A celebração tinha sido maravilhosa, presidida pelo Bispo D. Teodoro que nos falou de coisas lindas, do que é ser profeta ontem e nos dias de hoje, da alegria de responder sim a Deus em cada um dos nossos atos. Foram tantas as palavras de esperança trazidas por D.Teodoro que pairava no Estádio da Calabaceira um clima de paz, amizade e muita alegria não nos deixando sentir qualquer cansaço apesar das mais de duas horas já passadas. Já nos momentos finais, os discursos também muito bonitos e bem articulados de agradecimentos do Pároco e do recém-ordenado Frei João Michel, foram precedidos pelo de Frei Gilson e até hoje sorrio com o Jesus que dança!
A religiosidade faz parte do povo cabo-verdiano. Não só desse povo que enche as missas dominicais ou os cultos de outras igrejas e entidades religiosas, mas do cidadão no seu dia a dia. Penso nas vendedeiras do mercado do Plateau que muitas vezes na semana, passam pela Igreja e nela se quedam orando, que participam no terço que precede a missa das 12:30. Quantas vezes, no meio das minhas orações, nesse mesmo lugar para onde também vou algumas vezes no final da manhã, me deparo olhando para estas vendedeiras que se identificam pelos aventais bordados ou com rendas, lindos. Olho para elas e vejo mulheres que oram. Mulheres que oram por elas, pelos filhos, pelos pais, não sei. Só sei que oram com total confiança. Quantas vezes invejei a fé inquestionável que senti transparecer de cada uma delas! Queria ser como elas no momento em que as miro: mulheres que oram sem a mínima dúvida ou questionamento. Totalmente imbuídas de fé.
Essa mesma fé que vejo no jovem adulto que a minha frente se senta para comer a sua cachupa no pequeno-almoço, mas que antes de pegar nos talheres se benze, não num gesto automático, mas calmamente, com os olhos meio cerrados, onde percebo o agradecimento que dirige a Deus pelo alimento que lhe foi posto à frente. Num café, cheio de gente, este jovem vive com grandeza a sua fé e dela dá testemunho sem que nada precise de dizer.
E a fé caminha pela cidade ao volante de um táxi. Uma viatura meio desconjuntada, quase parece que a qualquer momento cai uma peça importante e eu me pergunto como apanhei um táxi tão velho quando a cidade tem tantos táxis novos? A pressa de chegar ao Tribunal. Pressa típica de uma mulher que está sempre a correr entre um assunto e outro e tem um julgamento marcado. No meio da minha confusão, reparo que estamos a passar pela porta da Igreja e o motorista se benze. Eu nunca me benzo quando passo pela porta de uma Igreja. E aí está outro homem jovem, de rasta, ouvindo na rádio uma troca de galhardetes entre os deputados deste e daquele partido numa sessão parlamentar, mas que não se distrai na sua fé e sem hesitar demonstra o seu amor e respeito pelo Senhor, ao passar pela Sua casa.
Estes sinais de fé, estão presentes, tão presentes. Todos os dias reparo que os condutores ao serviço do meu marido, ao iniciarem o trabalho, fazem o sinal da cruz. Todos os dias! Não iniciam o seu trabalho sem pedir a bênção de Deus.
Num tempo em que são tantas as notícias más, terríveis. Onde se destrói o mundo e as coisas belas, onde as pessoas se sentem marginalizadas , onde as televisões e redes sociais nos trazem os gritos, o sangue e o olhares aterrorizados de crianças no meio de conflitos armados, da violência doméstica , onde em cada dor desta e da nossa impotência só nos resta a cruz e pensar que o Filho de Deus morreu tão dolorosamente para nos salvar, precisamos de ser mesmo pessoas de muita fé para não desesperar, para não desejar a morte do inimigo e acreditar que o errado se pode e deve combater com a reafirmação do bem. Por isso lutamos contra a pena de morte, contra a prisão perpétua, contra os golpes de Estado e contra a justiça privada, contra o assassinato de opositores políticos por mais malignos que sejam e prefiram ser. A bala capaz de matar um homem mau, não mata as suas más ideias, o ódio que ele propaga. Essa bala talvez até alimente esse mal. É preciso que os valores do bem, da justiça e da democracia se mostrem mais fortes através da expressão das pessoas de fé. É preciso que quem acredita na dignidade de cada pessoa, expresse isso através do gesto correspondente. Assim como com o sinal da cruz reconhecemos o sofrimento do Filho de Deus para nos salvar, temos nós de saber fazer o gesto certo também para fazer prevalecer o que é capaz de tornar cada um de nós um igual em dignidade. Saber dizer: não, basta, isso de democracia musculada é mentira. Queremos, sim, desenvolvimento, mas queremos ser senhores do nosso destino.
E tudo isto me veio à cabeça, me inspirou a não desanimar, porque consigo ver o Jesus que dança conduzindo-me por caminhos seguros no meio de toda a turbulência.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1182 de 24 de Julho de 2024.