Desde muito cedo, a Igreja constitui um esteio valioso da música cabo-verdiana e assume-se, na sua prática eclesial, como um dos viveiros da promoção, reprodução, valorização e projeção daquela com particular realce para o género da morna consagrada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em finais de 2019, como património cultural imaterial da humanidade. No plano meramente interno, a função valorativa da música por parte da Igreja Católica é suportada por agentes religiosos ligados, em última análise, à própria instituição e, em especial, pelos seus missionários ou padres encarregues de anunciar o evangelho, divulgar a fé, pregar a palavra divina aos cristãos e, ainda, promover a cultura e o desenvolvimento. Seja como for, a música e a religião, entre outros padrões de comportamento presentes em todas as sociedades, são “universais culturais”, socorrendo-me de uma expressão do antropólogo norte-americano Donald Brown (1991), e, por isso mesmo, do ponto de vista analítico, se interpenetram e se complementam dinamicamente. Daí a necessidade do entendimento, apreensão e compreensão dos perfis, singularidades e complexidades individuais dos servidores da comunidade cristã, no exercício do sacerdócio na Igreja, particularmente na sua relação com a música litúrgica e a profana ou secular, a partir de retratos sociológicos (Bernard Lahire, 2004) suportados por entrevistas biográficas e em profundidade devidamente contextualizadas.
Oriundo de uma modesta família portadora de tradição musical, valores cristãos sólidos e propósitos altruístas, nasce, na localidade da Preguiça, nos Espargos, a 13 de dezembro de 1964, Ildo Augusto dos Santos Lopes Fortes, de nome completo, o primeiro filho, entre quatro irmãos, de Estanislau Lopes Fortes, também ele natural da ilha do Sal, e de D. Domingas Espírito Santos Fortes, esta última, da Zona Norte da Boa Vista, mais precisamente da localidade de João Galego. Na altura, Sal era uma “terra muito pacata, de gente muito modesta e muito amiga, havia uma convivência muito grande em casa de uns com os outros (…). Eu era pequenino, vivia no centro, numa das ruas principais dos Espargos, que, hoje, é a Rua do Restaurante Bom Dia (…), a rua mais larga e bonita que havia no Sal”. Hoje todos aposentados, os pais de Ildo Augusto eram, outrora, funcionários públicos do Aeroporto: o pai, mestre de pedreiro, e a mãe trabalhava nas áreas auxiliares da empresa, enfim, “pessoas simples, que têm apenas a antiga quarta classe do ensino primário, mas que sabe ler e escrever muito bem, enfim, uma família modesta, unida e feliz, que, sem quaisquer privações, educou quatro filhos – eu, primogénito, a Ilda, o Hildeberto e o Elisiário”.A casa dos pais de Ildo Fortes, na então Vila dos Espargos, era um espaço aberto de passagem e circulação permanente de parentes e amigos próximos enfim, à volta de uma família que “partilha muito a sua vida e muito aberta aos outros, onde o exercício do amor, da caridade e da solidariedade é uma coisa muito grande”.
Fiel, desde a tenra idade, aos valores sagrados da religião católica que comunga, Ildo Augusto foi batizado na Paróquia de Nossa Senhora das Dores, no Sal, a 19 de abril de 1965, no Sal, pelo Padre Leonardo, onde, também, frequenta o ensino primário (1970-1975). Na escola primária, durante quatro anos, três professores marcaram-no: “A minha primeira professora, Margarida Spencer (Magui), cantora, encantou-me muito. A Magui foi minha professora nos primeiros anos da escola, lembro-me muito bem dela. Depois, tive outro professor Joaquim Lopes Pinto (Djack), já falecido, exigente, os alunos tinham algum receio dele. Naquele tempo, a palmatória era a forma mais generalizada de se sancionarem os alunos nas escolas, felizmente não me lembro de ter levado muita palmatoada. Uma professora de referência com quem fiz a formatura de primária foi D. Olga, natural da ilha de Santo Antão e esposa do Sr. Figueiredo, açoriano, residente no Sal”.Nos primeiros dez anos de vida de Ildo Fortes, que coincidem, em termos temporais, com quase toda a fase da sua infância, começa o seu processo de socialização musical, através de mornas e coladeras interpretadas por Bana, Luís Morais, Luís Rendall, Tazinho e Humbertona, que ouvia graças a um gravador com bobines do pai, e, também, de músicas tradicionais ao vivo executadas por pessoas amigas e próximas que frequentavam assiduamente a casa dos seus pais na pacata Preguiça onde cresceu. De resto, a sua socialização musical não se circunscreveu apenas ao seu ambiente familiar, pois, na altura, no Sal, “a música estava muito presente, ia-se a casa de um tio ou tia e, quando menos se esperava, aparecia música e ouvia-se música”. O pai, em casa, “arranhava” o violão, cantava muito bem e dançava mazurca, enquanto que “a minha mãe, a minha tia e meus primos cantavam bem. O meu gosto pela música surge em casa, desde tenra idade, isto é, a música está permanentemente presente em minha casa e em todos os momentos da vida”. Crescido num ambiente musical e rodeado de familiares próximos ligados umbilicalmente à música, Ildo Fortes lembra-se “muito bem de Custódio e Ti Rocha, respetivamente, pai e avô da Maria Alice Fortes, minha prima e cantora, a tocarem rabeca em Santa Maria, tudo isso está no meu imaginário e no meu coração”.
Nas vésperas da independência nacional, em julho de 1975, por razões de ordem profissional, os pais de Ildo Fortes são transferidos para os Açores como funcionários aeroportuários e, naturalmente, fazem-se acompanhar, também, do filho Ildo Augusto, que, por sinal, acabara de completar a quarta classe de instrução primária, aos 10 anos de idade. Curiosamente, é na Horta onde termina o 9º ano de escolaridade e, pela primeira vez, entra em contato e familiariza-se com o violão, “nas traineiras da pesca do atum, cuja tripulação era cabo-verdiana, gente muito amiga dos meus pais, da Palmeira, sobretudo, e de S. Nicolau”. No intervalo das aulas, quando havia um ‘furo’, eu dirigia-me aos barcos estacionados na Baía da Horta muito semelhante à do Porto Grande, havia ali guitarras à minha disposição e um dos pescadores se lembrou de me ensinar os acordes básicos, enfim, aquilo que é básico, portanto, o tom de Mi menor, a primeira, a segunda e a terceira e nunca me esqueci”.
Concluídos o Ciclo Preparatório e parte da Escola Secundária na Horta – Açores, entre 1975 e 1980, Ildo Fortes chega a Lisboa com os pais, ingressa, sucessivamente, nas Escolas Secundárias de Queluz (1980-1984) e de S. João do Estoril (1984-85) e conclui, em 1986, o Ensino Secundário (12º ano) no Externato Frei Luís de Sousa, em Almada. Prosseguindo os estudos em Lisboa, Ildo Fortes ingressa imediatamente no ensino superior, licencia-se em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (1986-1991) e frequenta o Curso de Mestrado em Teologia Sistemática (1991-1993), entre outras ações de formação superior. Adquiridos os primeiros acordes básicos nas traineiras de pesca do atum nos Açores, Ildo Fortes, encontrando-se já em Lisboa, com os pais, em 1980, começa, no ano seguinte, a trabalhar num restaurante, durante o período de férias e, dessa atividade pontual, “caíram uns troquezinhos, comprei a minha primeira guitarra e um livro que se chama Guitarra Mágica. Métodos com Lindas Canções de Eurico A. Cebolo”. Entretanto, antes de rumar para Portugal continental, Ildo Fortes é crismado a 3 de maio de 1977, na Paróquia de Santa Catarina (Faial), por Dom Manuel Aurélio, Bispo de Angra do Heroísmo (Açores). Prosseguindo os estudos em Lisboa, ingressa imediatamente, no ensino superior e, de forma faseada, obtém a licenciatura em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e o Mestrado em Teologia Sistemática, entre 1986 e 1993. No seu percurso vocacional, frequenta, em Lisboa, o Seminário, desde 1984 até 1992. Assim, de forma continuada, ingressa, primeiro, no Seminário Patriarcal de S. José de Caparide, Concelho de Cascais, a 14 de outubro de 1984, depois, passa pelo Seminário Maior de S. Paulo de Almada, 1985 – 1988 e, já na reta final, pelo Seminário Maior de Cristo Reis dos Olivais, 1988-1992). No Seminário, além de outras atividades, aprende o solfejo e, depois, aperfeiçoa-se no canto, chegando, inclusive, durante o seu tempo de seminarista, a ser um dos responsáveis da Escola Cantorum em Lisboa.
Em boa verdade, o seu gosto pela música adquirido ainda durante a infância na ilha do Sal e acentuado nos Açores, aperfeiçoa-se em Lisboa, sobretudo no Seminário, através da aquisição de conhecimentos musicais teóricos e práticos, num processo “sem hiatos e em crescendo permanente”. No Seminário, explica Ildo Fortes”, “é o aperfeiçoamento, a qualidade, a excelência na interpretação, a pauta, o andamento, a expressão, são coisas que se aprendem. Aprende-se ouvindo boa música e aprende-se, também, com bons mestres. No Seminário, graças a Deus, sempre tivemos dois mestres, que nos ensaiavam as peças clássicas (…), nos momentos festivos, fazíamos interpretações polifónicas de várias vozes, além da música litúrgica. O meu grande mestre, já falecido, era o Cónego José Ferreira, um homem apaixonado pela música, com uma sensibilidade fora de série, que marcou a minha vida, ainda hoje. Canto bem, o canto faz parte de mim, no Seminário, sempre pertenci ao coro. Tenho uma iniciação à guitarra clássica (…), cheguei a tocar por pauta. A música é um instrumento que dedico totalmente ao serviço pastoral, uma mais-valia muito grande para o meu ministério, na transmissão da mensagem religiosa”.
Influenciado, na altura, pelos Beatles, Rolling Stones, Carlos Santana e Roberto Carlos e não se considerando “fixado só num tipo de música”, Ildo Fortes, que já tocava um bocadinho de violão aprendido nas traineiras de atum nos Açores, aproxima-se da música tradicional cabo-verdiana, em especial da morna pela qual é apaixonado, e da coladera. Fê-lo, graças à sua prima e cantora, Maria Alice Rocha Silva, que vivia perto da sua casa em Lisboa, e, também, ao seu conterrâneo e parente, Benfeito Mosso Ramos, na altura, estudante na Faculdade de Direito e este já com maior domínio do violão, que “frequentava a casa dos meus pais e com quem tinha sessões musicais”. Ainda na fase de aprendizagem, em Lisboa, recorda Ildo Fortes, “cheguei a tocar violão com o Mestre Luís Rendall, outro amigo dos meus pais que frequentava a nossa casa em Queluz e, sempre que eu pudesse, assistia a espetáculos musicais de consagrados artistas cabo-verdianos como o Paulino Vieira, o Tito Paris, a Nancy Vieira ou a Titina, não obstante o meu estatuto de padre. A música faz parte da minha identidade e não se pode abdicar daquilo que faz parte de nós”. Ildo Fortes é apaixonado pela música tradicional cabo-verdiana e, particularmente, pela morna, “expressão daquilo que eu sinto, a dor, a saudade, a tristeza, a solidão, tudo enraizado “na minha natureza, quiçá pelo facto de eu ter emigrado muito cedo e sentir muitas saudades da terra”.
Em 5 de julho de 1992, Ildo Fortes recebe a ordenação diaconal no Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa, o dito diaconato, que corresponde ao primeiro grau do sacramento da ordem, cuja principal tarefa é “ajudar e servir o povo de Deus”, de acordo com a normas escritas e a prática da Igreja Católica. Mais tarde, a 29 de novembro daquele mesmo ano, recebe a ordenação presbiteral no Mosteiro dos Jerónimos, também em Lisboa, correspondente ao segundo grau da ordem, o que o habilita, a partir de então, ao exercício do sacerdócio na Igreja, em plenitude. Ordenado padre, o Reverendo Ildo Fortes, de nacionalidade cabo-verdiana e portuguesa, só regressaria a Cabo Verde, provisoriamente e a título missionário, em 2005 e, no país, exerce o cargo eclesial de pároco da Paróquia de S. Vicente (2005-2007 e 2008-2011). Entretanto, em pleno exercício do sacerdócio na paróquia sanvicentina, o Padre Ildo Fortes recebe a ordenação episcopal no Mosteiro de S. Vicente de Fora (Lisboa), equivalente ao terceiro grau da ordem, e é nomeado Bispo da Diocese de Mindelo, onde presta serviço até agora. Com responsabilidades acrescidas que lhe confere o estatuto de Bispo, Dom Ildo Fortes prossegue a sua vocação religiosa, afinal a sua maior paixão, que é a de se “dedicar aos outros, anunciar a palavra de Deus, falar com os jovens, visitar os pobres”, sem, todavia, descurar a música. Longe de a descartar e em nome da autenticidade, defende o Bispo de Mindelo, “a música não sai de mim (…), creio que não poderei ser um bom padre se não for autêntico (…), isto é, tudo aquilo que fizer parte de uma identidade não se pode pôr fora”. Quando, ainda hoje, como Bispo, frequenta locais públicos, em atividades que, de algum modo, relevem da sua função eclesiástica e exigem alguma animação, “o meu povo sabe que gosto de música (…), gosto muito de cantar, as pessoas pedem-me que toque ou cante, faço-o com prazer, ainda que possa parecer estranho”.
De facto, a fé e a religião, que refletem a cultura e a identidade cabo-verdianas, permeiam a música tradicional como dá conta, por exemplo, a famosa morna Nossa Senhora de Fátima interpretada magistralmente por Bana e tão valorizada pela comunidade da Igreja Católica. No sentido contrário, a música litúrgica, concebida apenas para momentos especiais de oração, exaltação e agradecimento, através de cânticos próprios, absorve elementos da música tradicional cabo-verdiana, numa relação de cumplicidade absolutamente natural entre a Igreja, como veículo privilegiado de transmissão de cultura, e a música profana ou secular. A pessoa crente, sublinha Dom Ildo Fortes, “quando fala da sua vida, do seu sofrimento, e das suas alegrias, no dia-a-dia, vai buscar à linguagem quotidiana e à tradição do nosso povo expressões como ‘Deus tá companhóbe’ ‘graças a Deus’, entre tantas outras. Portanto, é normal que eu leve tudo aquilo que é a minha própria identidade para a minha música litúrgica, isto é, a minha alegria, a minha angústia, a minha fé. Creio que encontramos na morna o espelho, o reflexo daquilo que é a pessoa. Não me espanta que expressões como Nossa Senhora de Fátima ou Nossa Senhora da Luz apareçam na música tradicional cabo-verdiana, particularmente na morna”. Compreendendo a dimensão sociológica da Igreja, Dom Ildo Fortes, na sua nobre missão de partilhar a fé cristã e servir os crentes, apropriou-se da cultura musical tradicional cabo-verdiana e, em especial, dos instrumentos musicais como o violão e o canto, que, de resto domina, para fazer chegar a milhares de fiéis que dela tanto precisam a sua mensagem de esperança e renovação permanente.
César Monteiro, sociólogo e investigador
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1081 de 17 de Agosto de 2022.