Foi em ambiente descontraído que entramos em contacto com a música de Tchá e sentimo-nos reesposáveis por honrar a sua arte com estas breves palavras.
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Cacém, 8 de Abril de 2022. Manuel Medina, um amante incondicional da música cabo-verdiana convida-me para, junto com ele, atravessar a rua até ao outro lado do passeio e entrarmos na casa ao lado. Medina toca a campainha. Imediatamente, abrem-nos a porta. Convida-nos, amavelmente, para entrarmos. Que grande surpresa! A sala de visita da casa é um verdadeiro cenário artístico, estético e musical: o mestre Tchá; os aprendizes Alcindo da Luz (Tchida) e Neusa; Manuel Medina (que me proporcionou a surpresa de viver presencialmente a música do artista) e a Nina com seu olhar de espanto e admiração, formamos todos uma comunhão de espíritos unidos pela música instrumental e pelo improviso do momento. Se já conhecia no Youtube muitos vídeos de espetáculos ao vivo desse instrumentista, em performance com outros nomes da nossa música (o caso de Armando Tito), a minha surpresa foi a de estar a conhecê-lo ao vivo. Foi verdadeiro cenário de festa, um momento deveras elevado, daqueles momentos que, mesmo em Cabo Verde, vão-se caindo no esquecimento, pois, na atualidade já não se vive aquela cultura de serenatas à janela, nos momentos de despedida dos que partem para emigração, ou em momentos improvisados do quotidiano como outrora acontecia.
Tchá no violino e Tchida no violão. Mas a sala de visita, encarnando o verdadeiro espírito da música, além de violino e viola apresenta outros instrumentos musicais: viola baixo, viola solo, alguns deles construídos pelo nosso mestre e instrumentista Tchá, que, na sua arte de criação artística tem espaço (e com reconhecimento) a talento de construir cavaquinhos, violas e violinos. O canto esquerdo da sala, localizado a partir da posição onde me encontro sentado, expõe três quadros de personalidades exemplares: Amílcar Cabral, Jesus Cristo e uma foto feito posters de Tchá com o Presidente da República de Portugal, o Professor Marcelo Rebelo Sousa. Conta-nos o músico que, numa das suas atuações, em que tocava violão com os dentes, uma arte que sabe fazer como ninguém, aparece-lhe à frente, quando menos esperava, o Presidente Marcelo que contemplava de perto a sua performance no vilão e, muito admirado pelo virtuosismo do instrumentista executando as cordas do instrumento com os dentes, pediu-lhe um registo do momento.
Porém, a nossa conversa prosseguia entre os intervalos de cada morna, coladeira e outros géneros musicais. A cada minuto maravilhado com o ambiente estético, lembrei-me do filósofo Gilles Deleuze (2003) que, em Proust e os Signos, concebe o estilo de um grande artista é um estilo de vida e a verdadeira aprendizagem como uma aprendizagem de signos e hieroglíficos. De facto, a casa de Tchá e Neusa é um autêntico estilo de vida ética e vida artística, um ethos e uma poiesis onde cada signo se esboça entre notas e melodias, instrumentemos musicais e pessoas que não cansam de entrar e sair a todo o instante, porque atraídos pelo dom da música. Mas o ambiente é prenhe de significado. Entre o natural ato de cumprimentar surge uma espécie de (est)ética do acolhimento: “Erosinha”, esta sublime canção do saudoso Jorge Neto e sobejamente (re)conhecida em Portugal, Cabo Verde e em toda a Nação diasporizada que é (e vai sendo) Cabo Verde, ganha expressão em toda a sua força artística. Soa-nos deliciosamente ao ouvido.
O dia seguinte não foge à regra. Estipulado para os mesmos aprendizes, o mestre escolhe um clássico de Nhô Eugénio Tavares (1867-1930): a antiquíssima morna “Mal de Amor”, que faz parte da coletânea Mornas Cantigas Crioulas. Deveras um momento excecional, embrulhado num mar de instrumentos e sons, signos e símbolos, arte, história, cultura e identidade. Neusa na viola baixo, Tchida no violão, Tchá no violino, Manuel Medina e eu registando, sem nada previamente combinado, o pulsar acontecimental dos dos fragmentos de vida artística que nos unem a todos nesta atmosfera intimista onde não faltara, em nenhum momento, aquela encomenda d’ terra, dieta alimentar das ilhas, como bem sabe cantá-lo Miri Lobo. A minha atitude estética convenceu-me desde o primeiro instante que seria nobre gesto da minha parte registar este digníssimo momento. Afinal, nem sempre se tem a oportunidade de, mesmo em momentos descontraídos de educação musical, escutar boa música tradicional nas mãos de um instrumentista com tais qualidades, daqueles que se acedem só em grandes espetáculos. De um artista que tem um lugar mais do que merecido na arena da musicologia das ilhas de Cabo Verde e, de forma mais ampla, no sentido transnacional dos palcos do mundo que vai pisando como artista e homo social. Mas o prazer estético de quem há muito não frequentara um cenário assim é grande.
Morna vai morna vem! Coladeira aqui coladeira acolá! E os aprendizes, já bem embalados e com ouvidos acostumados à escuta das orientações do Mestre que, no final de cada música elogia e deteta pequenas e naturais falhas, estão em caminho de aprendizagem. Quem o diz é o próprio mestre que orgulha-se das conquistas dos seus alunos e acredita no potencial de cada um, sem lhes impor estilos, tendências, condicionamentos. Guiados pelo mestre, sabem que devem esforçar-se para chegarem ao mais fundo de si mesmo e escutar o seu ser em música, aquilo que dizia Agostinho da Silva: ajudar a cada um a ser ele próprio. Se quisermos: conduzir cada aluno aos mistérios de escutar a musicalidade da sua alma singular!
Tchá, desde menino começou a cultivar os instrumentos musicais, situação que aconteceu igualmente com muitos dos músicos cabo-verdianos que não frequentaram conservatória de música, porque estas não existiam em Cabo Verde. Contudo, desde a tenra idade teve contacto próximo com Cesária Évora, Ildo Lobo, Tito Paris, Tutu Évora, Dany Almeida, Manuel de Novas, Luís Morais, Paulino Vieira, Djack Monteiro, Luís Rendal e Jorge Cornetin. Tchá chegou a frequentar algumas aulas com este último e, desde o primeiro momento, Cornetin lhe disse que, “não precisava de aulas porque o meu ouvido era já muito apurado”. Mas o facto de não ter existido conservatórias de música terá proporcionado condições para uma maior liberdade de criação aos músicos cabo-verdianos, fazendo com que estes não ficassem presos a determinados cânones que interferissem no exercício da sua liberdade criadora. Contudo, não desmerecemos a importância que as escolas de música desempenha na formação musical do ser humano.
Tchá, cuja casa é autêntica respiração da alma da música, diz-nos que “a arte não tem cor, nem raça (…) é para todos e é universal”. Afirma ainda que, um dos seus objetivos artísticos na diáspora é transmitir a cultura musical cabo-verdiana às novas gerações. Por isso, é “uma educação musical sem formalidades com o objetivo de transmitir a nossa alma”. Aliás, o seu disco Dente & Viola traz várias faixas musicais e é exemplo vivo neste sentido!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de