Mudam-se os tempos, mudam-se as formas de festejar. O Cabo Verde de hoje não é o de ontem, e isso reflecte-se no próprio Natal. Talvez algumas coisas tenham mudado para melhor, mas outras deixam enorme nostalgia. “Naquele tempo era mais sab” é, aliás, expressão recorrente entre os entrevistados do Expresso das ilhas e da Rádio Morabeza nas ruas do Mindelo. Já na Praia destaca-se que antes, mesmo com poucos recursos, se fazia um bom natal. Algo que hoje já não acontece…
“Eu sou velho, mas vou contar a tradição dos meus velhos”. Joaquim António Almeida nasceu há 71 anos em São Nicolau. Emigrou e quando regressou a Cabo Verde, já reformado, assentou residência em São Vicente. Mas é aos festejos da ilha natal que vai buscar as suas memórias.
Então, naquele tempo a grande festa nem era o Natal. A preferida era o Ano Novo (uma preferência que aliás é repetida por vários outros entrevistados). “Preparávamo-nos para o Natal, mas mais para o Ano Novo”.
Seja como for, no 24 de Dezembro, confeccionava-se uma grande cachupa “com farinha de peixe ou com cavala fresca”. E era à volta daquela cachupa “a primeira de milho novo” que as pessoas se juntavam. “Tínhamos também grogue, erva, peixe frito e cuscuz.” E não faltava um prato de cachupa ou outra coisa para oferecer a quem viesse cantar os reis.
Moços e moças em grupo, “mais de 50 por dia”, mas separados. Eles nuns, elas em outros. Havia também grupos mistos, mas eram raros. Isto porque não se queria dar azo a storias.
Aos cantores que vinham animar a noite dava-se pois algo de comer, mas também algo para levar, como forma de agradecimento. Uma bandejada de milho novo, um peixe seco, banana madura, ovo. Quem podia, dava dinheiro. “Cinco tostões, dez nalgumas casas”.
Durante o dia de Natal comia-se cachupa frita, ovo estrelado, o tradicional cuscuz, e em alguma casa lá se matava um “porquito” caseiro.
“Hoje isso já não existe. Há coisas mais refinadas. Hoje exigem torta, pudim, uma carne bem-feita no forno, um bom peixe que é para fazer um bom cozido”. Alguns ainda fazem o cuscuz, mas já não é como antes. “Antigamente era feito ou com farinha talisca, que é aquela mandioca seca, ou com milho colocado na água três dias antes, que ia ao pilão toda a madrugada para fazer o cuscuz, para ofertar e comer na casa. Hoje isso não existe”.
E já ninguém oferece comida a quem vai às boas festas, agora é dinheiro, aponta o senhor Joaquim.
Havia também, na sua meninez, os bailes de rabeca, para dançar. “Uma coisa muito importante”, embora não raras vezes ensombrados pelas discussões dos bebedores de grogue. “Hoje não. Agora há vários conjuntos, várias orquestras, discotecas, é mais luxo e mais opções”.
“A nossa terra está muito desenvolvida, tem tantas e tantas coisas. E a cada dia temos mais coisas, mas tradição daquele tempo, já não temos e não sei se algum dia a vamos voltar a ter”, entristece-se.
Bem, até pode ser que “agora sejam coisas mais refinod”, mas naquele tempo…
Comida di Tera e os supermercados
“Punhamos a comida que a natureza nos dava, agora é comida da loja”, resume Antónia Inês, de 76 anos, sobre as tradições gastronómicas do Natal.
A comida tradicional, exclusivamente feita com os produtos da terra é, aliás recordada por todos os entrevistados. Maria da Luz Almeida, de 62 anos, conta que em São Vicente nesses dias festivos, “quem tinha possibilidades fazia uma comidinha melhor” diferente dos dias “normais”. Galinha, cabrito, geralmente criados pelos próprios.
“Agora é só comida que vem do estrangeiro. Quem pode compra, quem não pode…”, diz Martim João Delgado de 58 anos.
Na casa do mindelense Albertino Silvestre, desenhador de construção civil, de 62 anos, por outro lado, não podia era faltar “bolo, cake. Todas as famílias se preocupavam que houvesse cake na casa no dia de Natal. E também não faltava drops para os meninos e freska”.
De qualquer forma, considera, por seu lado Humbertides Lima, 47 anos, embora hoje haja “outros tipo de comida, “há gente que ainda mantem a tradição”. Por exemplo, o peru, que recorda da sua infância, continua a fazer parte de várias mesas.
Os antigos pinheirinhos de Natal
Naquele tempo não havia pinheirinhos de Natal como hoje há. Mas isso não quer dizer que não houvesse outros enfeites e símbolos.
Joaquim Almeida (71 anos) lembra os “ramalhetes” que se faziam com altas canas-de-açúcar. Aí, penduravam-se bananas maduras, toucinho, e até cavala – peixe que na sua altura era muito barato e que agora, reclama, “custa mais do que bife de vaca” (e rende menos).
Também havia a “mostarda, que é uma coisa que floresce em tons alaranjados e a flor de rosa carola”. Punha-se a flor de mostarda numa caneca de água, para aguentar oito dias, e perfumar a casa.
Já Maria da Luz Almeida considera que havia sim árvore de Natal. Só não era o pinheiro como agora. Eram “árvores naturais”, que se enfeitavam com balões, luzes “de pisca-pisca”. E “acendíamos as nossas velas. Era bonito e muito alegre”, conta.
Tarrafe, essa era a árvore natural que Humbertides Lima (47), recorda, e que se enfeitava. “Agora temos lojas chinesas e também isso já é diferente”.
Na mesma linha, Albertino Silvestre (62) recorda que as árvores de natal “não eram aquelas que são compradas na loja, já feitas. Íamos ao monte tirar a acácia e fazíamos a nossa árvore de natal com estrela, balão, areia...”
As prendas de outrora e as lojas de chinês de hoje
Antes, receber dois tostões do padrinho, quando se ia dar-lhe as boas festas e pedir a bênção, já era uma grande alegria para as crianças. Hoje compram-se prendas caras, que muitas vezes as crianças nem gostam. “As vezes é preferível dar o dinheiro para comprarem a seu gosto”, alega Joaquim Almeida (71).
Maria da Luz Almeida (62) lamenta, por seu lado, que se tenha perdido o factor surpresa, que causava alegria às crianças. “Antigamente era mais sab”. Os presentes eram escondidos em “caixotes”, ninguém sabia o que era, só quando no dia de Natal se desembrulhavam. Agora, “mostram logo, vão à loja discutir o que eles querem”.
Já Maria Inês (60), não se lembra de haver prendas. Só dádivas em género. “Se matasse um bicho, dava-se ao vizinho, ou outra pessoa próxima, 2 kg, e o que você tinha dava-me”.
Albertino Silvestre (62), por seu lado recorda ainda na tradição mindelense, que no dia de Natal, depois dos pais levarem a prenda à cama da criança (e o brinquedo dependia da situação financeira de cada família), ela era vestida “d’ret”, bonito, ia para a praça, ouvir música, ia ao cinema. Acompanhada, claro, da sua família”.
Se antes muitas crianças não recebiam nada pelo Natal, hoje dificilmente se encontra uma a quem não seja dada uma prenda. Isso deve-se, de acordo com Humbertides Lima em grande parte à oferta hoje disponibilizada. “Agora temos as lojas chinesas. É barato, com 50 paus já consegue dar uma prenda ao seu filho”.
Delinquência e trancas à porta
Em suma, como diz Albertino Silvestre, ontem e hoje são dois contextos bastante diferentes, uma coisa era “a juventude e crianças naquela data e outra são as crianças e juventude de hoje”.
Mundos diferentes, tradições e “necessidades” diferentes.
Humbertides Lima, que é guarda-nocturno no Mindelo, salienta que “o natal agora é mais difícil, antes era mais descontraído”.
Isto “no sentido em que há pouco trabalho na terra, há mais delinquência. Há vários factores que agora o tornam menos bom”.
As próprias brincadeiras das crianças e adolescentes mudaram. Antes, brincava-se de carrinho de pau, muitas vezes feitos pelos próprios meninos. Agora, há muito mais violência e agressividade nas brincadeiras, facas, “chisca lá”. “Agora está tudo voltado para a delinquência”, considera.
Trancas à porta. É com saudade que, principalmente os mais idosos relembram esse corropio de gente que passava por suas casas nessas noites. “Havia festa, comíamos, chegava gente, recebíamo-los. Era sempre isso, era mais sab”, conta Antónia Inês (76 anos). E essa falta de convívio parece ser uma das coisas de que têm mais saudades.
O “Natal era mais sab porque havia aquela tradição de sair, ir a casa das pessoas. Então no ano novo! Ninguém deixava de ir a sua casa dar as boas festas. Agora você até tem medo de sair de casa. Agora a tradição é ficar dentro de casa. Fechado”, lamenta, no Mindelo, Martim João Delgado (58 anos).