«Cabo Verde não pode pôr em causa o português»

PorLourdes Fortes,24 dez 2016 6:00

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Antiga professora, há muito ligada às questões da língua, Dulce Lush Ferreira Lima olha para a discussão em torno da mudança de metodologia de ensino da língua portuguesa como um reflexo da falta de uma política linguística “clara e precisa” em Cabo Verde. 


Língua primeira, língua segunda, materna, não materna. Muitos conceitos. Qual é a situação do português em Cabo Verde?
São conceitos definidos pela sociolinguística. Para sermos mais específicos, Cabo Verde tem dois  sistemas  linguísticos: a língua cabo-verdiana e a língua portuguesa, sendo que a língua cabo-verdiana é a língua materna ou primeira.
O conceito de língua materna é definido como a língua que a criança aprende a falar e através da qual apreende o mundo. Alguns autores preferem a ideia de língua primeira ao invés de língua materna,  mas qualquer das designações pode ter contra-indicações, porque ‘língua primeira’ e ‘língua segunda’ pode pressupor uma hierarquia, o que não tem obrigatoriamente que existir. As duas podem ser importantes, como é o caso de Cabo Verde. O país tem duas línguas, a língua materna é a língua cabo-verdiana e a língua portuguesa é a língua segunda. Outra questão muito diferente é a língua estrangeira. O inglês é claramente uma língua estrangeira em Cabo Verde. A língua cabo-verdiana, para nós, para a comunidade cabo-verdiana, seja no país ou na diáspora, pode ser língua materna, mas há também casos individuais em que a língua cabo-verdiana pode ser a língua segunda. Por exemplo, uma criança nascida  em Portugal, de pai cabo-verdiano e de mãe portuguesa, pode ter o português como língua primeira ou língua materna e o cabo-verdiano como língua segunda. São  conceitos, não são dogmas nem são leis e  no caso de Cabo Verde a situação sociolinguística está definida há muito tempo. Outra confusão que, eventualmente, possa  existir é que temos uma língua materna, a língua cabo-verdiana,que é uma língua nacional, constitucional, mas ainda não é a língua oficial. E temos a língua segunda, que é a língua oficial, desde sempre. Essa distinção pode criar confusão talvez por factores que nem sequer  têm a ver com a questão linguística em si.

Em relação à ideia do Ministério da Educação, de passar a ensinar o português como língua não materna?
Deveria ser algo evidente, porque o português, não sendo língua materna, há que se adequar a metodologia de ensino. Não vamos fingir que é língua materna, que não é. Mas nunca houve definição de uma política linguística clara e precisa.Nem sequer uma política de ensino de línguas. A população tem a ideia de que, volta e meia, há uma novidade e mudam-se as línguas, criam-se projectos de introdução do ensino da língua cabo-verdiana - um projecto muito mal explicado, muito mal concebido. As mudanças são feitas sem dar tempo de se saber quais são os resultados. Há três anos começou-se uma experiência, agora muda-se a metodologia. Penso que a confusão  vem também  dessa profusão e dessa sobrecarga a que o sistema educativo acaba por estar sujeito.

Porque é que é tão difícil  discutirem-se questões  de língua, em Cabo Verde?
Não é só em Cabo Verde que as questões da língua são muito emotivas.Talvez seja uma das questões mais emotivas  para qualquer comunidade humana, porque temos sempre um apego às línguas. Há uma ideia de posse e de pertença, falamos a nossa língua. É com a língua que apreendemos o mundo, é o ponto central da nossa cultura. Cada falante de uma língua sente-se como especialista ou dono da língua e essas questões criam  áreas de  grande emotividade. Em Cabo Verde, temos a imensa sorte e a imensa riqueza de ter duas línguas. Mas como a questão da língua, nos nossos mais de quarenta anos enquanto país independente, tem sido tratada de forma muito confusa e pouco transparente pelo poder político, as coisas não são claras e é o que pode, também, explicar o carácter babélico do debate.

É possível Cabo Verde salvaguardar a língua cabo-verdiana, sem pôr em causa o português?
Mais do que possível, é a única possibilidade. Cabo Verde não pode não salvaguardar a língua cabo-verdiana, mas também não pode pôr em causa o português. São os dois sistemas linguísticos do país. Há países que puseram em causa uma determinada língua, que era a língua oficial,mas em relação a Cabo Verde,no meu ponto de vista, isso não deve acontecer. Não vamos pôr em causa a língua cabo-verdiana que é  a nossa língua e ainda por cima uma língua endógena, assim  como não vamos pôr em causa o português. Seria como se amputássemos um braço.

E como é que se garante essa salvaguarda?
Talvez essa seja a verdadeira questão. Há especialistas da língua que têm dado respostas, linguistas que têm feito trabalhos e apontado caminhos. O Estado é que parece não ter tido uma acção clara e determinada nesta questão. Muito embora tenha havido um grande esforço, nomeadamente na constitucionalização da língua cabo-verdiana, abrindo a porta à oficialização que certamente acontecerá um dia. Para já, é o reconhecimento de todo o património  linguístico,  com as suas duas línguas: a língua cabo-verdiana e a portuguesa, mas falta definir uma política linguística nacional e nenhum especialista poderá resolver o que compete a poder político.

Que papel tem o sistema de ensino nesse processo?
O ensino tem um duplo papel, é o principal centro de aplicação das decisões relativas à política linguística, é onde as coisas se passam. No  caso de Cabo Verde, com a realidade linguística complexa que temos,é, essencialmente, na escola que a língua portuguesa é transmitida. O ensino tem essa obrigação de formar as crianças em português, que é  a língua de ensino e é também uma língua  de Cabo Verde, é uma língua nacional. Por outro lado, há que se inverter a pirâmide e começar a ensinar os professores e formá-los enquanto professores de português  de um país que não tem o português como língua primeira.

 

“Português sai valorizado como segunda língua”

Em comunicado, o governo defendeu, ontem, que não há conotações depreciativas pelo facto de a língua portuguesa passar a ser ensinada como língua segunda. “Antes pelo contrário, valoriza a língua através de métodos de aprendizagem cientificamente comprovados como sendo mais eficazes”, aponta o executivo.
Tendo em conta que em Cabo Verde, e tal como aponta um estudo publicado pela Universidade de Lisboa em 2011, “os falantes não dominam a língua portuguesa com a mesma competência e fluência com que dominam o crioulo”, o governo explica que a passagem do ensino do português para um processo diferenciado de ensino vai, pois, permitir uma valorização da língua portuguesa. Afirmam ainda que esta decisão se baseia numa orientação que “tem sido sustentada por conceitos consagrados internacionalmente na produção cientifica dedicada à aprendizagem de línguas não maternas, que beneficiam do estatuto privilegiado de língua oficial e são línguas de escolarização em todos os níveis de ensino. Este é o caso de Cabo Verde”.
Este passo, aponta o governo no comunicado enviado à comunicação social, só não foi dado mais cedo pela inexistência de acções de formação de docentes em paralelo com a “produção de materiais didáctico-pedagógicos adequados”. “Medidas que foram sendo sistematicamente proteladas, pelo que se continuou a ensinar o português como se fosse língua materna, com consequências negativas nos resultados dos nossos estudantes”, acrescenta ainda o governo.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 786 de 21 de Dezembro de 2016.

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Autoria:Lourdes Fortes,24 dez 2016 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  26 dez 2016 8:06

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