O chumbo a Jassira Monteiro: um choque coletivo no feminino

PorMargarida Fontes,18 mar 2024 7:49

Margarida Fontes - Jornalista e escritora
Margarida Fontes - Jornalista e escritora

As celebrações de Março acontecem como uma espécie de presente para as mulheres, e nós em Cabo Verde temos neste mês dois dias plenos para imaginar que somos importantes, de verdade: 8 e 27 de Março. Os discursos que ouvimos nesses dias e os eventos e reflexões que são promovidos levam-nos a tremores internos que bombeiam nossa fé nas mudanças que esta sociedade machista possa fazer, onde há muita aceitação discursiva e ritualística, em nome da igualdade de género, mas as resistências em mudar as atitudes continuam firmes.

Até cai bem perceber que hoje temos mulheres no Parlamento a honrar o seu lugar de fala, destacando-se na atuação de todas os dossiers e natureza de debates. Não estão circunscritas a determinadas áreas e sectores. Isso já é bom. Ganhos similares existem no poder executivo. Só que essa mesma proeminência da mulher não é sentida num cargo eletivo como a liderança de uma câmara municipal. Aí onde a aceitação de determinados signos do poder são testados no jogo da proximidade, do escrutínio comunitário, do embate e da interação mais intensa. São esses signos que dão corpo ao que poderia se considerar verdadeiro poder. Neste caso, o poder das mulheres também.

Há regiões destas ilhas onde esse escrutínio comunitário tende, alegadamente, a adotar padrões e crenças ultrapassadas e machistas que ditam sondagens e perspetivas de análises suscetíveis de levar a tomada de decisões chocantes. Uma dessas decisões, verdadeiramente chocante, é a retirada do nome natural de Jassira Monteiro como candidata à presidência da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago. Chocante à primeira vista, e ponto final. Quando se toma conhecimento das razões desse afastamento, percebe-se que elas baseiam-se em contextos externos, ou seja o Movimento para a Democracia parece não ter se envolvido ativamente, com as virtualidades de um partido político, na decisão que tomou. Essa leitura se evidencia, ao remeter-se o fundamento da decisão para sondagens e outros critérios políticos, quando se deveria priorizar outras ponderações importantes: se se avalia, de facto, negativamente o desempenho da Presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina com resultados aquém do esperado, ausência de visão e políticas, eventuais retrocessos na gestão camarária. Se for o caso, isso deve ser dito e assumido.

Naturalmente, isso não é evidente, porque a opinião pública que também detém instrumentos para avaliar o desempenho de um gestor camarário não percebeu qualquer falta de habilidade política por parte de Jassira Monteiro que pudesse ditar a sua saída do jogo. Muito pelo contrário.

A outra ponderação necessária seria refletir, com sentido de causa, sobre o ativo importante desse partido ter a única mulher a concorrer para a liderança de uma câmara, e assumir os riscos dessa decisão, nestes tempos em que abundam os discursos de igualdade e paridade de género. O risco assumido pela decisão poderia ser compensado com uma campanha bem estruturada, um discurso político pedagógico, contribuindo para a renovação de narrativas e mentalidades que até impedem o desenvolvimento sustentável dos nossos municípios e do país de modo geral. Esse risco se transformaria num trunfo político.

Jassira Monteiro assumiu a Presidência da Câmara Municipal de Santa Catarina, na sequência do trágico falecimento de Beto Alves, por causa da lei de paridade, e o seu desempenho, naquilo que nos é dado a perceber, foi louvável, com um legado fundamentalmente na área social. A construção do Centro de Acolhimento e Integração Social, do centro de cuidados para crianças a adolescentes, e centro de emergência infantil, a recuperação de dezenas de habitações e a construção de outras, são exemplos.

Se sabemos que as mulheres podem fazer a diferença para a eficácia na democracia, e garantir um equilíbrio de fala no espaço público; se sabemos tudo isso, porque escutar a voz do machismo?

Surpreendeu a sua capacidade de apaziguar os ânimos daquele centro político. Adotou uma postura serena, dialogante, inclusiva, e de construção de pontes, tão necessária, e que não era habitual na política nesse pólo de Santiago Norte. Apesar de estar a navegar num terreno traiçoeiro e de ocupar uma cadeira muito desejada, nunca se colocou em situação de permanente disputa com os seus potenciais adversários. Abriu mão desses enfrentamentos inócuos e ganhou pontos junto da opinião pública. Mas isso não parece ter contado como trunfo político para o seu partido.

A provocação muito simples que deixamos aqui é esta: se a sociedade, ou uma determinada região do país é machista, e se todos sabemos que o machismo é um empecilho para o desenvolvimento, e sobretudo uma fraqueza cultural que impede a diversidade e a eficácia na implementação das políticas públicas que atendam às necessidades específicas das mulheres; se sabemos, outrossim, que as mulheres continuam a ser o rosto da pobreza em Cabo Verde, as maiores vítimas da violência psicológica e física neste país; se sabemos que as mulheres podem fazer a diferença para a eficácia na democracia, e garantir um equilíbrio de fala no espaço público; se sabemos tudo isso, porque escutar a voz do machismo?

Pergunta-se ainda qual é o papel ativo dos partidos, essa instituição central das nossas sociedades democráticas, na mudança de mentalidades? Os partidos políticos exercem uma função profunda e difusa de representatividade, com o seu relevante papel na democracia indireta, muito estribado na sua razão de existir. Há uma intermediação fundamental que os partidos políticos exercem entre eleitores e eleitos, governantes e opinião pública que faz toda a diferença no sistema político. Os partidos políticos auxiliam a democracia, quando colaboram na representação de minorias, de mulheres, de pessoas com necessidades especiais, tentando assegurar a sua representação política. É esse papel pedagógico e necessário que se esperava do Movimento para a Democracia nessa oportunidade única que tinha nas mãos: a de ter uma mulher disponível para enfrentar essa batalha. Nunca esse chumbo que choca todas as mulheres deste país – ou, se calhar, grande parte delas. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

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Autoria:Margarida Fontes,18 mar 2024 7:49

Editado porAndre Amaral  em  18 mar 2024 7:49

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