O Tijolo

PorFátima Bettencourt,13 set 2021 8:30

​Há por vezes alguma dificuldade em definir a crónica. Por isso ela tem tantas definições, pois que cada um lhe inventa uma, todas em competição de originalidade. Mas a crónica não passa de um tijolo e não se veja nisso nenhum sinal de menosprezo, pelo contrário, eu própria sou fabricante incorrigível de tijolos.

Ora, tijolo porquê? Tijolo no sentido de pedra edificadora, aquela que em conjunto ergue catedrais. Não podemos negar que tijolo isolado tem muito pouca utilidade, quando muito servirá para usos menos nobres tais como tranca de porta, pisa-papéis, suporte de prateleira, enfim usos comezinhos que não dignificam mas dão jeito.

Mas nem sempre é assim. Um tijolo conheci eu, em Boston, que sozinho se ergueu em monumento à saudade, à identidade, à afirmação duma diáspora que galgou a pulso os degraus da integração em meio hostil.

Almoçava eu na Brown University onde chegara integrando uma comitiva cultural tendo como missão específica apresentar um dos meus livros de contos sobre a emigração. Numa mesa redonda, tinha do lado esquerdo o catedrático da mesma instituição, Onésimo Teotónio Almeida, também ilhéu dos Açores, também escritor, amigo que eu já conhecia de outros encontros e duas cadeiras à direita uma senhora forte, mulata clara, de olhar simpático e riso caloroso a quem o Ministro Manuel Veiga abraçara efusivamente à chegada ao vetusto e nobre edifício da Brown. Percebi que o apelido era Andrade e que era emigrante de terceira geração.

As nobres e hospitaleiras tradições da cidade e da Universidade estavam sendo garantidas pelo requintado menu escorado num “Plât de Resistense” constituído por Salmão grelhado com molho de pistáchio, divino, de comer rezando como dizem os brasileiros. Claire Andrade, como me segredou Onésimo, era uma verdiana- descendente que lidava com cinema, papel que acumulava com o de ativista da comunidade. Ao lado dos talheres, ela mantinha sob sua guarda e vigilância algo um tanto intrigante, aparentemente um guardanapo cobrindo um dicionário. Eu não parava de olhar para o misterioso objeto, pelo insólito que representava numa mesa requintada. Surpresa maior foi quando, findo o almoço, começam a passar de mão em mão fotos antigas de emigrantes da primeira geração de cabo-verdianos que no século XIX tinham partido de Cabo Verde para a pesca da baleia.

Eu já me comovia quase até às lágrimas quando Claire fez transbordar as minhas comportas ao retirar o guardanapo que afinal escondia um tijolo velho e enegrecido pelos anos que pertencera à primeira casa construída pela avó, da ilha Brava, de onde partira para acompanhar o marido, pescador. O local, ali mesmo no coração de Boston fora vítima do crescente e antropofágico processo imobiliário que afastara de vez as modestas casinhas dos emigrantes para as periferias mais recuadas. Foi então que a inconsolável e indignada avó, diante dos escombros do seu lar desfeito, pegou e guardou com todo o carinho o tijolo como testemunho de uma época e agora um monumento erguido à saudade e à cabo-verdianidade, monumento que um punhado de descendentes agora rega, alimenta e mantém vivo através dos anos.

Tudo isto me ocorreu ao ver na TV a simpática cineasta que assistia a um festival de cinema nas ilhas. Mal nos conhecemos, mas se me permite, Claire, dedico-lhe esta crónica com muito carinho.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1032 de 8 de Setembro de 2021. 

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Autoria:Fátima Bettencourt,13 set 2021 8:30

Editado porAndre Amaral  em  13 set 2021 8:30

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