Crónica de um Estádio Ultrajado

PorAmílcar Spencer Lopes,23 out 2023 7:51

​Di Deus saíra de Cabo Verde era eu ainda uma criança, praticamente. É claro que eu conhecia o Di Deus e o Di Deus me conhecia. Só que nos separava meia geração. E essa diferença de idades contava, na altura.

Deste modo, foi só no Verão de 1977 que viemos a reencontrar-nos, já adultos, numa noite de serenata, em Ribeira Brava, ele vindo de Angola, onde trabalhara como funcionário do Quadro Administrativo, e já colocado em São Nicolau (SN), como Juiz de Região de 2ª. Classe, após ter frequentado, com sucesso, um Curso de Solicitadores Judiciais, e eu chegado de Lisboa, onde me encontrava a estudar Direito, na Universidade Clássica de Lisboa.

Depois de uma passeata de bordões sonantes e choradinha miúda, pelas ruelas da Vila, temperada com um groguinho, de quando em vez, para amaciar os dedos e sublimar a inspiração, a malta recolheu-se e ficamos os dois, num banco do Terreiro, a cavaquear. Discutimos, altercamos, divergimos e ficamos amigos jurados.

Di Deus era um homem de paixões. Inteligente, sensível, generoso, e empenhado. Era, acima de tudo, autêntico. Como o Blá gosta de dizer, “ele era um bom cabo-verdiano”.

Ora, Di Deus, em 1992, foi eleito Presidente, da então Câmara Municipal de São Nicolau.

Ele não queria candidatar-se. Numa tarde em que eu fui procurar o Jaime do Rosário, em casa da Mã ‘Béna, esta questionou-nos sobre as eleições autárquicas que se avizinhavam e o Jaime disse à Mã ‘Béna: – “nôs candidato ê Di Deus, má el ka qrê tma sela”.

E, Mã ‘Béna: – “Csaiê!? Óme, dxâ Joãozinh tchgâ aí, q nô ta combersâ”.

E foi assim que, no dia seguinte, o Di Deus comunicou-nos que, afinal, aceitava a candidatura. Mas, foi avisando que era só para um mandato, pois, já não se sentia com sacada para dois, acrescentando que trabalho de povo era coisa de grande responsabilidade.

Di Deus era, também, um desportista nato. De uma família com têmpera e arte para a competição desportiva, ele fora um bom guarda-redes, no seu tempo do liceu, em S. Vicente, e teria continuado a jogar futebol, já em Angola, onde ficou com o dedo mindinho da mão direita inteiriçado para sempre, por imprevidência na defesa de um tiro de canhão, de um ponta de lança esfomeado, como ele contava.

Como ele gostava de lembrar, na sua juventude não existiam infraestruturas desportivas em SN. Mesmo para o futebol – sua grande paixão – os campos eram inexistentes.

De facto, o futebol, em SN foi implementado na década de cinquenta do século passado, muito por carolice, diga-se, do senhor José Joaquim Alves, português que se estabelecera na ilha, nos anos trinta do século passado, e se tornou um comerciante e industrial proeminentes.

Providenciou-se, então um pequeno campo de futebol, no Fundo da Tabuga, mesmo ao lado do Cemitério Municipal. Campo esse que teria pouco mais do que as dimensões de uma placa desportiva, dos tempos de hoje.

Eu mesmo assisti, aos domingos, a muitas partidas de futebol, nesse pequeno campo, especialmente na época das férias escolares, e ali joguei, pelo menos até os anos sessenta, daquele século.

Pois é, o Di Deus contou-me que, nas Férias Grandes, vinha do Pico Agudo, depois do almoço, para treinar, à tardinha, na Tabuga e poder jogar aos domingos com os rapazes de Stancha, daquele tempo, e outros colegas do liceu, de férias, na ilha. E, muitas vezes, para que a noite não o apanhasse, no caminho de regresso a Pico-Agudo, dormiu na padaria de Nhô Mané Fonseca, graças à deferência do seu amigo Pifa.

Apaixonado como era pelo futebol, quando o Di Deus se apanhou como Presidente de Câmara Municipal, decidiu proporcionar aos jovens sanicolaenses as infraestruturas desportivas de que ele não pudera beneficiar, na sua adolescência e juventude. E desatou a construir campos e placas desportivas, em quase todas as localidades do seu Município. Por fim, empenhou-se em dotar o Município, de um “Estádio”.

Vale dizer que o campo de futebol da Chãzinha é relativamente recente. De facto, depois da Tabuga, os futebolistas da Ribeira Brava passaram a jogar, em finais dos anos cinquenta, no Campo do Norte, já com dimensões mais adequadas às regulamentares.

Na primeira metade de sessenta, um topógrafo português de nome Germano, que estava à frente da chamada Brigada de Estradas, resolveu construir um campo de volley, com piso de jorra, na Chãzinha, com o fito de diversificar as práticas desportivas, na ilha. A modalidade não atraiu, contudo, praticantes. Mas, o campo ficou ali e, uma década mais tarde, sensivelmente, o espaço foi alargado e murado e passou-se a jogar ali, oficialmente, poupando nas despesas com os transportes para Chã de Norte, e garantindo maior assistência do público, já que Chãzinha, a Nordeste, fica, mesmo à saída da Vila.

Só que, Chãzinha não tinha, também, dimensões para um campo de futebol regulamentar e projectado para o futuro. O comodismo e a lei do menor esforço, aliados à proverbial falta de meios, acabaram, todavia, por instalar o hábito e, dessa feita, ficou cada vez mais difícil convencer a massa juvenil e a população, em geral, a mudar para local mais apropriado.

Equacionados, pois, as alternativas, os meios e o tempo, Di Deus decide, já perto do final do mandato, investir cerca de nove mil contos (que era um dinheirão na altura, para os cofres municipais) e transformar o Campo de Futebol, da Chãzinha, num Estádio Municipal.

Concluída a obra, Di Deus deu à infraestrutura o nome de Estádio Municipal 13 de Janeiro.

A audácia era de mais, para certas mentes acanhadas: em primeiro lugar, significava a concretização de uma aspiração da juventude sanicolaense, negligenciada durante tantos anos; em segundo lugar, a atribuição ao estádio de nome tão sonante e com um simbolismo tão expressivo, brigava com o ego daqueles que não tinham dado atenção ao propósito ou sabido interpretar o sinal dos tempos. Estas circunstâncias despertaram invídia e germinaram rancores.

Di Deus terminou o mandato e, fiel à sua advertência inicial, não se disponibilizou a candidatar, a um segundo. Pouco tempo depois viria a falecer, vítima de um acidente cardiovascular.

Entretanto, a correlação de forças políticas alterou-se, em 2000.

Na primeira oportunidade, numa atitude, quanto a mim, populista e indecorosa, e para gáudio dos que tinham estado a incubar a desforra, a nova edilidade deliberou mudar o nome do Estádio Municipal, de 13 de Janeiro, para o de Di Deus. Ou seja, a pretexto de se perpectuar a memória do Di Deus, apagava-se, sorrateira e astuciosamente o nome de 13 de Janeiro, que ele, Di Deus atribuíra, carinhosa e significativamente, ao Estádio. Uma hipocrisia, sem limites…

Uma paz podre, em chão poroso. Porque, se no Fogo pode haver, pacificamente, um estádio com o nome de 5 de Julho, na cidade de S. Filipe, por que é que em São Nicolau não pode haver outro, com o nome de 13 de Janeiro, na Ribeira Brava? De que lado estão, afinal, o revanchismo e a intolerância?

Quando, em finais de Março de 2004, eu fui eleito Presidente da CMSN, o Município ainda investiu algum dinheiro na recuperação das bancadas e melhoramento dos balneários e acessórios, dessa infraestrutura desportiva, mas deixamos claro que a ambição e o caminho certo seriam a construção de um Estádio Municipal, de raiz, localizado em Chã de Norte, previsto, aliás, no Plano Detalhado, daquela localidade, entretanto aprovado e publicado.

Não fomos reeleitos, em 2008, e a ideia foi posta de lado, pelos novos detentores do Poder Local.

A nova edilidade preferiu, com efeito, contrair um empréstimo bancário de cinquenta mil contos, junto do BCA e o Governo, através do Ministério da Juventude e Desporto, comparticipou com mais dezasseis mil e quinhentos contos, arrecadando, assim, um montante total de sessenta e seis mil e quinhentos contos, para trabalhos de arrelvamento do Estádio existente. A obra resultou num malogro e a edilidade seguinte ainda foi na onda de contrair outro empréstimo, agora junto da CECV, de outros cinquenta mil contos, para tentar remediar o irremediável.

Como, sabiamente, diziam os latinos, “abissus, abissum invocat!”. Traduzido à letra, o abismo invoca o abismo. Dito de forma mais terra-a-terra, o mal, atrai o mal; buraco puxa buraco.

É tempo, parece-me, de serena e convictamente, se passar a gerir os recursos públicos com mais parcimónia, visão e rigor. A meu ver, não se pode, ou pelo menos não se deve continuar a enterrar dinheiros públicos num projecto, que já se revelou esgotado.

Claro que a pressão que se está a fazer sobre a actual CMRB, em SN, por causa do mau estado em que se encontra o relvado do Estádio Di Deus, a ponto de se simular um fogo posto sobre o mesmo, não é ingénua. Fogo posto, porém, é crime. É, também, um acto vil, de cobardia e degeneração. Como chantagem, é, indubitavelmente, uma atitude irresponsável e suicida. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1142 de 18 de Outubro de 2023.

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Autoria:Amílcar Spencer Lopes,23 out 2023 7:51

Editado porAndre Amaral  em  23 out 2023 7:51

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