Clubes de futebol como agentes culturais na cidade da Praia na época colonial

PorEmanuel Charles D’Oliveira,16 set 2024 8:06

A organização e a prática do futebol na cidade da Praia, nas décadas de 1930 a 1950, serviram de veículo de promoção cultural e difusão de modernidades. Além da função desportiva, os clubes impulsionaram iniciativas socioculturais que marcaram profundamente a população. Romperam com o exclusivismo das coletividades culturais e recreativas elitistas precedentes (do século XIX), tendo as agremiações de futebol assumido a função de principais promotores de cultura e aproximação entre os diferentes estratos sociais.

Na nossa perspetiva dois clubes desportivos se destacaram enquanto agentes culturais: Vitória Futebol Club, oficializado em 1931 e Club Desportivo Travadores, em 1939. Ambos liderados por membros da sociedade que, sensíveis à cultura e à modernização da cidade, disseminaram práticas desportivas promovendo, concomitantemente, atividades culturais que proporcionaram à comunidade capitalina o acesso ao teatro, cinema, récitas, música, dança apesar da conjuntura de extrema precariedade.

I

– A dinâmica oitocentista e a transmutação clubística

A fraca participação ou até ausência de colonos na introdução e construção do futebol na Praia, sugere alguma singularidade entre as demais experiências no continente africano, denunciando o sentimento nativista e uma identidade que se afirma alicerçada na auto valorização e manifestação de urbanidade por iniciativa própria, nomeadamente da alta sociedade.

A edificação do futebol na capital do arquipélago contou com a excecional contribuição dos intelectuais e figuras proeminentes da terra que reconheciam na cultura do físico uma expressão da modernidade que merecia ombrear com as demais da cultura já enraizadas nas ilhas. Emergindo de uma conjuntura “apertada” de pobreza generalizada e condição de periferia político-administrativa, a cidade da Praia conheceu, na segunda metade do século XIX, melhorias na qualidade de vida social, organização urbanística e existência de uma elite intelectual endógena. Foi nessas circunstâncias que também surgiram associações formais de vocação recreativa e cultural, um movimento que, contudo, não envolvia a população, era restrita aos “endinheirados”, isso, nas palavras de João Nobre Oliveira. Na ótica de Francisco Fragoso, esses grupos eram estruturalmente alheios à massa, ou melhor, ao povo. Todavia, apesar do alheamento, a experiência acumulada na organização de clubes durante meio século constituiu um valioso aprendizado, prosseguindo, na mesma toada, no início da centúria seguinte (XX), embora com uma nova roupagem. Agora vocacionados à cultura física e logo depois ao desporto, rompendo com a índole cultural e filantrópica dos anteriores clubes, sociedades e grémios de natureza exclusivistas. Contudo, se estatutariamente essa ruptura foi abrupta, na prática, nas décadas 30, 40 e 50 do século passado, certos clubes continuaram com a dupla função social, uma desportiva e outra cultural, ambas dirigidas por elementos de estratos sociais alta e média, mas permeáveis a todas as camadas no que se refere à prática e acompanhamento.

Esse período, em que os grémios pareciam amortecer a mudança de paradigma clubístico, constitui o foco do presente texto, tendo por finalidade a revelação do papel dos clubes de futebol na implementação e promoção de modernidades culturais e desportivas inclusivas na Praia, cidade que, nas décadas referidas, tinha o futebol por principal atividade de entretenimento de massa. É coerente, portanto, considerar que estudos sobre a dinâmica dos clubes de futebol, nesse período, forneçam subsídios que permitem um melhor conhecimento da sociedade, nomeadamente nas formas de promoção e organização desportiva e cultural, mas também da experiência colonial no seu todo.

II

– Futebol como factor de promoção cultural

Mais que qualquer outra atividade, o futebol, embora sem proporcionar um nivelamento dos estratos sociais, funcionou como factor de inclusão social num meio dividido entre “brancos da terra”, intelectuais, funcionários e os demais - o povo, os “descalços”. As atividades culturais e de entretenimento promovidas pelos clubes, em pouco tempo se tornaram na principal atração e meio de mobilização da sociedade, com a juventude no cerne do movimento. Mesmo aqueles que não jogassem associavam-se ou identificavam-se a um clube, participando nas diversas iniciativas. Os clubes dominavam as iniciativas socioculturais e desportivas, sendo determinantes na vitalidade da cidade, reproduzindo a moda da época, simbolizando o estilo de vida moderna. Assim, enquanto elemento fulcral, o futebol desempenhou a função estimuladora das demais expressões culturais, sendo ele próprio uma importante componente da cultura citadina na época, pese embora a lacuna em alternativas. Os clubes que praticavam futebol constituíam o centro de todas as atenções sendo procurados para diversos fins, nomeadamente, desportivos, festivos e representativos.

A irradiação de práticas culturais a partir dos clubes de futebol pode ter como origem o expressivo envolvimento de dirigentes e aficionados sensíveis à literatura e artes, por exemplo. Destacados membros da sociedade integraram corpos gerentes de diferentes níveis da hierarquia desportiva, defenderam e promoveram o desporto em intervenções públicas com recurso à narrativa vigente naqueles tempos. Contudo, não de forma generalizada ou categórica como se pôde verificar nos lamentos de Luiz Terry (reitor do Liceu Gil Eanes) que se queixou da apatia dos intelectuais para com o desporto em Cabo Verde, lembrando aos mesmos do dever social “de se votarem aos interesses da comunidade… sob pena de trair a sua missão”. Anos mais tarde é Aguinaldo Brito Fonseca quem volta a abordar o assunto afirmando que “os intelectuais da nossa terra têm uma inexplicável relutância em dar o seu apoio às tentativas de qualquer modalidade desportiva” e que esse gesto ia “redundar em detrimento para a educação e vitalidade do povo”. Ainda que algumas vozes se mostrassem descontentes com a insuficiente participação de intelectuais nas lides desportivas, na Praia, a elite letrada continuou com uma representação considerável na gestão da Associação Desportiva de Sotavento e dos clubes. Entre eles constavam advogados, chefes de serviços, poetas, professores, empresários, proprietários e militares que se reuniam à volta de um interesse comum, o futebol.

III

– Vitória Futebol Clube e Clube Desportivo Travadores

Desde a sua fundação, duas coletividades desportivas se destacaram no empreendimento socializante e de convergência social. Foram eles Vitória Futebol Club e Club Desportivo Travadores, ambos criados no dealbar da década de 30 do século passado.Após o precoce desaparecimento do cenário futebolístico do Sport Club da Praia (1919), do Sporting de Cabo Verde (1924), do Grémio Sportivo Herculano (1925) e da União Desportiva de Cabo Verde (1926), sobre os quais pouco se conhece, é o Vitória que, na memória coletiva e no tocante aos praticantes, representa a rentrée da elite capitalina no futebol. Em oposição encontrava-se o CD Travadores, uma formação com elementos de menor projeção social, mas de maior identificação ou aproximação com a população.

Embora existissem mais coletividades futebolísticas como o Luzitanos, Nazarenos e Rápido, desses apenas descortinamos o clube da igreja dos Protestantes como promotor de práticas culturais. Através do desporto (futebol e vólei) promovia ações de natureza cultural e de socialização, tendo como propensão a evangelização e fixação dos seus seguidores.

O expressivo impacto do jogo da bola na cidade e arredores revelou-se ainda na existência de, pelo menos, um campo, ou melhor um largo para a prática do futebol em cada aglomerado populacional pontilhados à volta da cidade. Por mais insignificante que fosse, cada subúrbio ostentava um campo que nem pelourinho ou praça central de qualquer cidade que se preze. Espaço inviolável por qualquer tipo de intervenção urbanística ou construção espontânea, de serventia a atalhos e terreno predileto de animais caseiros e crianças desnudas onde chutavam as suas primeiras bolas, normalmente de trapos ou bexiga de suíno. Cada baliza era constituída por dois pedregulhos que continuava precária e itinerante mesmo aquando de jogos relevantes. Os largos enchiam-se então de multidão, geralmente aos domingos, transformando-se em autênticos centros de interação social para onde convergiam e onde coabitavam, em pé de igualdade, elementos de todos os estratos sociais.

Travadores e Vitória foram os clubes que mais movimentaram, atraíram e entretiveram a população nas décadas já referidas. As camadas médias e altas usufruíam de peças de teatro, récitas, chá dançante, espetáculo de variedades, orquestra, leilões e possivelmente outras formas de entretenimento cultural apreciados entre os mais instruídos e sensíveis a artes ou economicamente folgados. Se por um lado era notória a preocupação das direções dos clubes em envolver também a comunidade menos favorecida, por outro lado verificava-se a diferenciação na frequência dos eventos mais requintados por elementos de estatuto social mais elevado. Trechos de missivas dirigidas à administração do concelho revelam a ambiguidade nas ações dos clubes de futebol, sendo inclusivos, mas não aglutinadores. Em pedidos de autorização às autoridades verificamos que certos “festejos e diversões eram destinados à camada pobre desta população” ou “distrações baratas para gente pobre” na época natalícia e ainda bailes destinados “à classe operária da massa associativa do clube”.

Na época em que a “febre” do dancing hall, a par das salas de cinema, estavam ao rubro nos países produtores de modas, o entretenimento de eleição e, com certeza, o mais acessível entre poucos, foi o baile. Sem salões propícios, o programa cultural da época foi preponderantemente preenchido pelas iniciativas dos clubes que possuíam sede. Havia também convívios dançantes de menor monta que proliferavam nos subúrbios designados por bailes familiares. Realizavam-se infalivelmente, nas ocasiões especiais como nos aniversários dos clubes, fim do ano e Carnaval, mas também, semanalmente ou quinzenalmente, nos períodos mais convenientes ao convívio noturno. Havia ainda as despedidas daqueles que fossem viajar, emigrar ou iam transferidos e receções tanto a individualidades como coletividades homólogas.

Num período de extrema carência também de atividades socializantes, os mencionados clubes ocuparam os praienses com atividades associativas de natureza lúdica e cultural, proporcionando mais vida à pacata cidade. Com a interação dos seus dirigentes, praticantes e simpatizantes, contribuíram de forma inequívoca na formação desportiva, cultural, cívica e identidade urbana de toda uma população, catalisando a importação de práticas modernas como o teatro, o cinema, soirées dançantes, desfiles de carnaval e, obviamente, o futebol.

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Fontes:

- João Nobre de Oliveira (1998). A Imprensa Cabo-verdiana 1820-1975.

- https://santiagomagazine.cv/cultura/a-contextualizacao-do-teatro-cabo-verdiano

- Marzano Andrea e Nascimento Augusto (2013). O esporte nos países africanos de língua portuguesa: um campo a desbravar.

- Notas de Vitoria FC e CD Travadores dirigidas à administração concelhia.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1189 de 11 de Setembro de 2024.

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Autoria:Emanuel Charles D’Oliveira,16 set 2024 8:06

Editado porAndre Amaral  em  16 set 2024 8:06

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