Corsino Tolentino:“Num plano especulativo o PAIGC não existiria sem a União Soviética”
Que importância teve a Revolução de Outubro na criação de uma Nova Ordem Mundial?
Pois, falava-se e ainda fala-se em Nova Ordem Mundial, com mais igualdade, liberdade e justiça para todos...
O socialismo foi o grande suporte dos movimentos independentistas em África e um pouco por todo o mundo. Seriam esses movimentos possíveis sem esse suporte? Que importância teve a União Soviética no desenvolvimento do independentismo africano?
Pois foi. Tudo começou com a revolução de Outubro (que veio a ser Novembro por questão de calendário). Escrever a História com se é sempre complicado. Porém olhando para trás, somos levados a aceitar que se não fosse a revolução de Outubro, algum fenómeno parecido tinha de acontecer e a Ordem mudaria. Tomando os factos como aconteceram, há uma relação directa entre a existência dos países socialistas, a União Soviética, principalmente, e os Movimentos Africanos de Libertação Nacional. E é preciso analisar as coisas no contexto. O Mundo não era igual ao de hoje. Havia a agressiva NATO e Portugal era membro. Praticamente não havia alternativa para quem buscava a independência nacional.
Falando especificamente de Cabo Verde, e num plano meramente especulativo, seria possível a existência do PAIGC sem o apoio da União Soviética?
Não, num plano meramente especulativo, porque não tinha de ser assim, mas foi, o PAIGC não existiria sem a União Soviética. Não convém esquecer que a utopia de um mundo sem exploradores nem explorados (era a linguagem daqueles belos tempos) tomou conta do Mundo, não só da Rússia.
O que falhou na Revolução Russa?
O que falhou na Revolução Russa foi sobretudo a falta de liberdade. É o mistério que persegue a Humanidade sempre que uns iluminados chegam ao poder. Em vez de liderarem, mandam. A União Soviética falhou, o Muro de Berlim caiu para ambos os lados e há muitos sistemas a falharem. Não chegámos à Democracia perfeita e o pior pode acontecer nos países pequenos, médios ou grandes.
Aquilino Varela: O ideário do socialismo mantém-se actual
Qual foi o impacto da Revolução Russa em Cabo Verde?
Curiosamente desencadeada em nome de mais Pão, Terra e Paz a eclosão da Revolução Russa, em 1917, contrariamente do que se pensa, não obteve eco sinalizável junto da intelligentsia de Cabo Verde de então. As influências, traduzidas em ideário, arquétipos e apoios concretos só mais tarde se fizeram sentir. Não obstante, nas escritas dos mais ilustres protonacionalistas de então, como Eugénio Tavares (1890 – 1936), José Lopes (1872 – 1962) e Pedro Cardoso (1883 – 1942), apercebe-se nas suas exigências a solicitação de mais irmandade no tratamento do colono, mais pão e mais justiça social no acesso a terra por parte dos nacionais das ilhas, o certo é que estas reivindicações nunca afiguraram-se de cunho revolucionário, susceptível de ser evidenciado como uma influência da conjuntura mundial em que a Russia pontificava-se. Quando se alça como empreitada seguir as pizadas para identificar os possíveis contágios do cunho revolucionáerio nos intelectuais cabo-verdianos da época, a dada altura, aparece pelas penas de Pedro Cardoso o poema Unidos Avante que, distraidamente, podemos concluir que se tratava de uma recpção dos ecos da revolução. Contudo, só anacronicamente podemos ser induzidos a assim pensar. Pois, este poema, pelos dados da investigação coligidos, foi escrito em 1913, e os seus aportes conteudais remetem-nos para uma dedicação, sem dúvida, aos operários mindelenses, mas inspiradas nas proezas dos escritos de Karl Marx. Portanto, a luta de ideias que desencadeou a Revolução Russa, e outras que se seguiram em nome das supramencionadas exigências, para se requer maior representatividade nas assembleias locais russas e mais responsabilização da classe política não teve publicamente recepções intelectual e social. As narrativas dos intelectuais cabo-verdianos de então foram urdidas em torno de dramas nacionalmente vividos como a seca, a emigração, a fome, etc.
De que forma a Revolução Russa influenciou a luta anti-colonial?
A Revolução Russa de 1917 foi o maior hino de fraternidade jamais alcançado no mundo. Nem a Revolução Francesa de 1789, com o seu ideário de Liberté, Egalité, Fraternité, teve aplausos e alcances comparados, negativa ou positivamente ajuizados. Os lideres da revolução, sobretudo o seu maior obreiro, Vladimir Ilyitch Ulianov mais conhecido por Lenin, cedo manifestou-se a favor de internacionalização da revolução e um solidário apoio aos movimentos antifascistas e de luta de libertação. Por esta e por outras razões, países das ex-colónias portuguesas, e não só, não podem simplesmente compartilhar a ideia póstuma de que a Revolução Russa, pelos efeitos perversos que gerou através da sua implementação contextual, deve ser lançada no caixote de lixo ou nas pratileiras dos museus da história. Há lições e ensinamentos de uma grande atualidade. O ideário do socialismo ontem implantado na URSS mantém-se actual hoje. Embora, hoje, reconheça-se também, há um mundo que se demonstra pouco disponível para celebrar o centenário da revolução russa.
Qual o impacto da ideia do centralismo democrático em Cabo Verde, particularmente durante a primeira república.
Hoje, quando somos instados a pronunciar sobre o centralismo democrático instaurado durante a Primeira República em Cabo Verde (1975 a 1990) somos futilmente a valiá-lo holisticamente como sendo nefasto. Porém, esquecemos que o progresso, o desenvolvimento económico e político são sempre produtos de uma construção social e que o seu caminho para os conseguir não é nem linear, nem pacífico. É um processo de tentativa de erro em que os agentes carecem da capacidade de prever com razoável precisão as consequências de suas ações. A elite política cabo-verdiana da Primeira República, à semelhança da sua congênere de uma centena de nações do mundo, sentiu-se atraída pelo socialismo “dito científico” em construção na ex URSS. Se do ponto de vista económico é bastante controvérsia a avaliação que se possa fazer sobre o centralismo democrático em Cabo Verde, do ponto de vista político é indiscutível o perdurar da sua censura. A atuação do Estado no sentido de sacrificar os próprios cidadãos sobre o altar da sua vontade de potência, sem o sustento concreto da vontade moral dos individuos, continua ser ferida dolorida que é conservada no tecido social cabo-verdiano, sobretudo por parte daqueles que infelizmente experimentaram, em pessoa, a derriva implementada.
Qual foi impacto da Perestroika, também chamada a segunda revolução russa, na queda do regime de partido único?
Do Czarismo ao Comunismo, e deste para a uma Democracia centralizada, a Russia, pode-se dizer, é o território do mundo que mais reestruturação conheceu. A Perestroika, conhecida por reestruturação política, implementada por Gorbachev, então Secretário Geral do Partido Comunista entre 1985 a 1991 é tida como sendo o golpe de miséricórdia que levou ao fim da falida e convulsiva URSS. Enquanto vigorava, no seu explendor, com fluxos e refluxos de recursos estratégicos, naturais e financeiros a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas constitui-se em uma poderosa âncora para os vários Estados Socialistas, ou da sua inspiração, sustentados pelo Partido-Único em África, na América Latina e na Ásia. Com o seu desmoronamento estes Estados não só perderam o ideário-farol bem como deixaram de poder contar com os apoios económicos usufruídos durante o processo da luta de libertação e construção nacional. Nestes termos, a par de outros desmantelamentos nacionais a que foram sujeitos os Estados sustentados por Partido-Único, os anais da história associam o desaparecimento simbólico do chamado Partido-Único com o fenómeno de Perestroika, sendo certo que para o efeito concatenou-se também o Glasnost.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 832 de 08 de Novembro de 2017.