Os Desafios da Governação Democrática nas Universidades Públicas em Cabo Verde na Próxima Década¹ - Parte I

PorOdair Barros-Varela,30 ago 2021 7:32

Professor da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV)
Professor da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV)

​As Universidades figuram entre os principais actores do desenvolvimento económico e social dos Estados na medida em que têm a nobre missão de educar cidadãos e de formar o capital humano (profissionais e investigadores) que visam aumentar o progresso social.

Estas organizações constituem ainda pontes fulcrais de diálogo e troca de conhecimentos com a sociedade. Para cumprir a referida missão, elas têm de ter a capacidade de promover e trabalhar com os saberes necessários à investigação interdisciplinar, transdisciplinar e indisciplinar (Barros-Varela, 2008).

Daí que um dos grandes desafios das universidades públicas constitui o reforço da sua governação democrática na medida em que é através desta que se fixam os parâmetros para a gestão universitária. Contudo, para isso é também é necessário ter altos níveis de autonomia e de responsabilidade que, por sua vez, requerem lideranças capazes de conduzir a instituição a cumprir a sua missão em todos os sectores; e requerem também um planeamento estratégico, uma gestão profissionalizada e um financiamento robusto.

Diferentemente da Governação que se centra no controlo da organização e na distribuição de responsabilidades, no exercício do poder e da autoridade para a tomada de decisões e para implementação das mesmas, a Autonomia refere-se normalmente à relação entre o poder público e a universidade. A autonomia institucional (organizacional, académica, financeira, patrimonial, e de gestão) normalmente decorre do que está estipulado pela lei. Esta permite que as universidades definam as suas prioridades estratégicas de acordo com os seus pontos fortes, independentemente do nível da autonomia. Se esta for mais alargada a definição pode ser feita com maior liberdade e se for menos alargada acontece o inverso. Normalmente um maior grau de autonomia leva a um melhor desempenho e constitui, portanto, um requisito importante para o sucesso das universidades na próxima década (Nazaré, 2021).

Para a manutenção e o reforço da natureza pública das universidades e da sua condição democrática torna-se fundamental enfrentar o processo de erosão e desaparecimento lexical que a expressão “gestão democrática” têm sofrido a nível global nos discursos de política educativa. As universidades, enquanto organizações sociais têm sido re-conceptualizadas cada vez mais como “prestadoras de serviços”, de organizações de tipo “operacional”, em vez de instituições de garantia de direitos (Chaui, 1999). O campo lexical da Educação, Investigação e de Governação das Universidades vem progressivamente abandonando e marginalizando expressões como Democracia, Cidadania, Liberdade, Cooperação, Solidariedade, Bem Comum, justiça, etc., para se concentrar numa agenda de Modernização, Racionalização, Eficácia, Concorrência, Rivalidade, aproximando-se muito mais do universo semântico que está mais ligado à esfera económico-empresarial (Lima, 2021).

Por conseguinte, é preciso combater o crescente desequilíbrio existente nas universidades a favor do ambiente comercial, da cultura empresarial, tecnocrática e corporativa, em detrimento do ethos académico, desvinculando a governação democrática, colegial e participativa do conceito de garantia de qualidade, menosprezando, de certa forma, a cidadania democrática, como elemento central nas universidades.

É necessário, igualmente, um reforço dos modelos de governação baseados na colegialidade, na descentralização e desconcentração do poder e nas práticas democráticas (participação ativa de professores, estudantes e funcionários) no sentido de evitar a sua substituição por modelos de governação universitária baseados na unipessoalidade, remetendo a representatividade para os órgãos de topo, de tipo estratégico, que não têm uma interferência quotidiana nas universidades.

O ethos académico, que tem por base o diálogo e a argumentação, fundamentais na democracia académica, não deverá ser suplantado pelo ethos gestionário caracterizado pela impregnação empresarial da universidade mediante a “cultura do novo capitalismo” e da “economia das capacitações” (Sennet, 2006; Bauman, 2010), na medida em que isso conduz ao aumento da precariedade do ensino, da investigação e das condições laborais e contratuais.

A predominância do ethos gestionário tem por base as abordagens ditas pós-burocráticas de regulação e governação das universidades. Em vez de se olhar para a governação como um processo de construção dialógica, predomina a perspetiva ultraliberal da “governação sem governo” (Rosenau e Czempiel, 1992), em que se assistem a processos de meta-regulação onde as Agências Regulação e de Acreditação do ensino superior têm um peso significativo, constituindo, portanto, o governo indirecto das universidades, ou seja, o Estado delega responsabilidades de meta regulação nessas agências, apesar de, em última instância, ter a palavra final sobre os processos de regulação.

Contudo, na realidade, estas abordagens incentivam o aumento de processos hiper-burocráticos nas Universidades. Se, por um lado, assiste-se a uma desmaterialização dos processos administrativos, por outro, aumenta-se grandemente o controlo remoto sobre todas as áreas. A racionalização e a formalização administrativa levam a que, paradoxalmente, Universidades possam ser cada vez mais escrutinadas e vigiadas através de plataformas eletrónicas.

Para além da digitação e digitalização, a transformação digital também implica mudanças profundas ao laboral e cultural no sentido de se implementar novos modelos educacionais que trarão ganhos extraordinários em matéria de produtividade e de acesso ao ensino. Portanto, essa transmutação também terá de ser democrática no sentido de valorar as oportunidades que a Universidade digital e online apresentam.

Nesse sentido, um dos grandes reptos da transformação digital nas universidades na próxima década consiste no enfrentamento das externalidades negativas das novas tecnologias de informação e de comunicação (TIC) que estiverem focadas apenas na digitação e digitalização, tendo em conta que o ethos gestionário, ou o novo gerencialismo, em vez de conduzir à pós-burocracia, tem-se traduzido numa hiper-burocracia informática e numa ciberburocracia que detém uma capacidade excecional de controlo. Assiste-se, portanto, a uma tensão entre a hiper-burocracia e a democracia nas Universidades que urge ultrapassar no sentido de evitar o risco de se atingir o “o nível máximo de participação mínima” (Crouch, 2000).

Tendo em conta o contexto pandémico em que se vive, é fundamental que as externalidades positivas das novas TIC, incorporadas nos slogans da “Universidade digital”, da “transição digital” e da “inclusão digital”, não sucumbam aos ditames da ciberburocracia que podem pôr em causa a missão nuclear das universidades: a educação do cidadãos em toda a sua amplitude.

Caso contrário, as universidades podem transformar-se em “Centros de Habilidades Avançadas” (Martins, 2011), imbuídos do ethos gestionário que promove a desumanização do ser humano, perdendo, assim, a sua capacidade de serem agências de educação democráticas, cívicas e participativas em todas as áreas e especialidades (desde à filosofia à física) e que promovem o processo de humanização do ser humano. Em síntese, a educação não é um produto, é acima de tudo, um direito humano fundamental e é crucial para o futuro da humanidade e do planeta.

Referências Bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Capita­lis­mo parasitário: e outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

BARROS-VARELA, Odair. “O repto da ‘diversidade de conhecimentos’ em Cabo Verde: do colonial/moderno ao moderno/pós-colonial”, e-cadernos CES, nº 2, 2008. Disponível em: https://journals.openedition.org/eces/1332.

CROUCH, Colin. Coping with Post-Democracy. Londres: Fabian Society, 2000.

CHAUI, Marilena. “A Universidade Operacional”. Avaliação: Revista Da Avaliação Da Educação Superior, 4 (3), 1999.

LIMA, Licínio. “Os Desafios da Governação Universitária em Cabo Verde”, Ciclo de debates da Uni-CV, 21 de abril de 2021.

MARTINS, Hermínio. Experimentum Humanum – civilização tecnológica e condição humana. Relógio D’Água, Lisboa, 2011.

NAZARÉ, Maria Helena. “Os Desafios da Governação Universitária em Cabo Verde”, Ciclo de debates da Uni-CV, 21 de abril de 2021.

ROSENAU, James; CZEMPIEL, Ernst-Otto (eds.). Governance Without Government: Order and Change in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

SENNETT, Richard. A Cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1030 de 25 de Agosto de 2021. 

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Autoria:Odair Barros-Varela,30 ago 2021 7:32

Editado porSara Almeida  em  30 ago 2021 7:32

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