Pelo menos 55,9 por cento das crianças em Cabo Verde vivem sem a presença do pai, mostram dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, por ocasião do Dia do Pai. São dados que expõem um aumento face à realidade apurada pelo Censo de 2010, que situava em cerca 53% as crianças que cresciam com essa ausência. Os dados também confirmam que ¾ das crianças vivem em famílias fora do modelo pai+mãe+filhos, tido como padrão. Ou seja, as tipologias de família são cada vez mais diversificadas, algo que a sociedade parece não reconhecer, insistindo num ideal que exclui grande parte das crianças cabo-verdianas.
Estima-se que cerca de 100 mil crianças viviam fora do modelo mamá ku papá, que é, apesar de não constituir a maioria, considerado o “padrão” na sociedade cabo-verdiana. Isto não quer dizer que o pai, embora não viva com a criança, não cumpra o seu papel e exerça a sua paternidade de forma participativa e afectiva, mas mostra que os “padrões” ideais podem não ter assim tanta muita correspondência com a realidade.
Mais sintomático de uma ausência efectiva é o número elevado de crianças a quem os progenitores sequer dão o nome: 13,6% das quase 9500 crianças registadas em 2015 não tinha o nome do pai.
Some-se, e aqui não há números, os que dão o nome, mas não dão mais nada.
Ainda sobre a brochura relativa à efeméride, o INE aponta que, também em 2015, apenas 39,8% dos menores vivia com ambos os pais (contra 43,6% de 2010), ao mesmo tempo que se apresenta uma subida em relação ao número de crianças que mora só com o pai – 4,3%, enquanto em 2010 apenas eram 3,7%.
O mesmo Censo apontava ainda que 15% viviam sem a presença do pai e da mãe.
Modelo padrão?
Embora persista a ideia desse modelo judaico-cristão (pai-mãe-filho) como padrão, a verdade é que em Cabo Verde, ao longo da sua história, dinâmicas várias criaram modelos diferentes, onde a figura materna é o polo agregador da família, e o pai, um ser ausente.
São modelos que de certa forma ainda se mantêm, agora confrontados e acrescidos de novos modelos que emergem das novas dinâmicas. Os novos tempos tornaram as famílias mais nucleares, perdendo-se o sentido da comunidade e a confluência de várias gerações sob o mesmo tecto. Mais reduzidos, como o tal modelo cristão, mas nem por isso assentes na tricotomia pai-mãe-filho.
Assim, Cabo Verde continua a ter vários múltiplos modelos familiares, que não apenas o nuclear, modelo padrão europeu, e se uns têm caído em desuso, outros emergem.
Os dados do inquérito multiobjectivo contínuo de 2015 comprovam a diversidade de modelos de famílias em Cabo Verde.
Em primeiro lugar surgem, de facto, o que o INE apelida de agregados conjugais nucleares, ou seja, o modelo padrão (pai-mãe-filho, união entre adultos e um só nível de descendência). Mas estes correspondendo apenas a 24% dos agregados conclui-se que a maioria está, assim, fora do chamado “padrão”.
Além disso, este modelo é seguido, com diferença de apenas um ponto percentual (23%) pelos monoparentais compósitos – composto por um dos progenitores (quase sempre a mãe, depreende-se), filhos e algum outro indivíduo aparentado ou não (geralmente a avó). Logo de seguida, aparecem os monoparentais nucleares, isto é, praticamente sempre a mãe e os filhos (17%). No total, 40% das famílias é monoparental. Tanto como os agregados conjugais nucleares e compósitos (16% – agregados onde além do pai/padrasto-mãe) juntos. Os restantes 20% referem-se a agregados unipessoais e casais (famílias) sem filhos.
Falando ainda dos tais agregados conjugais compósitos, que vêm em primeiro lugar com 16%, neste tipo de estrutura co-habitam ascendentes e descendentes aparentados ou não, para além dos progenitores e filhos.
Comparando os dados de 2015 com os de 2000 verifica-se que enquanto os agregados monoparentais mantiveram a mesma percentagem, há uma diminuição dos agregados conjugais (de 27% para 24% no caso dos casais isolados e de 19% para 16% nos compósitos), tendo aumentado os agregados sem filhos.
Dentro de cada modelo aqui tipificado caberiam ainda várias configurações. Em vez do pai, talvez o agregado seja composto por um padrasto. Ou duas mães. Ou até dois pais. E em vez da avó, talvez a tia. Múltiplas variantes, portanto.
Com os números gerais e os casos particulares, reitera-se: que sentido faz falar de modelo “padrão”, papá ku mamá, em Cabo Verde?
Não faz. Não entrando aqui no debate sobre a importância do pai, esse modelo, institucionalizado na sociedade, e nas escolas em particular, é na realidade um ideal que exclui cerca de metade das crianças cabo-verdianas.
Sara Almeida
Mãe-filho-bisavó
A mãe de C. há muito que emigrara deixando-a ainda menina com a sua avó. Quando C. engravidou, aos 15 anos, o namorado negou que o filho fosse seu. A avó paterna também não se coibiu de espalhar pela vizinhança que a criança não era seu neto. Quando a criança nasceu, o jovem pai recusou-se a registá-la. A C. aconselharam-na a exigir esse direito na Justiça, mas a jovem, magoada, não quis seguir essa via. Com o nascimento do bebé, e ao longo dos meses, o pai foi mudando um pouco a postura. Acabou por dar o nome ao filho. O nome mas mais nada, pois C. não perdoa a negação dos primeiros tempos, a falta de apoio e a difamação.
Hoje o filho já tem quatro anos. “Agora, o pai, de vez em quando tenta aproximar-se, vem com uns presentes para o menino, mas eu não aceito. Não depois da atitude que teve. Não quero nada dele. Eu trabalho, tenho o meu dinheiro, nada falta ao meu filho. Não preciso dele”, conta ainda ferida no seu orgulho.
C. e o filho moram ainda com a avó desta que é o sustentáculo da casa e cuida do menino quando este não está no jardim-de-infância. A jovem, além de trabalhar voltou a estudar, agora à noite, depois de um interregno, devido à maternidade. Assim, com muito pouco contacto com o pai, o menino vai crescendo tendo como agregado familiar a mãe e a bisavó.
Sara Almeida
Fidju di fora
Outrora era algo que amiúde ocorria na sociedade cabo-verdiana. O homem envolvia-se com a empregada, tinham um filho (às vezes até mais do que um), e estes eram criados na mesma casa com os irmãos “legítimos”.
Entretanto, na maior parte das vezes, a mãe desses chamados fidju di fora, não vivia na mesma casa, mas isso não impediu que em alguns casos, já menos comuns, estes fossem viver com o pai e a sua família “legítima”, que por norma teriam melhores condições económicas.
Aquilo que há algumas décadas era relativamente comum tem vindo a tornar-se um fenómeno raro à medida que as famílias se tornam cada vez mais pequenas e nucleares e as relações marido-mulher mudam. O caso de G. foi pois já raro na altura em que aconteceu, há cerca de quinze anos.
Quando o marido de G. lhe contou que tinha um filho, de cuja existência só soubera há uns meses, ela ficou em choque. Mas o abalo acabou por dar lugar a uma certa empatia pelo jovem de 13 anos, cuja mãe o deixava agora ao cuidado de terceiros (por motivos que G. nunca quis saber).
Acabou por concordar em trazê-lo para a sua casa e cuidar dele junto com os filhos.
“Aceitei porque achei que tinha o dever de ajudar. Pela história que o meu marido contou, o rapaz estava com problemas e eu não poderia negar ajuda a quem precisa. De qualquer forma, ele também não tinha culpa de ter vindo ao mundo”, conta.
Além disso, era irmão dos seus filhos. Assim, J. “foi mais um elemento que chegou à minha família”. Ultrapassadas algumas diferenças – devido às referências diferentes com que o rapaz tinha crescido – a integração aconteceu tranquilamente. O afecto surgiu.
G. era inclusive a encarregada de educação do rapaz. Tal como ia à escola para acompanhar a educação dos seus filhos, ia também para fazer o acompanhamento de Carlos.
Viveram juntos cerca de oito anos. Ainda hoje ele “tem muito respeito e carinho por mim e eu por ele”.
Sara Almeida
Pai-mãe-filho enteado
N. engravidou antes de fazer 18 anos. O namorado assumiu o filho. Quer dizer, deu-lhe o seu nome, e pouco mais. Aparecia de quando-em-vez para lhe dar um presente ou para o levar a ver a família paterna. Nos últimos três anos, desde que N. se juntou com L., a presença é ainda mais rara. Nunca lhe deu qualquer pensão de alimentos. Como ele não tem trabalho certo, N. também nunca a pediu. Quem suportou todos os custos da criança até L. aparecer foi a sua família. Agora é Luís. Era também Luís que lhe pagava a Universidade, mas agora, com o bebé de ambos, os estudos estão suspensos. “É muita despesa, e o meu codé também é ainda muito pequeno para ir para o jardim”.
A gravidez não veio num bom momento. Ela preferia ter esperado pelo fim do curso, mas também não foi propriamente um “acidente”.
“Eu queria ter um filho dele, só não queria tão cedo. Mas ele estava sempre a pedir-me para termos. Chegou a dizer que não era justo estar a criar o filho de outro, sem ter nenhum filho seu. Então, deixei andar… e aconteceu”, diz.
L. já tem outra filha já com “uns 10 anos”, com outra mulher, a quem, garante Natércia, ajuda monetariamente. Mas não há muito convívio. A outra mulher também já mora com outro homem, então acho que ele evita encontrar-se com o outro. Nunca houve qualquer conflito entre os dois, mas penso eu que seja isso.
Sara Almeida
Mãe-Mãe-Filho ou Pai-Pai-Filho
Até ao fecho desta edição não foi possível obter um testemunho sobre famílias compostas por casais homo-afectivos e seus respectivos filhos. Este é um tema sobre o qual o país ainda ta da pa dodu e onde a apregoada tolerância (uma sondagem realizada em 2016 pela AfroBarometer colocava Cabo Verde como o país mais tolerante em África no que toca à homossexualidade) ainda não se traduziu em efectiva aceitação.
Em termos legais, Cabo Verde, que é um país onde a legislação tem vindo a estar na linha da frente quanto aos direitos humanos fundamentais, procedeu-se em 2004 à sua descriminalização (É um dos 37 países africanos onde a homossexualidade não é crime). Mas é só isso, basicamente.
É certo que tem vindo a aderir a algumas iniciativas de promoção dos direitos LGBT e que a introdução do casamento entre pessoas do mesmo sexo na legislação está abertamente na agenda de alguns grupos políticos e sociais. O tema contudo tem vindo constantemente a ser protelado. Entretanto, a adopção de crianças por estes casais é, advinha-se, um debate ainda remetido para um futuro distante.
Em termos de estatísticas, o silêncio sobre este tema é total, sendo que eventualmente podem ser modelos incluídos em tipologias como agregados “não conjugais compósitos”.
Casal (heterossexual) sem filhos
E. e J. vivem juntos há quatro anos. Fazem portanto parte dos 30% de agregados familiares formados por unidos de facto. E estão também nas estatísticas entre os 5% de casais isolados, isto é, sem filhos. Um número em crescimento de 2000 a 2015, segundo os dados do INE. Uma família de dois que contam fazer crescer dentro em breve.
Nenhum dos dois cresceu numa família conjugal compósita, ou seja o modelo ocidental de família formado por um casal e seus filhos. Ele, que nasceu no seio de um casamento civil, cresceu apenas com a mãe (viúva) e as irmãs. Ela, também nascida de um casamento “tradicional”, assistiu à separação dos pais e cresceu com o pai, a madrasta e os meios-irmãos paternos que entretanto foram nascendo. A mãe, por seu lado, também voltou a formar família e teve filhos da nova relação.
Quando se conheceram ela tinha 20 anos, ele 28. Concordaram que não só a relação era demasiado recente para terem filhos como também que ela deveria terminar os estudos e ele estabilizar-se profissionalmente. Um falso alarme de gravidez fez com que tomassem medidas práticas para adiar a paternidade e E. começou a usar um método contraceptivo.
Anos depois e já a viverem juntos, a hipótese de terem um filho surgia pontualmente. Os amigos de J. começavam a ser pais. Mas E. queria estudar mais e emadurecer mais a relação.
Entre o seu grupo mais próximo de amigos, são o único casal sem filhos. J. admite que sofreu muita pressão por parte de amigos e colegas por, passado dos 30 anos, não ser ainda pai. Algo que encarou naturalmente.
“ Eu vi muitos a terem filhos que depois ficavam entregues às mães. Eu não queria isso para mim. Cresci sem pai (faleceu quando eu era muito novo) e sempre tive essa convicção de que jamais teria um filho para depois não lhe dar todo o apoio necessário”, diz.
Sendo uma família de dois as responsabilidades são repartidas o mais equitativamente possível, inclusive as tarefas domésticas. O casal divide o aluguel e as despesas da casa e não há tarefa de mulher e tarefa de homem. Revezam-se e assumem os trabalhos domésticos conforme as necessidades e disponibilidade.
De casamento, ainda não falam. A estabilidade conseguida na relação, para já, traduz-se na decisão de aumentar brevemente a família.
Chissana Magalhães
Mãe & filho
Segundo dados do INE, 55,9% das crianças menores de 18 anos vive sem a presença do pai (2015). O filho de P. faz parte desta estatística. A sua era, até há pouco tempo, uma família monoparental nuclear formada apenas por dois elementos.
Aos 25 anos P. viveu uma relação da qual resultou o seu primeiro filho, R., hoje com 15 anos. O pai da criança nunca foi presente e nem comparticipa regularmente com os encargos da sua educação, etc. P. também não conta com o apoio da sua família original mas diz que, não obstante as dificuldades, sente-se orgulhosa de ter criado sozinha e bem o seu filho e ter uma carreira profissional satisfatória.
“Ele é um rapaz bem-educado. Vai bem na escola e sempre me ajudou”, conta.
P. admite que, principalmente com a entrada na adolescência, sentiu a necessidade de algumas informações que mais facilmente uma figura masculina poderia transmitir. Algumas leituras e o apoio de amigos foram o suficiente para contornar em momentos de dúvida.
Os amigos foram sempre a outra família com a qual P. e R. sempre contaram. Portanto, não houve natais tristes e nem faltou amparo nos momentos difíceis.
“Sim, senti ao longo dos anos alguns preconceitos. Há sempre algumas pessoas que deixam transparecer essa ideia da mulher casada ter mais status”, admite.
Outro aspecto menos agradável de constituir uma família monoparental relaciona-se à escola. Ao mesmo tempo que diz que o filho nunca sofreu discriminação, até porque esta é uma condição comum na sociedade cabo-verdiana, P. critica a postura do sistema de ensino que destaca um modelo de família que não reflecte a realidade da maioria das crianças.
Agora com 40 anos, P. vive com um novo companheiro e prepara-se para ser mãe novamente. A família cresceu e R., o filho mais velho, está a lidar bem com a mudança.
Chissana Magalhães
Avó, filhas & netos
Numa casa modesta de um dos bairros periféricos da Cidade da Praia vivem as irmãs S. e M., com a mãe e os seus filhos. São cinco as crianças da família. A mais velha tem 9 anos, a mais nova pouco mais de 1 ano. Duas são filhas de S. (31 anos) e três de M. (28 anos). As duas irmãs vivem com a mãe, a “chefe do clã”. Outros irmãos vivem noutros espaços e alguns formaram as suas próprias famílias.
A mãe/avó, as duas filhas e os cinco netos enformam uma família a que os dados estatísticos caracterizam como monoparental compósito (39%). No caso de Cabo Verde estas são sobretudo famílias chefiadas por mulheres.
Quando, décadas atrás, a mãe de S. e M. veio do interior de Santiago para viver na Praia tinha três filhos da relação marital que acabara de chegar ao fim. De uma nova relação nasceram outros três filhos cuja criação acabou também por assumir sozinha.
A mesma realidade é hoje vivida pelas duas filhas. Tanto S. como M. têm filhos de diferentes relações e nunca saíram da casa da mãe para formar a sua família. Os filhos nasceram e cresceram sob a protecção da avó materna.
A solidariedade está na base da relação familiar. Todas cuidam das crianças. As duas irmãs trabalham fora e a avó cuida das crianças quando estas não estão na escola.
Para as duas irmãs, o modelo familiar é algo natural. Já não tão natural e aceitável para ambas é a completa ausência e desligamento dos pais das crianças.
“Acho que não tem nada a ver se o pai e a mãe não estão juntos. Sendo pai, deveria estar presente e colaborar na educação”, diz S..
Ela não esconde a mágoa por ver o pai do seu filho mais velho a formar uma nova família em que o filho que com ele vive tem direito ao afecto e aos cuidados materiais que ao seu são negados.
Entretanto, a relação com o pai da filha mais nova é estável. Mas, por falta de condições económicas, não podem ainda viver juntos.
Chissana Magalhães
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 799 de 22 de Março de 2017.
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