Os miliares portugueses tinham derrubado naquele dia Marcelo Caetano, o último Presidente do Conselho do Estado Novo. Aqui, em Cabo Verde, o povo reagiu ao derrube do regime, apenas dias depois e não tivemos manifestações como houve em Portugal, no mesmo dia, da queda do governo.
Eu era muito novo ainda e era estudante do então Liceu Adriano Morreira, hoje Liceu Domingos Ramos. Lembro-me que minha mãe estava preocupada porque meu irmão e meu pai tinham emigrado para Portugal. Nos finais dos anos 60 e início dos anos 70, houve uma grande leva de emigração para Portugal. Foi desta forma que os meus familiares foram para a terra lusa. Uma vez que a nossa rádio em casa estava avariada, não acompanhávamos as noticias que vinham da então metrópole. Falava-se de boca a boca que uma revolução tinha eclodido em Portugal, a repressão era forte e todos temiam a tenebrosa PIDE/DGS, a polícia política do regime. Entretanto, na Cidade da Praia a temperatura ia aquecendo à medida que se aproximava o 1º de Maio. Todavia, duas coisas chamaram a minha atenção: que a mudança tinha chegado e era irreversível. Primeiro, havia um funcionário do liceu que se dizia que era informador da PIDE, todo mundo tinha medo dele. Um dia, vi um colega da turma, destemido, a discutir com ele assuntos ligados à politica, acto impensável nos dias anteriores ao 25 de Abril. Segundo, a PIDE tinha um escritório na actual Rua 5 de Julho, no Plateau. Era na mesma rua que eu passava quando eu ia ao liceu ou regressava à casa. Meu espanto foi que ao passar pela mesma rua, num dia, vi que a placa afixada que dizia Direcção-Geral de Segurança tinha sido retirada. Tendo ficado surpreendido, um colega de turma disse-me que a PIDE já não existia. Vejamos agora a mudança do nome PIDE, Policia Internacional e de Defesa do Estado, para DGS, Direcção-Geral de Segurança. Marcelo Caetano subiu ao poder em 1968 e querendo mostrar que ia fazer mudanças, mudou o nome da PIDE, vindo do tempo de Salazar, para DGS, mas, no fundo, a instituição continuava na mesma, isto é, praticando os mesmos actos, prendendo, torturando as pessoas e outros actos abomináveis.
Viaturas da PIDE/DGS são incendiadas
Era no dia 30 de Abril, véspera do 1º de Maio. Da minha casa, situada em Achada Santo António, no período da noite, resolvi ir visitar um colega da turma que morava pelo lado de DI Nôs. Ao passar pela estrada, vi uma quantidade enorme de fumo que subia ao céu no Plateau. Naquele tempo não se dizia Plateau, mas sim Praia. Vendo os fumos, pensei que um incêndio de grande dimensão tinha deflagrado ali. Não resisti, fui ver o que se passava. Chegado ao local, vi que eram viaturas da PIDE que foram incendiadas pela população que entrou em revolta. Vim a saber depois que uma das viaturas incendiadas pertencia ao meu professor de Trabalhos Manuais. O professor era muito duro e rigoroso, por sim e por nada, expulsava o aluno da sala, com falta disciplinar, mas eu não sabia que era agente da PIDE. A PIDE tinha no Plateau dois escritórios: um na Rua 5 de Julho, como já foi dito, e outro atrás da Igreja, onde funcionava o antigo Secretariado Administrativo. Ambos escritórios estavam rodeados pela polícia para impedir qualquer ato vindo da população contra os mesmos edifícios. Constatei também que havia um grupo de pessoas comandado por um adulto, com megafone na mão, dando ordens ao grupo para fazer caça aos informadores da PIDE e praticando outros actos. Pude ver uma pessoa receber acoites ou sova do grupo. Também vi uma viatura que foi quebrada e com muita sorte não foi incendiada porque o combustível que estava no recipiente tinha esgotado. O grupo queria continuar na sua ação, mas foi aconselhada pelo chefe para descansar para que no dia seguinte fossem ao Tarrafal libertar os presos políticos. Sobre os agentes da PIDE, soube depois que recolheram ao Quartel da Tropa, no Plateau, com a família, desta forma livraram-se de qualquer acto que lhes poderiam tirar a vida.
Minha chegada ao ex-Campo de Concentração do Tarrafal coincidiu com a libertação dos presos angolanos
No dia 1º de Maio todos os caminhos iam dar ao Tarrafal de Santiago. Quem tinha viatura, ia sem problemas, diferente dos dias de hoje em que deslocar ao Tarrafal não constitui nenhum problema. Fui num camião da antiga casa comercial, SERBAM. O camião era para transporte de mercadorias, mas mesmo assim fomos, acomodados uns em cima dos outros na carroçaria. O carro tinha alguma avaria porque ia muito lentamente. No concelho de Santa Cruz, onde havia uma propriedade do Engº Almeida Henriques. Pediu-se à empresa um camião, com melhores condições, para nos transportar ao Tarrafal. Gentilmente, o camião foi cedido. Uma vez chegado ao ex-Campo de Concentração do Tarrafal só podemos assistir à libertação dos presos políticos angolanos porque os cabo-verdianos já tinham sido libertados. A entrada dentro do Campo era difícil porque havia um conjunto de soldados portugueses bem armados. Os presos políticos angolanos vinham em grupo para nos abraçar, muitos com lágrimas nos olhos, porque o dia da libertação tinha chegado para eles. No regresso à Praia, houve um desfile de carros, por onde passávamos, havia saudação de pessoas para com o momento político que se vivia.
A revolta no Liceu Adriano Moreira
O Liceu Adriano Moreira, hoje Liceu Domingos Ramos, funcionava em dois turnos: de manhã, o Ciclo Preparatório e à tarde era Liceu. Eu era aluno do Ciclo Preparatório. O 25 de Abril mudou por completo o comportamento dos alunos. Os alunos passaram a fazer reivindicações que antes era impossível: discutiam com professores assuntos que antes do 25 de Abril era impossível. Lembro-me de dois momentos em que os alunos pararam o funcionamento das aulas. Primeiro, foi aquando da chegada à Praia dos presos políticos cabo-verdianos que estavam em Angola. A recusa em assistir às aulas foi grande que a direcção do estabelecimento escolar acabou por aceitar que não se desse aulas nesse dia, permitindo àqueles que quisessem ir ao Aeroporto receber os referidos presos, o fizessem sem nenhum constrangimento. Segundo, tinha havido confrontos entre militares portugueses e civis cabo-verdianos que resultaram nalguns feridos que foram receber assistência médica no Hospital da Praia. Os alunos mais uma vez pediram a suspensão das aulas, argumentando que queriam visitar os doentes no hospital que tinham sido alvejados no dia anterior pelos militares. As aulas foram também suspensas nesse dia. Nessa questão de revolta, os alunos de manhã eram incentivados pelos alunos do período da tarde, alunos mais velhos e mais experientes.
Não podia terminar nesta parte concernente ao liceu, sem falar de dois factos. A disciplina chamada Religião e Moral era obrigatória e dada por elementos da Igreja Católica, padres ou freiras. Após o 25 de Abril, a referida disciplina deixou de ser obrigatória e passou a ser opcional. Somente eu e mais dois ou três alunos é que ficamos. Atraia-me muito, não por uma questão de espiritualidade, mas a simpatia pela professora que era minha amiga. Segundo facto, ficámos sem o professor de Trabalhos Manuais, sabendo o que se passou com o mesmo, cuja viatura, como acima referido, foi incendiada. Quem passou a nos dar aulas foi o recém-saído da Cadeia do Tarrafal, o preso político Pedro Martins, hoje falecido e que Deus o tenha. Quando Pedro Martins saiu da Cadeia ainda não tinha feito o curso de Arquitectura. Totalmente diferente, o novo professor era amigo dos alunos e procurava inteirar-se dos problemas dos alunos, ajudando-os a resolvê-los. Foi o primeiro professor com quem conversamos sobre política.
O 25 de Abril livrou-nos de ir à chamada guerra colonial
A preocupação de qualquer jovem antes do 25 de Abril era quando chegar o período de prestação do serviço militar obrigatório que podia ser nos três palcos onde havia guerra: Moçambique, Angola e Guiné. Foi no ano de 1970 ou 1971, que vi vários cabo-verdianos partirem para Portugal para receberem instrução militar e depois seriam distribuídos para as colónias onde havia guerra. Também vi a tristeza que atingiu algumas mães que ficaram em cama por causa da partida dos seus filhos. Meu irmão mais velho tinha ido a Portugal para instrução militar e depois foi colocado em Moçambique. Alegria só voltou ao seio da nossa família quando ele regressou.
Estando preocupado com o que o futuro me podia reservar, desabafei com meu pai e este me disse: “Até quando atingires a idade de ir à tropa, a guerra estará acabado”. Jesus Cristo ouviu e disse “Amém”. Pois, o “Amém” chegou na madrugada do dia 25 de Abril de 1974. Citando a escritora portuguesa, Sophia de Mello Breyner, “Esta é madrugada que eu esperava”.
Com o 25 de Abril de 1974, houve pluralismo politico em Cabo Verde, mas foi sol de pouca dura
É errado pensar que a liberdade e a democracia aconteceram em Cabo Verde, em 1990, com abertura e a alternância política em 1991. Logo a seguir ao 25 de Abril, houve também liberdade e democracia, senão vejamos: havia o chamado multipartidarismo que é uma das componentes essenciais de qualquer pluralismo politico. Tínhamos o PAIGC, Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde, que estava na luta armada na Guiné-Bissau e em Cabo Verde actuava clandestinamente; a UPIC, União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde, dirigida pelo Dr. Leitão da Graça que estava no exílio e a UDC, União Democrática Cabo-verdiana, partido fundado após o 25 de Abril. Todos esses partidos actuavam livremente e com acesso à comunicação social do Estado. Aqui na Cidade da Praia, lembro-me de ter ouvido o Dr. Leitão da Graça a falar na rádio assim como cheguei a ouvir dirigentes do PAIGC a falarem na rádio. Para além do acesso à rádio, as pessoas podiam fazer manifestação e fazer outras coisas que só numa democracia existe. Ora, todo esse pluralismo acabou meses depois e o povo cabo-verdiano sabe o que se passou. A madrugada que Sophia esperava vincou em Portugal, mas aqui não porque foi sol de pouca dura. A dita madrugada foi adiada para os anos 90.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024