O texto é um prefácio inédito, cedido ao New York Times, de um livro da Fundação YOUCAT [Catecismo da Igreja Católica para jovens e adolescentes], em que Francisco reafirma o casamento é uma união sagrada entre um homem e uma mulher, feita para durar a vida inteira. Mas fá-lo à sua maneira: com referências ao tango da juventude, com apelos à coragem de amar e com uma linguagem próxima, sensível às feridas de quem tenta, mas nem sempre consegue, viver esse ideal.
Como refere o jornal americano, na apresentação do texto, esta carta ilustra quem foi Francisco enquanto papa: “um comunicador pragmático e compassivo, que soube reformular habilmente a doutrina da Igreja para a era moderna, sem necessariamente a alterar”.
Francisco fala directamente aos jovens, sem paternalismo e sem moralismo, com realismo e esperança, como refere o jornal americano. Recorda que muitos casamentos falham, inclusive talvez os dos próprios pais dos leitores, mas defende que “quem entra numa união não perde nada, ganha tudo: a vida em plenitude”.
Este texto, que deixará de integrar o livro da YOUCAT “Amor para sempre”, uma vez que essa responsabilidade passará para o futuro papa. Assim, esta carta-testamento, marca simbolicamente o fim de um pontificado que procurou aproximar a doutrina das pessoas, e não o contrário. Um legado que agora se revela também no texto, que republicamos na íntegra:
Queridos amigos,
Na minha terra natal, a Argentina, há uma dança de que gosto muito e na qual participei muitas vezes quando era jovem: o tango. O tango é um jogo maravilhoso e livre entre homem e mulher, cheio de encanto e atracção erótica. Os dançarinos e dançarinas cortejam-se mutuamente e experimentam a proximidade e a distância, a sensualidade, a atenção, a disciplina e a dignidade. Alegram-se com o amor e compreendem o que pode significar entregar-se completamente a alguém. Talvez seja devido à minha memória distante desta dança que chamei à minha grande exortação apostólica sobre o matrimónio “Amoris Laetitia”: a alegria do amor.
Fico sempre comovido ao ver jovens que se amam e têm a coragem de transformar o seu amor em algo grandioso: “Quero amar-te até que a morte nos separe”. Que promessa extraordinária! É claro que não sou cego, e vocês também não o são. Quantos casamentos falham hoje em dia ao fim de três, cinco, sete anos? Talvez também os vossos pais tenham iniciado o sacramento do matrimónio com essa mesma coragem, mas não conseguiram levar o seu amor até ao fim. Não seria melhor, então, evitar a dor, tocarem-se apenas como numa dança passageira, divertirem-se, brincarem juntos e depois partirem?
Não acrediteis nisso! Acreditem no amor, acreditem em Deus e acreditem que são capazes de viver a aventura de um amor que dura toda a vida. O amor quer ser permanente; “até nova ordem” não é amor. Nós, humanos, temos o desejo de ser aceites sem reservas e aqueles que não têm essa experiência muitas vezes - sem saber - carregam uma ferida para o resto das suas vidas. Em vez disso, aqueles que entram numa união não perdem nada, mas ganham tudo: a vida em pleno.
A Sagrada Escritura é muito clara: “É por isso que o homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Génesis 2,24). Uma só carne! Jesus leva tudo isto ao seu ponto culminante: “Assim, já não são dois, mas uma só carne” (Marcos 10,8). Um só corpo. Uma só casa. Uma só vida. Uma só família. Um só amor.
Para vos ajudar a construir um alicerce para a vossa relação baseado no amor fiel de Deus, pedi a toda a Igreja que fizesse muito mais por vós. Não podemos continuar como antes: muitos só vêem o belo ritual. E depois, passados alguns anos, separam-se. A fé é destruída. As feridas abrem-se. Muitas vezes há crianças a quem falta um pai ou uma mãe. Para mim, isto é como dançar mal o tango. O tango é uma dança que tem de ser aprendida. Isto é ainda mais verdadeiro quando se trata do matrimónio e da família. Antes de receber o sacramento do matrimónio, é necessária uma preparação adequada. Um catecumenato, atrever-me-ia mesmo a dizer, porque toda a vida se desenrola no amor, e o amor não é algo que se deva tomar de ânimo leve.
Talvez a palavra catecumenato não signifique nada para si. Na Igreja primitiva, qualquer pessoa que quisesse tornar-se cristã tinha de passar pelo chamado “catecumenato”, um percurso de aprendizagem e de confirmação pessoal que, muitas vezes, durava vários anos. Sempre sonhei com uma formação semelhante para o sacramento do matrimónio: poderia salvar-vos de desilusões, de casamentos inválidos ou instáveis.
Como fiquei contente ao ver que o YOUCAT tinha aceite a minha sugestão! Quando ouvi falar deste projecto pela primeira vez, há alguns anos, e soube que jovens católicos de 30 países estavam a participar, pedi à equipa que lesse a “Amoris Laetitia” e a traduzisse para a língua dos jovens. Agora, vejo que conseguiram! Este livro é um companheiro ideal no caminho para o sacramento do matrimónio. Fala sobre a alegria do amor de uma forma envolvente e positiva, mas não ignora os obstáculos ao longo do caminho para uma vida partilhada bem sucedida.
É uma leitura de base para qualquer tipo de preparação para o matrimónio que mereça o título de catecumenato matrimonial. Participem em cursos de preparação para o matrimónio! Quanto mais exigentes forem, melhor. Discutam este livro em casal, ou com outros casais vossos amigos. Como escrevi em “Amoris Laetitia”, “no amor jovem, a dança - passo a passo, uma dança em direcção à esperança com os olhos cheios de admiração - não deve parar”.
Vosso,
Papa Francisco
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.