In memoriam a Antero Simas: Gentes que fizeram de Dja de Sal uma ilha afortunada no plano musical

PorBenfeito Mosso Ramos,11 jul 2022 9:09

Uma amizade de décadas, associada à admiração que por ele nutria, leva-me a partilhar estes breves apontamentos sobre Antero Simas, na essência a sua dimensão enquanto músico e compositor, mas também enquanto membro de uma geração que conferiu superior visibilidade à Ilha do Sal no panorama musical nacional.

Começo por aquilo que parece ser consensual: a galvanizante visão de Cabo Verde de que Antero Simas era portador, que ficou condensada na sua obra prima Doce Guerra.

Com efeito, Doce Guerra é antes de mais, e como tem sido sublinhado por muitos, um hino de amor a Cabo Verde. Mas, é também um hino à tenacidade do homem cabo-verdiano face às adversidades. Um homem obstinado em fazer a sua terra florir e progredir, não obstante as agruras que a natureza lhe impõe.

Doce Guerra, épica na poesia e soberba na melodia, evolui em crescendo para aquele dia di festa, em que as Ilhas vão se entrelaçar, ao som da morna, do batuco e de tambores, não importa se em São Tiago ou São Vicente, Santo Antão ou Boa Vista, num doce abraço di paz.

Parece, assim, que nesse Cabo Verde idealizado por Antero Simas, o nosso lugar de origem, o nosso cutelo, a nossa ribeira, tende a se diluir numa casa comum, com sonoridades diversas, que ele fazia questão de degustar demoradamente. Em todo o caso, e nisso reside a sua proposição maior, um lar comum que se sobrepõe às insularidades de diversas espécies. Sobretudo a geográfica e a mental.

Aqui chegado, não se afigura de todo despiciendo indagar até que ponto a Ilha do Sal, que acolheu Antero Simas de 1976 até aos últimos anos, sendo, por conseguinte, a ilha aonde ele viveu a maior parte da sua vida, não terá exercido uma certa influência na sua mundividência.

Aliás, Sal é uma ilha com suas peculiaridades, que se distingue não só pelo seu povoamento relativamente recente, mas também pela heterogeneidade da sua população, integrada por gentes de todas as ilhas, bem como de outras proveniências, que convivem harmoniosamente sob um mesmo tecto, sem que releve minimamente a origem ou a ancestralidade de cada um.

Outrossim, é difícil a quem esteja, por qualquer forma, ligado à Ilha do Sal discorrer sobre o músico e compositor Antero Simas, sem o situar num determinado contexto e numa geração, profundamente generosa na sua entrega, que muito contribuiu para o progresso que a Ilha conheceu.

Com efeito, o capital humano que se desenvolve em torno do Aeroporto do Sal acaba por fazer aumentar o nível intelectual e as expectativas da sociedade salense, ao mesmo tempo que proporciona à Ilha uma certa pujança a vários níveis, nomeadamente na educação, na cultura, no desporto e no plano musical em particular.

Para um tal resultado concorre também a abertura de espírito e a predisposição que se assiste no salense para uma fecunda interação com o outro. Isso é visível nos laços que acabaram por se estabelecer entre a até então incipiente tradição musical do Sal e os recursos, alguns já nomes firmados nesse domínio, que iam chegando de fora.

Exemplo paradigmático do que se acaba de dizer, e que constitui o primeiro momento de afirmação do Sal no panorama musical nacional, foi a gravação e o lançamento do LP “Tututa & Taninho”.

Tratou-se, como nomes tão sonantes já deixam antever, de uma extraordinária simbiose entre a magnificência do piano, trazida de São Vicente por Dona Tututa, e a virtuosidade do violão local, na pessoa de Taninho Évora, a que não terá sido de todo alheia a influência do Mestre Luís Rendall, seu sogro, que já mantinha com a Ilha uma relação muito estreita, na base da qual ali permanecia por longas temporadas.

Aliás, cabe abrir aqui um parêntesis para dizer que foi decisivo para Antero Simas o aprendizado com Luís Rendall, aquando dos seus encontros nos Espargos. “Solta esse Antero que está dentro de ti!”, teria ordenado o Mestre ao Discípulo, ao se aperceber de um certo acanhamento que o estava a sufocar.

Retomando o fio à meada, de Tututa e Taninho chega-se a um outro estrato, gente mais nova e com menos traquejo, mas que não quer deixar os seus créditos por mãos alheias.

Na verdade, seguindo as pisadas do pai, Manuel Eugénia Brito, primoroso acompanhamento no violão, os irmãos Rito e Albertino juntam-se a Ramos e Piúna para em finais dos anos 60 darem vida ao conjunto “Os Únicos”. Piúna haveria de fazer posteriormente dueto com Humbertona no LP Dispidida, em que é gravada a versão instrumental da morna “Grito de Dor”, composição de Dona Tututa. Integra também a Voz de Cabo Verde.

É também por essa altura que um ainda bem discreto Lobo, por certo levado pelo instinto familiar, nomeadamente do lado do pai, Antoninho Lobo, voz reverenciada, que tinha dado a conhecer no Sal a morna “Avezinha di Rapina”, começa a sair da toca. Mais tarde, já em Santiago e com o conjunto os Tubarões, acaba por se consagrar como uma das figuras mais icónicas da música cabo-verdiana.

Vale dizer que por essa mesma ocasião, já em tom menos formal, constitui-se em torno da Dona Tututa uma tertúlia de que faziam parte Carlos Germano e a esposa Ana Maria, Hermano Almeida, Evaristo Rodrigues e Celso Estrela. Detalhe interessante é que com o grupo está, embora apenas como grande apreciador, o então capitão João Freire Oliveira, da Força Aérea, que acabou por se apaixonar de tal forma pela música de Cabo Verde, a ponto de vir a desempenhar papel decisivo na promoção e divulgação de Antoninho Travadinha em Portugal.

Entrementes, Alcides Brito e seu irmão Nhelas Spencer, os dois rapazes mais novos da Casa de Manuel Eugénia, que viriam a se tornar consagrados compositores, se juntam a Jorge Lopes, Hermógenes Cruz (Bonze) e Rui Ferrer para fundarem, já às vésperas da Independência, o conjunto Voz Djassi, o primeiro a interpretar a muito celebrada composição “labanta braço, grita bô liberdade”, da autoria de Alcides.

Esse é o contexto, dinâmico e muito auspicioso, que caracteriza a vida musical do Sal, quando ali chega o jovem Antero Simas, que nele se integra como peixe na água, desdobrando-se em composições que se destacam pela beleza das suas letras e a subtileza das suas variações, prenunciando, assim, um estilo que viria a ser inconfundível.

Afigura-se de justiça fazer ainda menção a outras figuras desse tempo que concorreram, cada uma à sua maneira, para essa ascensão e visibilidade da Ilha do Sal, como Tonecas Marta, compositor das mornas “Mar, piscina di nhas lágrimas” e “Neto”, a esposa Ana Emília, uma linda voz, bem como o grande intérprete que viria a se revelar Mirri Lobo.

Essa geração, eclética sob várias perspectivas, mas apostada em romper com um certo rame-rame, e se afirmar pela qualidade, fez de Dja de Sal uma ilha verdadeiramente afortunada no plano musical.

Um bem-haja a todos, em especial à memória daqueles que já partiram, como é o caso do grande Antero Simas, que acaba de nos deixar. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022. 

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Autoria:Benfeito Mosso Ramos,11 jul 2022 9:09

Editado porAndre Amaral  em  11 jul 2022 9:09

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