A Plataforma das ONGs tem-se revelado um parceiro incontornável do desenvolvimento social e económico de Cabo Verde

PorAntónio Monteiro,14 out 2017 6:50

O recém-eleito presidente da Plataforma das ONGs afirma que o movimento associativo cabo-verdiano tem feito um percurso extraordinário a partir da década de 90, mas acentua que é chegado o momento de introduzir mecanismos de autorregulação no seu funcionamento como único caminho para se exercer um controlo democrático, mas ao mesmo tempo legal de práticas e procedimentos que sejam conforme com aquilo que é o princípio do funcionamento das associações. Em relação ao IV Fórum Mundial de Desenvolvimento Económico Local que se realiza na próxima semana na Praia, Jacinto Santos diz que é importante criar uma estratégia para o pós-Fórum como forma de traduzir as suas conclusões em projectos concretos.

 

 

A relação das ONGs com o governo tem sido uma expressão de emancipação, ou mero instrumento de dependência?

O movimento associativo cabo-verdiano de fim não lucrativo fez um percurso extraordinário nos últimos anos sobretudo a partir da década de 90. Este movimento surgiu virado fundamentalmente para responder a problemas sociais concretos dos seguimentos sociais da população cabo-verdiana mais pobres e mais vulneráveis das comunidades rurais e das periferias urbanas. Tem sido também um instrumento de proporcionar acesso a rendimentos através da realização de investimentos de natureza iminentemente comunitária. Neste aspecto conseguiu realizar dois objectivos ao mesmo tempo: dotar as comunidades locais de infraestruturação básica e proporcionar rendimentos às famílias rurais. O tecido associativo cabo-verdiano tem vindo a se diversificar. É muito heterogéneo em termos de áreas de actividade, em termos de domínios de intervenção, de grau de estruturação e de organização e gestão. Mas agora é chegado o momento de, para além da sua dimensão utilitária, de trabalhar a dimensão de um projecto social que tem no centro a emancipação cidadã-política no sentido lado do termo, a emancipação económica, social e cultural na perspectiva da contribuição para a realização da democracia económica, social e cultural prevista na Constituição de Cabo Verde. Significa que paulatinamente, isso é uma tendência mundial, a sociedade civil organizada, para além da sua função concreta no domínio social, tende também a ter uma expressão política na esfera pública em matéria de participação na co-produção de políticas públicas. No quadro da Constituição da República de Cabo Verde nunca as organizações da sociedade civil nunca poderão ser instrumentos ou caixas-de-ressonância do Estado, dos municípios ou dos partidos políticos. Por isso, na última Assembleia Geral da Plataforma das ONGs [realizada entre 28 e 30 de Setembro, na cidade da Praia] introduzimos nos estatutos a figura da Provedoria de Ética Associativa. Nós tínhamos aprovado o Código de Ética Associativa, em Dezembro de 2009, e queremos que este código seja o mais divulgado possível e seja um instrumento de valorização do ponto de vista ético da acção não-governamental no desenvolvimento de Cabo Verde. É claro que nessas coisas não se pode garantir certezas de um controlo em absoluto. Não obstante, estou convencido de que se afinarmos o quadro legal e introduzirmos alguns elementos inovadores nomeadamente a articulação com o Tribunal de Contas chegaremos lá. Aliás, defendi no meu livro [Economia Social e Solidária em Cabo Verde: génese, entidades, actualidade e perspectivas] que todas as instituições da sociedade civil que trabalham com os recursos de todos nós os seus relatórios de actividade devem ser submetidos ao Tribunal de Contas para que, de facto, as associações sejam blindadas a todas as tentativas de infiltração para fins outros. Aqui entra também a relação com os partidos políticos, que é uma velha questão identificada há mais de duzentos anos por Tocqueville no seu livro “A democracia na América”. Ele dizia que o cidadão resiste a tudo o que pretende condicionar a sua independência, mas está totalmente disponível para fazer tudo o que o seu partido lhe pedir. Aqui entra um trabalho importante de diálogo político sobre o papel dos partidos em relação aos seus militantes e dirigentes, no sentido de serem eles o exemplo do respeito pela Constituição da República, respeitando a independência e a autonomia das organizações da sociedade civil e preparar os seus militantes e simpatizantes no sentido de continuarem a praticar uma militância cívica para o desenvolvimento, mas nunca fazer das associações prolongamento das estruturas partidárias ou para outros objectivos estritamente partidários.

 

Há um recenseamento do número de associações activas em Cabo Verde, porque sabe-se que há casos de associações adormecidas e que só existem no papel mas que lesam o Estado em milhares de contos através de importação de viaturas com isenção ou através da venda de doações?

Isso é um problema que é sério e não se restringe apenas a Cabo Verde. Em todos os sectores de actividade encontramos boas instituições, boas práticas, mas também más instituições e más práticas. Entretanto, no conjunto, avaliando o impacto da intervenção das associações no desenvolvimento de Cabo Verde, o resultado é altamente positivo. Desde logo, porque neste momento a organização social de Cabo Verde está estruturada em três pilares: o Estado com a sua função de garantir a coesão nacional e de realizar a sua função redistributiva para garantir a solidariedade e o desenvolvimento equilibrado; o sector privado que funciona na lógica do mercado e na maximização do capital investido e o sector social organizado em associações nas suas mais diversas formas que tem sido o principal instrumento de acesso aos recursos públicos pela melhoria das condições de vida da população, e sobretudo tem lançado as bases para a criação de uma capacidade autónoma a nível local de condução ou de liderança de processos de desenvolvimento de caracter associativo. Agora, como todas as instituições em Cabo Verde, as ONGs têm muitas fragilidades que começam pelo contexto em que a maioria das associações surgem ou surgiram. Emergem de uma situação de pobreza com baixo nível técnico, profissional e académico dos seus líderes – são na sua maioria camponeses e pescadores – com baixo nível de estruturação para assumir na plenitude as suas funções e também com fraco nível de cultura democrática vertida em práticas associativas de autogestão. Portanto, é um processo longo que exige do Estado, em sede de políticas públicas, a implementação de um programa ou um plano de capacitação técnica e institucional dessas organizações que são muito importantes para a realização dos objectivos do país numa perspectiva de longo prazo. Um segundo aspecto: é preciso introduzir também mecanismos de autorregulação do funcionamento do tecido associativo cabo-verdiano que garantam o cumprimento dos princípios e das leis previstas no âmbito dos quais as associações devem orientar a sua acção com elevado sentido ético, de transparência e de prestação de contas aos seus sócios, à sociedade, aos seus parceiros nacionais e estrangeiros. Diria que essa necessidade de autorregulação é o único caminho para se exercer um controlo democrático, mas ao mesmo tempo legal de práticas e procedimentos que sejam conforme com aquilo que é o princípio do funcionamento das associações. Significa que temos que mexer na nossa lei, nomeadamente no regime jurídico da constituição das associações sem fins lucrativos. Por exemplo, na nossa lei não há nenhum dispositivo que permita com base legal determinar que uma associação não está a funcionar. Sem pôr de lado o recurso à via judicial, uma associação deixa de existir quando os seus sócios se reunirem em assembleia geral extraordinária para deliberar a sua extinção. Uma associação que não funciona durante cinco a dez anos, que não renova os seus órgãos sociais, que não tem nenhuma actividade relevante e não demonstra a sua missão e a sua utilidade, nem para os seus associados, nem para a comunidade onde está inserida, não existe, de facto. Mas do ponto de vista legal existe, porque não há nenhum acto jurídico que determina a sua extinção. Por isso, é necessário introduzir um mecanismo legal que permita dizer que essas associações, embora existindo formalmente, para efeitos de acesso, pelo menos, a recursos públicos do Estado, não podem ser elegíveis. Por outro, sem ir para o controlo, porque a Constituição não o permite, é necessário criar um mecanismo que estabeleça um processo de auto-regulação participado internamente, mas também um processo de co-regulação com o Estado. A ideia que nós temos a nível da Plataforma das ONGs é de começar um diálogo com a Sra. Ministra da Justiça no sentido que transferir para a Plataforma a função de registo de pessoas colectivas que nos permite, como estamos no terreno, com mecanismos legais de determinar o registo, mas também os averbamentos sucessivos para cada transformação ocorrida no seio de cada associação, o que nos permite a cada momento dizer quantas associações existem em Cabo Verde com funcionamento efectivo, quantas não funcionam, tantas que funcionam ilegalmente e criar uma base estatística segura. Essa base de dados tem que ser integrada no sistema estatístico nacional. Nós temos uma base muito importante de 724 organizações cadastradas entre 2014 e 2015 essa base de dados tem que ser actualizada periodicamente, mas tem que ser integrada no sistema estatístico nacional introduzindo outros indicadores de avaliação que permita a todos os actores, a todas as instituições nacionais e estrangeiras ter acesso a esses dados, porque o maior capital das organizações de fim não lucrativo não são os recursos que mobilizam, mas a sua reputação, imagem e capacidade de uma boa governança e a relação entre os recursos mobilizados e o seu desempenho social, ou seja, o seu impacto transformador na vida das pessoas. É um caminho longo: exige um trabalho continuado de educação para o desenvolvimento, de investimento na educação para a cidadania e mostrar que as associações, para além do seu aspecto utilitário que é muito importante, encerram várias dimensões nomeadamente social, económica, politica, cultural e ambiental como um todo na trilogia Estado/mercado/sociedade civil.       

 

O que espera do 4º Fórum de Desenvolvimento Economico Local que se realiza na próxima semana na Praia?

A aventura cabo-verdiana é muito apreciada no plano internacional. Claro que falta traduzir e publicar muitos trabalhos de investigação feitos em Cabo Verde, por nacionais e estrangeiros na área do desenvolvimento económico local, do associativismo, do micro-crédito e da economia social solidária. Há uma bibliografia muito interessante sobre essa matéria em Cabo Verde, mas pouco conhecida entre nós. Só não conseguimos ir mais longe em termos de divulgação do que se faz em Cabo Verde, porque ainda não publicamos o suficiente e não traduzimos para o inglês e o francês os resultados das investigações feitas no país. Mas falta-nos ainda percorrer um longo caminho no sentido da sistematização da prática social cabo-verdiana. É necessário transformar essas práticas em conhecimento científico. Para isso é fundamental a academia, é fundamental que as nossas universidades, mais do que fazer a extensão, entrem num verdadeiro processo de comunicação com a sociedade civil, trazendo a pesquisa empírica para o domínio científico para construirmos um conhecimento consolidado e em permanente reflexão sobre a prática social cabo-verdiana. Podemos fazer estudos simples como estudos de casos, de boas práticas e criar um acervo nesta matéria. Há várias teses de doutoramento e de licenciatura sobre instituições de micro-finanças. O ISCTE tem há mais de dez anos um mestrado sobre economia social e solidária com muitos estudos sobre Cabo Verde com o envolvimento de estudantes cabo-verdianos, portugueses e outros. De maneira que o 4º Fórum é uma grande oportunidade, talvez a única, por ser o maior evento internacional realizado em Cabo Verde nos últimos anos. Só o facto de participarem no Fórum grande número de cabo-verdianos, a grande maioria formada por técnicos e cientistas do continente africano e da forma como o Fórum está organizado, com um painel de diálogo político de alto nível, com painéis de aprendizagem para aquisição de conceitos sobre determinadas áreas da economia social solidária, do cooperativismo e do desenvolvimento económico, é para Cabo Verde uma grande oportunidade de aprendizagem e uma grande oportunidade de mostrar o que melhor sabe fazer neste domínio. O tempo é curto e infelizmente não vai haver palavra para todo o mundo. Mas se soubermos organizar, com uma feira de livros produzidos em Cabo Verde, com outros aspectos da nossa cultura que dentro das salas do Fórum não serão possível divulgar, para permitir que no entourage da organização os nossos visitantes possam interagir com os actores institucionais e associativos nessa problemática: eleitos locais, líderes associativos, técnicos e quadros da administração pública, universitários, académicos, sindicalistas e outros. Mas o mais importante para mim, não sei se já existe, é uma estratégia em Cabo Verde para o pós-Fórum. Como capitalizar este Fórum para, pelo menos, obtermos acordos de princípio para a implementação de alguns projectos emblemáticos que reflectissem os temas fundamentais que vão ser objecto de debate. Nós temos a temática do Desenvolvimento Económico Local como base para territórios integrados e coesos com toda a problemática à volta da descentralização, governação local participada, etc; temos o Desenvolvimento Económico Local como base para sociedades resilientes e pacíficas em contextos frágeis; temos o Desenvolvimento Económico Local como base para economias sustentáveis e inclusivas que é o problema central deste país: como fazer uma economia inclusiva e sustentável? Aí entra em primeiro lugar a economia social e solidária e outros paradigmas económicos alternativos. Podemos dosear o neo-liberalismo no conceito em que a economia não se reduz ao mercado. Teremos ainda o painel Foco especial: Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (PEID). Cabo Verde caprichando e definindo uma estratégia pós-Fórum pode, pelo menos, ter um projecto emblemático para cada um desses quatro temas fundamentais do Fórum.

 

Não parece fácil.

Temos que aprender com o Senegal que está aqui perto. Senegal não vai a nenhum fórum internacional sem fazer o trabalho de casa. E não vai a nenhum fórum, sem que ao chegar ao país, não crie um task force para implementar e explorar as conclusões do fórum. Tem que haver um task force. Se ficar diluído na acção governamental não chegamos lá. Mas, se o primeiro-ministro, logo após o Fórum, criar um task force para pensar como traduzir em projecto algumas das conclusões e recomendações do Fórum, aí sim, chegaremos lá.  

 

O que é a Plataforma das ONGs

A Plataforma das ONGs foi criada em 1996. Inicialmente concebido como chapéu das organizações não-governamentais, sofreu ao longo dos seus 21 anos, uma profunda alteração pelo que hoje 73 por cento da sua base social constitutiva é formada por associações de desenvolvimento comunitário. Em 2015 estavam cadastradas 724 dessas organizações. Hoje é uma plataforma abrangente das organizações da sociedade civil nas suas várias componentes: associações, ONGs, cooperativas e fundações. É uma estrutura de rede que tem por objectivo primordial ser o interlocutor privilegiado da sociedade civil organizada perante os poderes públicos, parceiros privados e outras instituições nacionais e internacionais. É, segundo os seus estatutos, uma instituição geradora de capacidades para apoiar cada um dos seus membros individualmente, ou através de políticas comuns no domínio da formação profissional, reforço técnico e de gestão das instituições-membro.  Segundo Jacinto Santos, a Plataforma das ONGs tem-se revelado ao longo desses 21 anos um parceiro útil e incontornável em várias áreas e domínios do desenvolvimento social e económico de Cabo Verde.     

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 828 de 11 de Outubro de 2017. 

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Autoria:António Monteiro,14 out 2017 6:50

Editado porDulcina Mendes  em  15 out 2017 11:10

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