As habilidades e capacidades de diálogo e de debate existentes nas universidades constituem uma riqueza e um exemplo para a democracia e para a sociedade. Se as Universidades forem instâncias mais tecnocráticas do que democráticas, mais economicistas e competitivas no mercado global do que propriamente humanistas, a sua existência perde completamente o sentido. E, neste momento, não existe a garantia de que a essência das universidades irá persistir no futuro apesar da sua existência milenar, posto que, no continente africano, remonta aos tempos de Tombuctu, no Norte Mali, há mais de dez séculos.
É justamente aqui que reside um outro grande desafio das universidades públicas nos próximos anos que tem a ver a sua sustentabilidade enquanto instituições públicas no contexto das reformas do Estado que têm ocorrido à escala global. Os indícios apontam que o desafio da sustentabilidade destas instituições não reside apenas no seu financiamento, mas sim na procura do difícil equilíbrio entre a promoção da alta cultura e a resposta às emergências de curto prazo do mercado, a que se associa a imprevisibilidade do Estado em cumprir o seu dever constitucional de fornecer a educação aos seus cidadãos (Lima, 2021).
No que tange ao financiamento, o ensino superior público é reconhecidamente capaz de melhorar a situação social e a qualidade de vida das populações. Portanto, deveria ser financiado pelos impostos das populações, ou seja, deveria ser gratuito. A maioria da população em Cabo Verde deveria ter a oportunidade de exprimir democraticamente se concorda com esta possibilidade ou se considera que somente os que podem pagar os encargos de frequência e permanência devem ter sempre a melhor educação. Para nós, caso Cabo Verde queira realmente ser um país avançado em matéria de inovação e investigação terá de criar condições para o ensino superior público ser efetivamente gratuito, equacionando, obviamente, o problema da carga fiscal já existente sobre os contribuintes, numa perspetiva de justiça e equidade, bem como a eficácia e a eficiência das autoridades fiscais.
Trata-se de uma questão filosófica e democrática que não poderá ser resolvida somente segundo critérios económicos. A educação contribui para o bem-estar de todos e não somente dos que são formados. O modelo de sociedade que se quer em Cabo Verde, baseada no conhecimento, na economia do conhecimento, na aprendizagem e na qualificação dos jovens e adultos, implica um investimento robusto nas universidades públicas e não pode estar nas mãos de privados e das famílias. Se isto ocorreu nos outros níveis de ensino, em que a escolaridade obrigatória foi paulatinamente considerada pública, universal e obrigatória e, finalmente, gratuita, porque isso não pode ocorrer com o ensino superior público?
O argumento ou justificação de que as propinas pagas pelos estudantes são justas porque irão ou devem ser investidos no aumento da qualidade pedagógica e social dos universitários, tem se tornado falacioso, na medida em que, na prática, elas nunca tiveram esses efeitos e passaram a ser cruciais para a sustentabilidade financeira das universidades (pagamento de salários, gestão corrente, e etc.). Tendo em conta que a comunidade política e social cabo-verdiana almeja ter uma educação superior de qualidade, o Estado terá de ser o principal financiador de tal desiderato, tanto mais que a necessidade de formação superior é cada vez mais premente.
Tendo em conta, por um lado, a conjuntura de crise económico-financeira que a pandemia da Covid-19 engendrou ou agudizou e que deverá manter-se nos primeiros anos subsequentes ao fim da pandemia, e as limitações do aumento das receitas fiscais, admite-se, contudo, que a gratuitidade da frequência do ensino superior pode ser encarada de forma gradativa, podendo, num contexto de transição, que pode ir até uma década, optar-se pela instituição do sistema de bolsas de estudos reembolsáveis pelos beneficiários após o seu ingresso no mercado de trabalho.
Um outro desafio relevante para as universidades públicas constitui a necessidade de, em Cabo Verde, se pôr cobro às constantes tentativas de sua partidarização e instrumentalização partidária tendo em atenção que estas não constituem espaços de combates e debates partidários. Tais instituições devem constituir um exemplo de democracia para a sociedade, mediante o reforço da colegialidade e da participação democrática em todos os órgãos e a passagem para uma “liderança distribuída” (Spillane, 2006). Por conseguinte, não se deve confundir a partidarização com a politização que se traduz no debate político e filosófico visando a procura dos melhores caminhos e meios para as universidades. Neste sentido, estas necessitam de ser re-politizadas, mediante a promoção do debate em torno da escolha política de modelos de gestão ou administração que tenham por base valores e culturas diversas, contrariando o avanço da naturalização da gestão universitária e das formas de gestão e controlo que promovem a despolitização.
Tendo como principal riqueza a capacidade de debater todas as temáticas de forma profunda, inteligente e pacífica, as universidades não podem educar para a democracia se não praticam elas mesmas a democracia. As universidades têm uma obrigação ética e cívica para com os estudantes de criar um ethos académico, e a prática democrática universitária constitui uma prática educativa fundamental!
Porque o ensino superior é ou deve ser, cada vez mais, um bem público por excelência, as universidades públicas devem assumir, descomplexadamente, o desafio do diálogo e da cooperação com as universidades e demais instituições de ensino superior privadas, principalmente com aquelas que têm objectivos cooperativos ou solidários, não meramente lucrativos, e que são ou almejam ser instituições de excelência em determinadas áreas de investigação e de pós-graduação. Este diálogo democrático, que deve ocorrer num fórum apropriado, é suscetível de gerar sinergias, promover comunidades sistémicas robustas no seu seio e ao seu redor e destarte, contribuir para o desenvolvimento qualitativo do sistema do ensino superior.
As instituições universitárias públicas, por constituírem desígnios estratégicos nacionais, necessitam que o Estado cumpra a sua obrigação de lhes fornecer as condições para que possam atingir o grau de excelência desejado e exigido pela sociedade no seu todo. Atingido este nível, elas constituirão o farol e/ou os pontos de referência, para as instituições universitárias privadas, mediante a sua autoridade científica e práticas democráticas, numa perspectiva colaborativa e complementar e não de concorrência e de rivalidade como atualmente se quer fazer crer.
De forma geral, as universidades públicas precisam de prestar contas (accountability) à sociedade no seu todo, e não apenas às agências de regulação, caso pretendam ganhar o respeito e apoio da sociedade e da opinião pública para enfrentar os desafios aqui referidos. Elas só poderão sair vitoriosas dos seus combates se tiverem a solidariedade e a crença de largos setores da sociedade na centralidade da sua missão e do seu papel para a construção de uma sociedade mais justa, mais democrática e mais humana.
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2 Este artigo tem, em certa medida, por base o seminário “Os Desafios da Governação Universitária em Cabo Verde”, realizado pelo Ciclo de debates da Uni-CV (https://www.facebook.com/DebatesUniCV2021) realizado no dia 21 de abril de 2021 e que contou com a participação de Maria Helena Nazaré (Universidade de Aveiro), Licínio Lima (Universidade de Minho), Aquilino Varela (DGES), Silves Moreira (Uni-CV) e de Cláudia Santos (Uni-CV). Dirijo um agradecimento especial aos restantes colegas da Comissão Científica e Organizadora.
Referências Bibliográficas:
LIMA, Licínio. “Os Desafios da Governação Universitária em Cabo Verde”, Ciclo de debates da Uni-CV, 21 de abril de 2021.
SPILLANE, James P. (2006). Liderança distribuída (1ª ed.). São Francisco: Jossey-Bass.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1031 de 1 de Setembro de 2021.