Professores revoltados com novo Estatuto

PorSara Almeida,31 mai 2014 0:00

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Os professores estão indignados com o novo Estatuto da Carreira de Docente proposto pelo Ministério da Educação, que consideram um atentado à classe e à proclamada qualidade do ensino em Cabo Verde. “Não há um único aspecto positivo neste novo estatuto”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Professores, Nicolau Furtado. A Federação Cabo-verdiana de Professores, por seu lado, reclama não ter sido oficialmente informada sobre o mesmo para elaboração de parecer, e avança com um ajuntamento de professores, no dia 31 de Maio, que servirá para definir a luta e agendar a greve.

 

Nenhum professor está contente com o Estatuto da Carreira de Docente (ECD). A garantia é dada pelos próprios, a nível individual, e corroborada pelos sindicatos, a nível colectivo.

Na verdade, quando no dia 9 de Maio, foi feita a socialização deste anteprojecto, apresentado como Estatuto do Pessoal Docente, o sentimento generalizado foi de desapontamento e indignação.

“O novo ECD não corresponde às expectativas dos professores”, diz-nos um docente do ensino secundário, que prefere manter o anonimato. Pelo contrário, em vez de resolver as lacunas anteriores, este projecto vem “liquidar os ganhos já conquistados”, acrescenta.

As críticas ao ECD, que, segundo o Ministério da Educação e do Desporto (MED), deverá ficar pronto para aprovação em meados de Junho, somam-se. E apesar da agenda apertada, o processo negocial com classe e seus representantes não se afigura fácil.

“Infelizmente não há nenhum” aspecto positivo neste ECD , lamenta Nicolau Furtado. “Podia haver um equilíbrio, mas não há”.

O Sindicato Nacional dos Professores (SINDEP), a que preside, já entregou as suas indicações à ministra de Educação, Fernanda Marques, no dia 22 de Maio, expondo diferentes indicações de uma forma ainda genérica.

“Numa próxima ronda negocial, iremos apresentar contra-propostas na especificidade, ou seja, ponto por ponto das propostas do MED”, avança Furtado.

O sindicalista mostra-se no entanto pessimista perante uma certa falta de resultados nas negociações. “O MED tem-se mostrado aberto ao diálogo, só que os resultados das negociações estão aquém do desejado. Vamos e vimos praticamente sem nada”, critica.

Já a Federação Cabo-verdiana dos Professores (FECAP) reuniu com a ministra, ontem, dia 27. Em conversa com o Expresso das ilhas, um dia antes do encontro, o seu presidente adiantou que não iria avançar com indicações ou contra-propostas concretas. Isto porque, não lhes foi remetida oficialmente nenhuma informação sobre o novo Estatuto, para consequente emissão do parecer. Ou seja, não houve um seguimento dos trâmites normais do processo.

Nestas circunstâncias “deve-se endereçar uma nota com o conteúdo do estatuto anterior e a proposta. A partir daí vamos acusar a recepção e começar os trabalhos. Até agora não recebemos nada”, reivindica João Pedro Cardoso.

O presidente da FECAP vai mais além e põe em causa as boas intenções do MED nas negociações com os representantes da classe docente.

“Não se atira uma bomba – e é isso que o novo Estatuto é - para negociar depois”, argumenta.

O encontro iria servir também para avisar o MED da intenção de realizar um ajuntamento de professores no dia 31, e marcação de uma greve. Até ao fecho desta edição não foi possível confirmar o teor da reunião.

 

Idade da reforma no centro da revolta

Entre vários itens que suscitam o descontentamento da classe, destaca-se um, prontamente apontado em todas as críticas: a idade da reforma.

Alguns professores reagem com ironia, apesar de considerem a proposta não só gravosa como grave. “Vamos ter de ir de cajado para a escola” ou “agora, em vez de limparmos a baba aos meninos vão ser eles que nos vão limpar a nossa”, dizem.

É consensual entre a classe: o tipo de trabalho a que esta profissão obriga, as exigências que traz a nível físico, intelectual e psicológico, não permitem o que agora é exigido. Até porque há um desgaste enorme a todos esses níveis, garantem.

No novo ECD, os requisitos para aposentadoria passam dos actuais 32 anos de serviço ou 55 de idade para 34 anos de serviço e 60 anos de idade.

Quer isto dizer, no entender dos professores, que não só se passará a ter uma classe geriátrica e debilitada a tentar ter pulso em crianças e jovens, como a maior parte das pessoas acabará por trabalhar “pelo menos 38 anos”.

A manutenção dos actuais idade/anos de serviço para aposentação, é aliás, das várias exigências do SINDEP, aquela pela qual mais lutarão.

Sem querer entrar em campos específicos, uma vez que o parecer oficial não pôde ainda ser elaborado, a FECAP corrobora estas posições.

 Outro aspecto negativo, ancorado a esta medida é o facto de vedar aos jovens formados o acesso a postos de trabalho, engrossando assim as fileiras do desemprego jovem.

Esta alteração da idade e tempo de serviço é também um dos assuntos mais comentados no fórum online que o MED disponibilizou para recolher a opinião dos professores a respeito da proposta de EDC.

“Com 60 anos de idade vai-se criar uma equipa de desvalorização de sistema. Se queremos apostar no desenvolvimento vamos apostar num professorado com capacidade física e psicológica, ” diz uma professora que assina Lídia.

Alguns professores requerem que pelo menos se troque o “e” pelo “ou”, ou seja, que se subsitua a obrigatoriedade de 34 anos e 60 de idade, por apenas um dos aumentos: 34 ou 60.

“É um absurdo e isto como podem ver está a causar um constrangimento enorme dentro da classe docente. Ser 34 anos de serviço ou 60 anos de idade resolve uma parte de questões ou então 32 anos de serviços e 55 porque o professor a partir dos 55 anos já não tem capacidade para ensinar ou mesmo lidar com alunos, “ diz um outro professor, Ronaldo Pina.

Voltando aos sindicatos. Um olhar pelo panorama mundial mostra um aumento generalizado da idade da reforma intrinsecamente ligado ao aumento da esperança média de vida. Confrontados sobre se será possível evitar esse alargamento do período activo, todos os entrevistados mantêm a sua posição: irão lutar para que tal não aconteça dentro da classe docente, devido, essencialmente, ao já referido desgaste.

Além disso, salienta Nicolau Furtado, as crises são cíclicas, vão e vêm, e a perda de direitos é algo que poucas vezes é restituído.

“Não exigimos mais do que o país pode, mas também não aceitamos a perda dos direitos garantidos”, diz.

Já João Pedro Cardoso aponta que se é para comparar e copiar que se olhe para os melhores exemplos. Para países que atribuem o 13.º e até  14.º mês, nomeadamente, e não apenas para medidas que prejudicam os docentes e outros cidadãos.

 

Carga horária e outros aspectos

A ser aprovado, o novo estatuto dita o fim do subsídio por não redução de carga horária, o que irá prejudicar “sobretudo os professores do ensino básico”. No caso dos professores do ensino secundário, explica-nos um docente, o tempo de serviço com o qual se poderia ter a referida redução passa “de 15 para 20 anos. “

“É um retrocesso”, argumenta.

Este é outro dos pontos que reúne maior consenso e a manutenção deste subsídio é também uma das exigências já apresentadas a Fernanda Marques pelo SINDEP.

Mas há outras. Da lista de indicações apresentadas pelo Sindicato constam ainda a “definição clara da estrutura de cargos em regime do ingresso ou acesso; a formação e requalificação profissional em virtude de aquisição de novas habilitações; o desenvolvimento profissional dos docentes, nomeadamente a progressão e a promoção e a definição clara das normas de transição do professor docente, nomeadamente dos professores formados pelo ex-Instituto Pedagógico”.

Vamos por partes, em relação a este último ponto, os professores que têm um curso médio, e não licenciatura como passa a ser exigido, não têm a sua situação futura clarificada no ECD, reclama-se. O projecto de ECD prevê aliás que todos os professores tenham licenciatura, uma medida para garantir que quem ministra as aulas tenha boa formação. Para os professores que não tenham licenciatura o projecto prevê um espaço de cinco anos como tempo suficiente para a adquirir.

“A nossa proposta vai para o dobro do tempo, dado a dispersão das ilhas”, adianta Nicolau Furtado. E nesse sentido acusa: “não se está a criar condições para que os professores tenham uma formação. Falam muito da qualidade, mas isso é treta. Como é possível o professor estar a leccionar e estar também no curso. Não pode conciliar as duas coisas, alguma coisa terá de ficar prejudicada, ou os alunos ou o curso”.

Assim, há que “reduzir a carga horária para que o professor possa aproveitar da melhor maneira a formação e para que os alunos possam beneficiar também do melhor ensino-aprendizagem”.

Além disso, “neste momento exigem para o ingresso em todos os níveis de ensino a licenciatura, mas não há nenhum enquadramento claro para mestrado e doutoramento”, aponta.

A classe docente lida ainda, neste momento, com várias pendências. Estão por resolver as progressões de 2011 a esta parte, assim como as requalificações e subsídio pela não redução de carga horária desde 2010. De acordo com a ministra da Educação, citada por Nicolau Furtado, essas pendências serão resolvidas no quadro da implementação do novo PCCS e revisão do ECD.

“Esperamos que sim”, diz o presidente do SINDEP.

Entretanto, no novo Estatuto é retirada “a progressão e consta a promoção” mas com condicionantes que tornam muito difícil a sua obtenção, porque o concurso “depende de vagas e orçamentos”, explica Nicolau Furtado. “Fica quase impossível”, diz.

“Os serviços da administração pública que vão ocupar-se dos concursos, não estão à altura de conseguir” um bom trabalho. Se até hoje falharam a realizar progressões e promoções, a tendência irá manter-se “porque a máquina é a mesma. Não vão mudar o paradigma”, aponta, por seu lado, o presidente da FECAP.

 

Qualidade vai descer

O discurso do governo, no que toca ao novo ECD, vai no sentido de se poder corresponder às mudanças sociais de Cabo Verde, e crescente exigência de qualidade. Qualidade do ensino tem sido, aliás, um refrão várias vezes repetido. Mas atentar contra a classe docente vem abalar uma das pedras basilares mais importantes para essa qualidade, acreditam os professores.

Em primeiro lugar, por uma questão de motivação. “Com a desmotivação dos professores, a qualidade de ensino vai baixar consideravelmente, o que vai pôr em causa o desenvolvimento do país (…) Pensem bem!”, escreve alguém, no fórum.

“A motivação advém de melhores condições de trabalho e remuneratórias”, aponta ainda um docente entrevistado, salientando que o novo estatuto, apresentado no âmbito do novo programa de PCCS (Plano de Cargos Carreiras e Salários) - que ninguém parece conhecer ao certo -, se esquece o “S”, isto é, da questão remuneratória.

“Obviamente [essa desmotivação] tem repercussões na prestação do serviço de ensino. A qualidade faz-se, não com discursos, mas sim criando condições laborais para os funcionários, o que não está a acontecer na prática”, remata.

Também Nicolau Furtado destaca que “para melhorar a qualidade do ensino em primeiro lugar tem que se incentivar os professores. Tem de haver progressão, melhoramento do salário, melhores condições de trabalho. Isso tudo está a ser tirado”.

Na realidade, sem aumento salarial há “já três ou quatro anos, neste momento, os professores perderam cerca de 10% do seu poder de compra”.

A juntar à importância de um professor motivado, o “governo tem de criar condições sólidas para formação dos professores.”

O prémio de mérito, contemplado no novo estatuto e de que podem usufruir os professores avaliados com “Excelente” poderia à primeira vista ser um incentivo, mas também aqui há a unânime opinião de que é uma ideia com poucos resultados. Isto porque, “a avaliação é subjectiva” e não há forma de se acompanhar o professor, algo que seria importante para uma justa avaliação.

É na questão da perda da qualidade de ensino que os professores pensam poder contar com o apoio da sociedade civil, principalmente dos pais e encarregados de educação.

Acreditam que ninguém quererá que o filho de 6 anos tenha como professor(a) alguém de 60 anos.

“ A nossa luta não é contra pais e alunos, a qualidade vai baixar e nós não queremos isso. Vamos convencê-los” a apoiar, avança João Pedro Cardoso.

Até hoje, diz o presidente do FECAP, os professores, apesar de todos os problemas que atingem a classe, têm conseguido manter um bom padrão de qualidade como aliás é reconhecido pelos dirigentes do governo.

“Somos uma classe responsável, não nos pautamos por gestão mercantilista, damos o nosso máximo cobrando o cumprimento da lei. Tem sido difícil. Mas agora estão a fazer uma proposta que é um atentado à nossa profissão e à qualidade por que sempre pautamos. Nessa base não vemos nenhuma coerência por parte do MED”, reivindica.

Todo o trabalho que tem sido feito em prol da qualidade do ensino irá por água abaixo, considera.

João P.Cardoso, presidente FECAP

Nicolau Furtado, presidente SINDEF

 

Greve à vista

No próximo dia 31, os professores irão juntar-se pelas 11h, na Praça 12 de Setembro para se manifestarem sobre o ECD, “conversar sobre a possibilidade da greve e apresentar datas”. O anúncio é avançado pelo presidente da FECAP, João Pedro Cardoso.

“Vamos ter esse ajuntamento de professores na praça, vamos passar as nossas mensagens, e vamos escolher o dia para a greve, independentemente de estarmos a negociar ou não”, adianta, garantindo que são os próprios professores que o desejam. 

A acontecer a greve, esta ocorrerá ainda este ano lectivo, “provavelmente nos próximos 15 dias, que é o tempo mínimo para fazer o pré-aviso de greve”, avança o presidente da FECAP.

Se houver cedências da parte do MED, apesar de se manter a assembleia de docentes, a greve poderá ser posta de lado, mas neste momento os professores estão prontos para ela e esta justifica-se independentemente das negociações em curso, garante.

“É a voz do professor”, diz. E “o comportamento do MED ao lançar uma bomba, já está a inviabilizar a reconciliação.”

“Por exemplo, não se fez greve geral porque uma central disse: ‘Estamos à mesa negocial e não vamos poder participar numa manifestação, muito menos numa greve’. Terminou e qual foi o resultado? Nada. Isso é táctica do governo e daqueles que lhes estão próximos.”

Desde a não-greve de finais de Abril que as centrais sindicais têm andado algo desavindas. Nada de inédito. Mas em termos de sindicatos de professores, o SINDEP (afecto à UNTC-CS) e a FECAP (CCSL) parecem ter posições convergentes e estar dispostos a falar a uma só voz, afiança, por seu lado, o presidente do SINDEP.

“Em termos da classe docente é diferente. Estivemos juntos em todas as lutas”, confirma João Pedro Cardoso.

“A classe docente está unida e todas as formas de luta que adoptarmos os professores estão disponíveis para aderir”, avança também o presidente do SINDEP. Mas neste momento aguardam a reacção do ministério e vão tentar, primeiro, conseguir um entendimento. “Não chegando ao entendimento partiremos para outras formas de luta”.

Assim, até ao momento não está definida a participação ou apoio do SINDEP quanto ao ajuntamento de dia 31.

A mobilização para o ajuntamento está já a ser feita, e a bom gás, adianta Cardoso. Está também a ser realizado um abaixo-assinado contra este novo Estatuto que deverá ser entregue a personalidades idóneas como o Presidente da República ou o Presidente da Assembleia Nacional.

Enquanto alguns professores se preparam para a luta, alguns outros aguardam pois, com “serenidade” os resultados das conversas entre sindicatos e MED.

Como nos diz um entrevistado, crêem que “ o ministério que tutela a classe é uma ‘pessoa’ de bem” e como tal não acreditam “que esse anteprojecto tenha pés para andar.”

“Pensamos que os ganhos do pessoal docente deverão ser salvaguardados na medida em que nós, os professores, estamos a dar um grande contributo para a agenda de transformação de Cabo Verde”, diz, utilizando o próprio discurso governamental em sua defesa.

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Autoria:Sara Almeida,31 mai 2014 0:00

Editado porAndré Amaral  em  5 jun 2014 10:39

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