Dizemos bem que foi por falta de combustível. Lembramos bem que a TUI transporta cerca de 70% dos turistas que visitam Cabo Verde. Lembramos bem que a retoma do turismo tem sido o desejo de todos os caboverdianos, sem excepção. Isso porque o turismo representa cerca de 23-25 % da riqueza produzida anualmente em Cabo Verde. Passada uma semana, o diário on-line “A SEMANA”, informa-nos que o mesmo episódio se repetiu, com uma aeronave da Latam Cargo.
Na edição do semanário “A NAÇÃO” do dia 15/12/2021, teci algumas considerações, exigindo que fossem sacadas responsabilidades. Há que saber ou já deveríamos ter sabido o que se passou e as medidas de correção e de sanção tomadas. Numa sociedade democrática e transparente, isso é um direito dos cidadãos e uma obrigação dos governantes e responsáveis, a todos os níveis. Nós os cidadãos interessados no desenvolvimento deste país, exigimos uma explicação clara e responsável. Ou será que há um vazio de poder nessa matéria? Eu apontei a ARME como a responsável. Se é verdade que o Jet A1 (combustível para os aviões), não é tabelado pela ARME, como acontece com os outros produtos petrolíferos, consumidos no mercado interno, a sua importação e reexportação (venda aos aviões) só pode ser feita pelas duas concessionárias. E todo o processo de concurso internacional para o fornecimento de combustível ao país é acompanhado pela ARME que o monitora (controle de qualidade, T&C, etc ...). Portanto, é inegável e lógico que a ARME tenha que ter a responsabilidade e obrigação de responder por qualquer falha neste processo. Qualquer dispositivo legal que diga o contrário está mal feito e deve ser revogado imediatamente.
Independentemente de murmurinhos ocorridos na nossa praça, a ARME teve a ousadia de vir no passado dia 21 de Dezembro, com um comunicado, onde cita o DL nº19/2009, de 22 de Junho, o DL nº62/2010, de 27 de Setembro e o DL nº50/2018, de 20 de Setembro, num expediente onde, de forma falsamente professoral, tenta ilibar-se de qualquer responsabilidade nesta grande vergonha que fere a nossa honra e lança dúvidas sobre as nossas ambições como país capaz de potenciar certas vantagens competitivas que inclusivé vêm sendo edificadas, há décadas e nalguns casos, séculos. Ninguém nos pede para produzirmos o que quer que seja. Nem televisores, nem computadores, nem automóveis ou vacinas. É apenas ter a capacidade e competência para, com eficiência e eficácia, comprar combustível algures e vender em Cabo Verde a quem estiver a atravessar o Atlântico, do Norte para o Sul ou do Sul para o Norte. Isso é assim tão difícil?
Para quem não sabe ou nunca procurou saber, lembro que Cabo Verde, nasceu como país plataforma, no apoio ao tráfego entre a Europa do Norte e América do Sul. A primeira plataforma foi institucionalizada em S. Vicente (plataforma marítima), no início do século XIX (1823), com a instalação das companhias britânicas em S. Vicente, Millers e Cory Brothers. Imaginemos que nessa altura um navio (vapor) chegasse a S. Vicente, vindo da Argentina ou do Brasil e um incompetente qualquer respondesse que não poderia abastecer o barco porque tinha pouco carvão, reservado apenas aos seus clientes! Caso o Governo português não agisse imediatamente, a Inglaterra (Reino Unido se quiserem) iria admoestar Portugal, dizendo: “o fornecimento do carvão aos navios é vital para o nosso comércio com América do Sul. Ou garantes a segurança do abastecimento de combustível (carvão na altura) ou tomamos conta dessas ilhas para garantir a segurança dos fluxos comerciais vitais para a Europa. Quem quiser pode sentir-se ofendido, com a ilusória ideia de soberania, mas o mundo funciona com regras que ultrapassam e se impõem à miopia ou mesquinhez mental de muitos. Hoje, nem é preciso ameaçar de ocupar Cabo Verde. Os clientes desviam-se para Dakar, Las Palmas ou Casablanca. Não é por acaso que no computo geral, poucos países são desenvolvidos e continuam a desenvolver-se, enquanto outros estagnam e acabam por ficar cada vez mais distanciados da dinâmica do desenvolvimento mundial.
No Século 20, a aviação começou a desenvolver-se no mundo e, no final dos anos 30, os italianos começaram a construção do aeroporto do Sal, como uma plataforma de apoio ao tráfego aéreo entre a Europa e América do Sul. Com Cabo Verde independente, o Aeroporto do Sal tem-se desenvolvido, não só como plataforma de apoio ao tráfego aéreo, mas também, como aeroporto de destino, a partir dos anos 90, com o início do desenvolvimento do turismo. Portanto, a procura do aeroporto tem aumentado, (pondo entre parêntesis o período da pandemia) e nos últimos meses, desde Julho, assistimos a uma retoma segura que nos faz crer que talvez em 2023, poderemos atingir o nível de 2019, ou seja, recuperar a dinâmica de expansão.
Ora, independentemente da importância de todos os intervenientes nas actividades de um aeroporto, há 3 elementos que são os mais importantes de entre todos: 1- Existência de uma boa pista que permite aos aviões aterrar e descolar em segurança. 2- Existência de uma boa assistência técnica, com pessoas qualificadas e equipamentos adequados de ajuda à navegação; 3- Garantia de abastecimento dos aviões em combustível. Portanto, a disponibilidade e capacidade de abastecer os aviões é de importância tal que a meu ver, é um assunto de segurança nacional e da competitividade do país na disputa de clientes com outros países plataforma na nossa sub-região (Senegal, Canárias e Marrocos). Assim, esta crise não pode ser tratada com a simplicidade ou ligeireza com que parece estar a ser tratada neste momento. Há que identificar e sancionar os responsáveis e corrigir e/ou reforçar os dispositivos legais que regem o estatuto dos nossos aeroportos e portos como pontos de abastecimento internacionais. Caso contrário, a ideia de plataforma não passará de uma mera “bazofaria do crioulo”.
A importação, distribuição e comercialização de combustíveis é de tamanha importância que os stocks estratégicos estão sob a alçada directa ou indirecta do poder político em todos os países. Imaginemos que apesar da liberalização das importações, amanhã faltasse o milho, arroz, óleo ou outros produtos considerados essenciais? Como funciona o mecanismo? Em Cabo Verde também, a importação, distribuição e comercialização de combustíveis, pela sua importância é uma área reservada ao Estado que faz concessões a empresas que normalmente devem ser selecionadas com muito rigor. E neste caso, as concessionárias têm ou devem ter obrigações claramente definidas, procedimentos e normas rigorosos a respeitar, sob pena de o contrato de concessão ser anulado pelo Estado. Actualmente, temos um duopólio, onde intervêm duas companhias: ENACOL e Vivo Energia (ex-Shell Cabo Verde). A partir da independência, a Administração da Concessão era feita directamente pelo Ministério responsável pela economia. Contudo, na remodelação governamental de 1986, com a criação do Ministério dos Transportes, Comércio e Turismo, a Administração da Concessão passou para a alçada desse Ministério e considero que havia lógica nisso, porque se trata de uma operação de comércio internacional.
Que se passa actualmente? Nos anos 90 surgiu a moda de Agências de Regulação. Digo moda, porque era mais uma fantasia que realidade, pela simples razão que o Regulador só o é de facto se conhecer o sector pelo menos igual ao regulado. E infelizmente, isso não tem sido o caso de Cabo Verde. Pondo de parte a bazofaria ou orgulho mesquinho de alguns, a mim não me ofende que chamemos especialistas estrangeiros para exercerem funções de chefias nas nossas Agências Reguladoras. O exercício desta função não é lugar para ir aprender, mas sim para quem já conhece e está calejado na matéria.
Por isso, perante a confusão gerada com o escândalo e bagunça actuais, a segunda medida a tomar, após a responsabilização dos culpados disso é esclarecer e reforçar a política de “administração da concessão”. Ouso dar algumas dicas. Esta função, no caso dos combustíveis deve ser exercida pela ARME. Que sejam abolidos todos os Decretos-Leis anteriores e se faça um ÚNICO DECRETO-LEI com tudo muito claro e conciso. Ainda sobre o combustível para os aviões (Jet A1) ou para os barcos (fuel), os aeroportos e portos de reexportação devem obrigatoriamente ter o direito e a obrigação de saber e acompanhar o exercício desta actividade, minuto a minuto e com capacidade e poder de intervir, a fim de prevenir situações de ruptura do stock. Finalmente são esses aeroportos e portos que constituem a razão pela qual os aviões ou barcos fazem escalas ali. Portanto, a capacidade e o dever de abastecer acabarão por ser uma obrigação incontornável das concessionárias e nunca podem ser postas em causa, sob pena de falha grave que deveria implicar reversão imediata da concessão.
Durante o ano passado, o Governo organizou uma série de conferências e work-shops, sob o lema: “Cabo Verde - Ambições 20-30”. Uma das ambições declaradas foi a reconfirmação do desejo de reforçar a sua função de país plataforma: aérea, marítima, tecnológica, etc. De facto, a função de Cabo Verde no mundo, tem sido e será em grande parte, uma plataforma. Tive a honra e o privilégio de ter sido um dos oradores ou conferencistas a apresentar este tema.
Perante este incidente, temos a impressão, espero errada, que ninguém se preocupa: do Aeroporto do Sal (sua Direcção), um dos principais prejudicados, não ouvimos nada. Da Câmara do Turismo e do Instituto de Turismo de Cabo Verde, dois interessados altamente prejudicados, não ouvimos nada. Nem da classe política, (situação e oposição) também não ouvimos nada. Mas estamos perante um facto desvalorizado, ou as pessoas não perceberam a importância do incidente?
Mas como afirmar-se como país plataforma aérea ou marítima se não excluirmos totalmente a possibilidade de haver ruptura ou disfuncionamento no abastecimento aos meios de transportes, a fim de dar confiança ao mercado? Onde está a falha? Quem está a falhar?
Por conseguinte, cumprindo o meu dever de cidadão livre, exorto o Governo a publicar, com a urgência possível, o relatório sobre este grave incidente, enumerar as medidas tomadas para erradicar futuros disfuncionamento e pedir desculpas aos utilizadores. Só assim poderemos almejar restaurar a confiança do mercado mundial na nossa capacidade de estar à altura dos desafios, no futuro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1048 de 29 de Dezembro de 2021.