempo/memória. Se Tabugal é a oralidade encarnada, o que fez da sua língua uma arma de fogo terrível e temível, como testemunha A Ponte da Kayetona, Naia, nos seus contactos e conversas com Nhu Akintola Abelha, mescla oralidade e escrita. Aspásia, vivendo num tempo em que os guardiões vivos da memória escasseiam, faz as suas descobertas nas viagens pelos livros.

Conhecemos ainda, Kaitana, que encarna o escárnio e o despeito social. Porém, o desenrolar da narrativa mostra-nos que por detrás da mulher solitária, visceralmente «runha», está alguém cujo futuro foi negado por uma violação. É relevante que não foi a violação em si que lhe negou isso, mas a condição social do homem violador. Nesta personagem a desgraça da mulher é mostrada como uma herança legada à sua descendência.

Na senda dos infortúnios, ainda, deparamos com Munda, através da qual afloramos as raízes profundas da violência conjugal como um fenómeno criminoso total na vivência cabo-verdiana, dado que à morte da mulher/mãe sucede o abandono dos filhos e a morte social do homem, entregue ou à cadeia ou à bebida.

No corpo dos assuntos/temas que emaranham as vidas destas e doutras personagens, o romance faz do amor o fundo principal. Existe uma economia de afetos que perpassa todo o livro. No seu primeiro momento é dito que “nenhum amor é clandestino” e o segundo momento abre com a frase “se é amor, que seja por inteiro”. Assim, há espaço para amores improváveis, forçados, escondidos, para o amor infantil e para a homoafetividade.

Este romance faz-nos ver que para cumprir a sua função de catalisador de relações, derrube das barreiras sociais, reconhecimento da pessoalidade e sentido de pertença a comunidade, o amor reclama a sua não clandestinidade. Mas não sendo inteiro, essa funcionalidade perde-se.

De forma sutil, somos levados a considerar que, se a praia dos amores clandestinos é uma praia de utilidade pública, assim é porque o amor tem utilidade pública. Ora, vemos o amor erigir-se sob a lógica da necessidade, seja como estratégia de sobrevivência, seja como garante de mobilidade social ou de manutenção do status quo, e não apenas sob a lógica da amizade, cingida à interpenetração pura da afeição recebida e da retribuída.

Na passagem em que Silone declara o seu amor a Naia, a autora subescreve a definição amor como a “interiorização da relação subjetivamente sistematizada com o mundo do outro” conforme propôs Niklas Luhmann (1927-1998), na página 28, do seu livro O Amor como Paixão: Para a Codificação da Intimidade, de 1991. Numa realidade social marcada por vulnerabilidades, acentuadas nas necessidades de sobrevivência, de reconhecimento social ou de realização pessoal, a relação íntima surge-nos como possibilidade de pessoalização. Ao casar com Naia, Silone regatou uma mulher que estava excluída do mercado matrimonial e conferiu-lhe a dignidade de pessoa/ mulher/esposa honrada.

Na interioridade do Amor, A Praia dos Amores Clandestinos guia-nos ao encontro dos problemas da alcova, como a traição amorosa, a geração e a criação dos filhos, ao encontro do amor como dispositivo de governo da vida, mas também apresenta-nos o amor como jogo/luta/sexo entre a fêmea e o macho. Entretanto, se não nos oferece uma leitura moralizante da realidade socioeconómica que descreve, não se coíbe em defender que o amor/desejo encarnado em Nhô Manel Serafim, o amor/jogo, encarnado por Marcolino são vivências amorosas corruptas, que não cumprem a função que a sociedade machista, moralmente católica, demandava.

Na economia dos afetos que perpassa todo o livro deparamo-nos, igualmente, com as condicionantes sociais exteriores do amor. Os bens nascidos, como o intuído de protegerem os seus interesses de classe, alegam que o merecimento amoroso exige a correspondência de recursos económicos, sociais e culturais. Já os mais desfavorecidos apontam para os recursos morais associados ao nome que as famílias carregam.

Por tudo isso, mas não só, A Praia dos Amores Clandestinos, transporta-nos por décadas de mudanças sociais locais e globais e viaja nas tensões e alianças, gerando uma deliciosa nostalgia aos espíritos mais sensíveis. Mas, em certos momentos, o erotismo das suas páginas não poupa a nossa carne de um certo desassossego.

Se o locus preferencial desta obra é a ilha de Santiago, também viajamos para outros espaços; se a atenção recai sob as diversas subjetividades femininas, também há lugar para as descobertas de masculinidades arquipelágicas; se o assunto que lhe confere um fundo é o amor, igualmente abre-se para as interligações que este assume com a moral na construção da solidariedade social. Bem-Haja! 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1021 de 23 de Junho de 2021.

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Autoria:Adilson F. Carvalho Semedo,28 jun 2021 7:32

Editado porAndre Amaral  em  28 jun 2021 7:32

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