Fomos acolhidos pelo Padre Reinaldo Bernardo, missionário do Brasil, que veio partilhar a sua experiência na administração de estabelecimentos do género, pois, segundo nos informaram, foi no sucesso da Fazenda Esperança do Brasil que se inspirou o Cardeal Dom Arlindo, Bispo da Diocese de Santiago, para impulsionar obra idêntica no nosso país.
De início visitamos as instalações e outros pontos de interesse, seguindo-se um encontro com os cerca de cinquenta internos, com quem, como me fora solicitado, pude partilhar algumas reflexões em torno do tema “alcoolismo, droga e a Justiça”.
Um diálogo muito profícuo acabou por ter lugar, com os intervenientes a reconhecerem os erros em que incorreram no passado, de que hoje se arrependem profundamente, devido à droga e ao alcoolismo.
Ao lanche tivemos oportunidade de degustar confeitaria preparada com todo o esmero pelo pessoal da Fazenda e ainda pudemos cantar os parabéns aos que celebram o seu aniversário neste mês.
Intensos votos foram formulados aos internos que iam deixar o estabelecimento por terem concluído com sucesso o programa e estarem já aptos a retomar a sua vida cá fora.
Menção especial foi feita a um antigo interno, hoje voluntário, que é tido como uma referência da Fazenda Esperança de Cabo Verde, a ponto de, dentro de dias, seguir para Madagáscar, para ali servir como missionário.
Foi, assim, um encontro reconfortante e auspicioso.
Desloquei-me à Fazenda Esperança desde logo como Presidente do Supremo Tribunal Justiça, com o propósito de conhecer de perto essa experiência e os aspectos a ela associados, como as incidências da droga e do alcoolismo, em especial nas camadas mais jovens, bem como aquilo que pode ser feito para prevenir ou atenuar os seus efeitos.
Mas, fui lá também como cidadão, membro da Comunidade, que quis expressar o seu apreço pela obra em desenvolvimento e do mesmo passo manifestar aos internos que ali se encontram (voluntariamente, convém dizê-lo) a solidariedade e a confiança em como serão capazes de se reencontrarem para, como homens renovados, cidadãos de corpo inteiro, retomarem o seu percurso, com a dignidade a que têm direito.
E de facto a tónica da conversa foi a dignidade da pessoa humana.
Afinal, como tive o privilégio de confirmar, toda a obra que ali é desenvolvida tem como escopo preservar ou restituir esse bem maior aos que por ali passam: a sua dignidade. Um valor que se deve impor aos outros, mas que nós próprios devemos ser os primeiros a nos esforçarmos, com sentido de responsabilidade individual, para o preservar.
A Constituição do nosso país proclama no seu artigo 1º que Cabo Verde é uma República soberana, que garante o respeito pela dignidade da pessoa humana.
O respeito pela dignidade da pessoa humana é, assim, o valor supremo da nossa vida coletiva.
A dignidade de que cada um de nós, como ser humano, é titular, não se perde com o erro ou com o infortúnio que, porventura, se tenha abatido sobre nós.
Isso para dizer que aquele que erra, vicissitude a que qualquer um de nós está sujeito, nunca se iguala ao seu erro. Deve responder por ele, mas preservado sempre o direito a ser tratado com respeito pela sua dignidade.
É sabido que a droga e o alcoolismo podem estar associados a comportamentos desviantes. Podem levar os que deles dependem a se subtraírem aos seus mais elementares deveres, na família, na profissão e na sociedade. Em regra, levam a que se perca o respeito e a consideração da parte dos outros, e até a própria autoestima.
Com frequência a droga e o alcoolismo levam à criminalidade, por exemplo furtar para satisfazer os custos do vício.
Mas, a Justiça não pode olhar o dependente, que tenha incorrido num ilícito, apenas como um infrator.
Tem de o ver também com humanidade, como um ser humano fragilizado, alguém que precisa de tratamento, de acompanhamento e de reinserção social.
É nessa ponderação dos dependentes da droga e do alcoolismo como seres humanos fragilizados que ganha extraordinária relevância o papel das instituições de solidariedade social, como a Fazenda Esperança, que, assentes essencialmente no voluntariado, exercem uma função complementar da obrigação do Estado, de tudo fazer para que ninguém seja deixado para trás.
Em jeito de síntese, foram três as palavras chaves que nortearam a nossa reflexão: solidariedade, para que ninguém lute sozinho contra o vício; inclusão, para que a sociedade não exclua, mas acolha quem quer recomeçar; recuperação, para que cada ser humano saia do internamento não como prisioneiro do passado, mas como protagonista do futuro.
Os que tiveram a coragem de procurar esse caminho, merecem todo o incentivo, com especial ênfase para o lugar que à responsabilidade individual, o empenho pessoal, deve caber nesse processo de recuperação.
A estadia na Fazenda Esperança não pode, pois, ser vista como um sinal de fraqueza ou de derrota. Pelo contrário, deve ser enaltecida, enquanto prova de coragem e de determinação, pois, como diz o ditado, quem procura reerguer-se, já começou a vencer.
Que instituições como a Fazenda Esperança, bem como outras similares, que têm vindo a trabalhar para o bem da Comunidade, ajudando o Estado a cumprir as suas indeclináveis obrigações constitucionais, numa área tão difícil como é a recuperação dos que tropeçaram nas malhas do vício, possam encontrar o carinho da Sociedade e, sobretudo, merecer, ou continuar a merecer, dos Poderes Públicos o devido reconhecimento.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.