Nos diversos sectores da governação teriam, evidentemente, de ser definidas prioridades e, certamente, como nem tudo do legado colonial estaria errado ou seria negativo, em alguma coisa havia alguma boa experiência ou algum modelo a ter-se em conta.
No caso das ligações marítimas, já havia muita capacidade demonstrada e, priorizou-se, ainda nos primeiros cinco anos, a criação de uma frota mercante nas duas vertentes, isto é, cabotagem e longo curso cuja finalidade era o abastecimento do país nos domínios da importação e da distribuição interna. Apesar da existência de frotas privadas que já asseguravam, nas condições de então, a conectividade entre as ilhas, surgiram as companhias estatais Arca Verde e Naguicave. Esta última, pela composição do nome, vê-se que estava associada ao efémero projeto de “unidade Guiné-Cabo Verde”.
Para as duas ilhas, Santo Antão e Brava, que não dispunham de ligações aéreas em virtude de não disporem de infraestruturas aeroportuárias, foram definidas carreiras regulares e afetados navios, em regime de exclusividade. Quanto às restantes ilhas, nunca foram estabelecidas nenhuma regularidade nem previsibilidade de ligações, tendo em conta que as embarcações de cabotagem, sob a gestão da Arca Verde, estavam quase que meramente ao serviço da EMPA, a empresa pública de abastecimento de produtos da primeira necessidade. Aliás, essas duas instituições eram complementares, tendo em conta o figurino da estatização da economia que se implantou em Cabo Verde, nessa altura. Quanto ao comércio privado, este ficou condicionado, em função das limitações a que estava sujeito, tendo em conta que a empresa pública de abastecimento era de vocação monopolista e muitas vezes os poucos navios, propriedades de armadores privados, eram também absorvidos por afretamento pela própria EMPA.
Em 1987, dois anos após a comemoração do décimo aniversário da independência nacional, o governo alemão ofereceu a Cabo Verde os dois emblemáticos navios “Barlavento e Sotavento”. Este donativo veio proporcionar outras condições na movimentação de cargas e passageiros, por via marítima, entre as ilhas, tendo em conta que essas duas unidades, na altura acabadas de construir, estavam já dotadas de tecnologia mais avançada no que se refere à operação carga e descarga de mercadorias pesadas como também alguma comodidade para o transporte de passageiros. Com essa disponibilidade, em termos de frota, foram criados circuitos de ligações regulares contemplando as demais ilhas com ligações semanais ou às vezes quinzenais visto que, de vez em quando, um desses navios tinha de se deslocar até ao Senegal para transporte de passageiros e cargas ou então substituir o ferry boat Porto Novo na linha São Vicente/Santo Antão. Estamos a falar, todavia, de um contexto numa época em que o país tinha grandes limitações no que se refere às infraestruturas portuárias. Pois, além do Porto da Praia e do Porto Grande em São Vicente, somente em Porto Novo detinha condições de atracação de navios. Portanto, com o embarque e desembarque de passageiros, operações carga e descarga em “alto mar”, a eficiência da conectividade era significativamente baixa.
No início da década de noventa, em decorrência do impacto do fim da guerra fria, houve uma nova definição geopolítica internacional e um novo figurino no comércio internacional, implementado pela liberalização da economia que, em consequência e de forma muito rápida dita novas exigências no transporte de mercadorias, pela via marítima, entre os países e entre os continentes, designadamente em porta contentores. Este cenário, com a agravante da vetustez de alguns dos nossos navios e da exiguidade do nosso mercado, determinou a perda de competitividade da marinha cabo-verdiana de longo curso (sector público e sector privado). De todo o modo, cabia ao Estado assumir as suas responsabilidades no concernente à conectividade entre as ilhas. Em resposta, foi solicitado um estudo de âmbito internacional cujo resultado recomendaria um tipo de navio adequado à nossa realidade e às características do nosso mar. Na sequência disso, chega em Cabo Verde no ano de 1999, o navio Praia d`Aguada que seria o primeiro de um projeto que contemplava três unidades do tipo. Projeto, todavia, que não teve continuidade, em virtude da alternância politica ocorrida em Cabo Verde, dois anos depois.
No ano de 2004, por iniciativa de um cidadão, na altura deputado da nação, criou-se a companhia STM com a aquisição do ferry Tarrafal e depois o Sal Rei, que, a nosso ver, serviu, com muitas limitações, é certo, o país durante algum tempo. Não teve, porém, a devida atenção dos poderes públicos e com o infortúnio de um acidente grave com uma das suas embarcações no Porto da Praia acabou por ditar a perda do navio e o fim da companhia. Nessa altura o país encontrava-se numa completa indefinição no dizia respeito a rotas, programação e disponibilidade de barcos para o transporte entre as ilhas. A situação era tão desgastante e a angústia das populações das chamadas ilhas periféricas era de tal ordem que, aí para 2009/10, um Presidente de Câmara Municipal, para animar os seus munícipes, anunciou que iria adquirir um navio de cabotagem e a Câmara dirigida por ele iria transformar-se em entidade armadora e de agenciamento.
Numa parceria público-privada, surge a companhia “Cabo Verde Fast Ferry”, como o próprio nome indica para operar com catamarans de alta velocidade, porém com limitações no número de passageiros, na capacidade de carga e na autonomia do tempo de viagem. Para poder operacionalizar a companhia, o Estado tinha de entrar com o chamado subsídio de exploração no valor de 100 mil contos. O primeiro navio a chegar, no início de 2011, veio com a missão definida de ligar três das ilhas do sul do arquipélago (Santiago, Fogo e Brava) enquanto que o segundo que chegaria em 2014 estaria destinado a estabelecer ligações periódicas em três das ilhas do norte, isto é, Santo Antão, São Vicente e São Nicolau. As restantes ilhas ficaram de fora do circuito e sem qualquer cobertura programada. Perante tal cenário, alguns armadores privados andavam com lista aberta aguardando quantidade de carga ou número de passageiros que justificasse o agendamento das viagens. Na época alta ocorria exatamente o contrário, isto é, tendo em conta a alta da procura propício da temporada, por exemplo, para viajar de barco da ilha do Sal para São Nicolau ou São Vicente os passageiros teriam de dormir durante uma ou duas noites, na fila, à frente de uma agência de viagens para conseguir o bilhete de passagem e efetivar a viagem. Na vertente económica, um agricultor da ilha de São Nicolau não tinha qualquer possibilidade de colocar os seus produtos no mercado turístico da ilha da Boavista.
Os factos elencados evidenciam a dinâmica e os percalços que o sector dos transportes marítimos tem conhecido ao longo destas quase cinco décadas do Cabo Verde independente. Ao longo deste tempo, o período entre 2008 e 2016 terá sido o mais sentido pelos operadores económicos, visto que, nessa altura, as autoridades governamentais priorizaram a expansão e requalificação de alguns portos, em detrimento dos meios de ligação.
Na nossa condição de país arquipelágico, com nove ilhas habitadas e, tendo em conta aquilo que é a nossa realidade, não há outra via pela qual se deve criar condições para garantir mais equilíbrio e mais equidade nas condições de vida dos cidadãos e fazer integrar a economia de cada ilha e região no todo nacional. Por isso é que sempre se justificou e se justifica que o transporte marítimo de cargas e passageiros entre as ilhas seja encarada como uma das prioridades da governação. Felizmente, em 2016, o sector foi assumido, pelo actual Governo como uma área de serviço público e, como tal, assinado um contrato de concessão, em 2019.
A seriedade e a prosperidade de um país exigem que os contratos devam ser cumpridos de forma exemplar. Esperemos que isso aconteça nesta área tão vital para cada uma das ilhas e para a coesão do país.
Para tal, devem estar criadas as condições para materialização daquilo que é o objetivo primordial (neste caso, as ligações com regularidade e previsibilidade) e evitar estar a trabalhar no limite.
Neste sentido, parece-nos que à materialização do anúncio da aquisição dos quatro navios, com as condições exigidas para o reforço do mercado atual, deve ser dada toda a prioridade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1130 de 26 de Julho de 2023.