Ai se em Novembro chovesse

PorChissana Magalhaes,12 nov 2017 6:54

Longe dos tempos em que um ano de seca significava a calamidade das mortandades ditadas pela fome e a emigração massiva para fora do país, ainda assim o país enfrenta nos próximos tempos desafios impostos pelo mau ano agrícola que veio deixar milhares de famílias em situação de vulnerabilidade. Parceiros internacionais já anunciaram apoio ao governo para implementação do seu plano de emergência. No interior de Santiago onde estivemos, e em outros pontos do país, a população pede urgência na ajuda pois o gado está moribundo e perde valor a cada dia, e os jovens cada vez mais olham para a capital como única saída.

 

Os dados ainda estão a ser compilados e analisados, mas este ano de 2017 já se prevê como o terceiro ano mais quente da história desde que há registos. A falta de chuvas e as temperaturas altas deram resultado a secas que estão a castigar vários pontos do planeta. Cabo Verde é um dos países atingidos.

Mal saímos da Cidade da Praia, onde o calor de ar seco das últimas semanas finalmente começa a abrandar, a aridez das montanhas e das planícies cortadas pela estrada rumo ao interior impõe-se. Em outra época do ano seria natural. Porém, para um início de Novembro há verde a menos. Em outros anos seria normal ver ali animais a pastarem relva ainda verde e abundante. Desta vez, Santiago adentro, fomos encontrando à beira da estrada ou nos campos – ora nus, ora salpicados aqui e ali de palha seca – umas quantas vacas e cabras escanzeladas, debaixo de um sol inclemente.

Não chegamos a ver carne pendurada em árvores, à espera que quem por ali passasse a comprasse, como houve quem contasse. Vimos sim circular, em direcção à cidade, carrinhas cheias de cabras. Em sentido contrário ia palha.

Os criadores de gado, aflitos com a falta de água e pasto para os animais, buscam desfazer-se deles. É o caso do empresário Tuni (Antonino Marques), estabelecido em São Lourenço dos Órgãos e conhecido pela sua marca Aguardente de Frutas.

“Tinha 20 cabras de raça (que são aquelas que dão 3 a 4 litros de leite por dia e costumam parir mais de dois cabritos a cada gestação) mas, já vendi 5 e vou ter que vender mais porque não tenho como comprar tanto pasto”.

As cabras “de raça” costumam ser um bom investimento. E no entanto, mesmo quem poderia comprar começa a ponderar perante o risco de não ter como prover alimento e água. O mesmo para o gado bovino, desde sempre visto como símbolo de alguma segurança financeira já que uma vaca, em tempos de abundância, pode chegar aos 160 mil escudos ou mais. Por estes dias, já há quem esteja a vender por 15 mil escudos.

Foi o que nos contou Amália Monteiro, 80 anos. É uma das mulheres presentes no encontro que a Câmara Municipal de Santa Catarina promoveu entre a população de Achada Grande (na fronteira com Rincão) e o embaixador norte-americano, Donald Heflin. O diplomata, que acompanhou José Alves Fernandes e parte da sua equipa ao terreno, foi ver e ouvir in loco o drama dos agricultores e criadores de gado.

Chegamos ao local ao final do encontro. A maioria dos locais que foi para expor os problemas trazidos pela ausência das chuvas, e na expectativa de algumas palavras que lhes devolvesse a esperança, são mulheres. Ao contrário de algumas que se mostram sorridentes e “mais animadas”, Amália Monteiro tem o semblante carregado. A mão que segura a bengala onde se apoia está crispada numa tensão que lhe chega aos olhos.

“Já me morreram nove cabras”, anuncia mal nos dirigimos a ela. “Neste momento só me restam seis vacas, algumas ainda vitelas. Ninguém apareceu para me ajudar. Estão a pedir mais de dois mil escudos por um saco de ração e eu não tenho como comprar. Eles têm que nos ajudar antes dos animais morrerem”.

Também queixosa, mas optimista, Francisca Mendes Fidalgo (Chica da Silva), de 54 anos. Conta-nos que lhe roubaram a única vaca que lhe sobrava e que, com a falta de chuva, o marido e o filho estão parados em casa.

“Onde vamos trabalhar? Onde vamos tirar sustento?”, interroga-nos. Não nos animamos a lhe sugerir a venda de algumas das jóias de ouro que ostenta. Afinal o ouro é o último dos últimos recursos das gentes do interior.

Entretanto, diz-se confiante de que a edilidade santa-catarinense, com o apoio do embaixador estadunidense, socorra a tempo a população local.

Chica da Silva está particularmente preocupada com o facto de a falta de colheita implicar, para ela, falta de sementes para a próxima campanha agrícola. Confiante na previsão de boa azáguas pôs todas as suas sementes na terra. E apontando para um ponto no horizonte onde se vislumbra uma pequena casa, pede-nos que confirmemos a desolação do campo onde apenas se vêm, rente ao chão, pés de milhos e ramas de feijão moribundos.

Donald Heflin, impressionado com o que viu e ouviu, descreveu a situação como um “desastre”. O embaixador norte-americano anunciou à população que irá dirigir um apelo a Washington no sentido dos Estados Unidos contribuírem financeiramente para o plano de emergência do governo.

O chamado Programa de Emergência para a Mitigação da Seca e do Mau Ano agrícola de 2017/18, conforme o ministro Gilberto Silva contou em entrevista ao Expresso das Ilhas (na edição da semana passada, nº831), foi aprovado no início de Outubro, e publicado no B.O., e deverá custar ao Estado perto de 800 mil contos.

 

Água, pasto, emprego

Todavia, algumas críticas se têm ouvido quanto á demora na concretização de acções, particularmente para salvar o gado, já que a ração entretanto importada poderá demorar demasiado a chegar ao país.

Uma das soluções que alguns criadores, nomeadamente aqueles com alguma margem financeira, estão a adoptar é a compra de grandes quantidades de bagaço de cevada a uma fábrica de produção de cerveja da capital. Esta prática não é novidade entre alguns criadores de animais, já que esta matéria é menos onerosa do que a ração normalmente vendida no mercado agro-pecuário. No entanto, o seu uso como forragem implica algumas cautelas já que é recomendado que, a partir da sua introdução na alimentação do animal, não pode ser depois alternado com outras opções de nutrição. E, contudo, nem todos possuem condições de adoptar esta alternativa ficando-se pela palha dos campos.

Mais do que o pasto a água é o problema que preocupa a todos, começando a deixar falta até para uso doméstico já que alguns furos estão secos.

De passagem por Picos (São Salvador do Mundo), a pouca distância de uma das cachoeiras que em tempos de chuva costuma ser das mais visitadas da ilha, encontramos mulheres em fila junto a um tanque de água, debaixo de um sol inclemente. A manhã já caminhava para o fim e aguardavam a chegada do caminhão cisterna que traria a água. As queixas quanto à pouca água que lhes deixam levar e ao preço elevado de cada boião não se fizeram esperar.

Aquelas eram, provavelmente, chefes de algumas das cerca de 17.200 famílias que o governo estima terem-se tornado vulneráveis com a seca e a falta de produção agrícola e pecuária. Números numa estatística que engloba famílias de todas as ilhas e que representam cerca de 62% da população rural.

Outro dos riscos que a seca traz é de aumento exponencial de migração da população rural para as cidades, particularmente Praia e Mindelo. Ainda no início da campanha agrícola já havia queixas da pouca disponibilidade de homens jovens para trabalharem nos campos.

A octogenária Amália Monteiro, presente no encontro de Achada Grande, fala-nos disso. E como que para provar a sua queixa (na verdade um lamento algo resignado) de que os jovens há muito estavam em debandada para Assomada e mesmo para Praia, aponta-nos a fileira de pessoas sentadas num pequeno muro junto a um paredão que projecta a pouca sombra que se consegue com o aproximar do meio-dia.

“Mesmo os que ficam não querem saber do trabalho de sementeira”, acusa.

Entre o grupo predominantemente feminino encontramos Beto, um dos poucos rapazes ali presentes. Confrontado com a pergunta sobre o desinteresse dos mais novos pelo trabalho agrícola, o jovem contrapõe, algo irritado, que mesmo que queiram trabalhar este ano não há trabalho. E num gesto largo, abre os braços e convida-nos a olhar para o desolador cenário de seca à nossa volta.

Também preocupado com a sustentabilidade do trabalho que provê aos seus funcionários está Atonino Marques, o Tuni. Na sua propriedade, que inclui a sua unidade de produção de aguardente mas também plantação de cana e de culturas de sequeiro, Tuni emprega dez pessoas, sete delas a tempo inteiro e devidamente inscritas no INPS.

“Nesta situação, como vou manter estas pessoas a trabalhar?”, questiona.

A situação a que se refere não é só a escassez de água que o levou a abdicar da produção da sua própria cana este ano. Implicando que, ao contrário dos 70% que costuma comprar fora, terá que adquirir 100% da cana junto dos produtores que conseguiram plantar este ano, nomeadamente, aqueles com propriedades junto a barragem de poilão. Um dos poucos sítios da ilha que ainda conta com alguma água e produção agrícola.

“ Vou ter que comprar a minha cana toda lá e já sei que, por causa da falta de chuva, o preço será pelo menos o dobro senão o triplo dos outros anos. E a quantidade que eles produzem só irá chegar para dois meses de produção de grogue”, avisa.

Crítico em relação a alguns aspectos da lei criada no âmbito do VaGrogue, Tuni queixa-se do problema que é para ele manter os seus funcionários quando por lei só pode produzir durante seis meses. Segundo o próprio, o trabalho que há a fazer o resto do ano, quando a fornadja (alambique) está encerrada não justifica a presença de todos os funcionários.

“Mas, se eu os mandar embora são pais de família que ficam sem trabalho”, sentencia ao mesmo tempo que alerta que o risco de aumento de desemprego na região ultrapassa a sua pequena empresa e é bem real. 

Um dos três eixos definidos no programa de emergência criado pelo governo passa exactamente pela criação de empregos no meio rural. Assim, prevê-se uma intensificação do chamado Programa de Oportunidades Socioeconómicas no Meio Rural (POSER) que segundo o ministro da Agricultura e Ambiente é “concebido e implementado para ter um impacto muito forte no meio rural, a nível da redução da pobreza e pela via das actividades geradoras de rendimento”.

Microprojectos a nível da agricultura, pecuária, pesca e transformação alimentar têm sido até aqui financiados pelo programa. Agora mais do que nunca é preciso mobilizar estes e outros recursos para acudir as populações do meio rural, para além de Santiago. Sobretudo nas ilhas de Fogo e Santo Antão onde a situação é também dramática.

Nestas três ilhas, projectos de privados e ONGS podem também vir a fazer alguma diferença. É o caso de um projecto de turismo rural (ver caixa) de uma empresária brasileira que pretende trazer turistas ao meio rural de Santiago, Fogo e Santo Antão.

Entretanto agricultores e criadores, como as senhoras Amália Monteiro e Chica da Silva, e empresários do agro-negócio, como o senhor Tuni, são unânimes ao demandarem por respostas a curto prazo. Sobretudo água. Antes que a seca tudo leve. Afinal, já avisava o poema de Vera Duarte: As chuvas de Outubro não existem*.

 

*Verso do poema “Ai se um dia…”, de Vera Duarte.

 

1 de Novembro com pouco milho

Este ano não houve a tradicional e muito popular Festa do Milho, o primeiro festival alimentar criado no país por iniciativa do músico Princezito e cuja organização foi logo depois assumida pela Câmara Municipal de São Lourenço dos Órgãos.

Atraindo milhares de pessoas à zona da Barragem do Poilão, o festival costuma ter impacto na economia local com ganhos para produtores de milho e outros produtos agro-pecuários, e não só, da região.

Com as parcas chuvas caídas, pouco foi o milho que conseguiu dar espigas. Mas, mesmo na falta daquela que seria a 8ª edição da Festa do Milho, segundo o senhor Tuni, algumas pessoas acorreram a zona da barragem para comprar algumas espigas. Porém, estas eram de tamanho bem menor ao habitual.

Descontente com a opção da autarquia local em não realizar o evento que considera um símbolo do Município de São Lourenço dos Órgãos, o empresário fez publicar na página de Facebook da sua marca uma espécie de manifesto onde defende que mais razões havia este ano para se realizar o festival. Até como forma de “desafogar” os produtores e comerciantes locais, proporcionando uma possibilidade de rendimento.

Como produtor que participa anualmente na feira do milho de 1 de Novembro, Tuni entende que, como chuva em Cabo Verde nunca foi regular, “deve haver um projecto que vai de encontro a esta actividade”.

“Para abastecer este mercado regularmente com milho, deviam ter um projecto de sementeira de milho (...) onde que esse milho poderá ser regado com água de barragem. Tanto faz num ano chuvoso ou não, este projecto deve ser respeitado, isto é, deve haver um terreno reservado para prática agrícola deste produto (…)”, escreve o produtor de aguardente que sublinha a necessidade de um plano prévio que possa colmatar as dificuldades advenientes de um mau ano agrícola, plano esse que garanta o prosseguimento da produção de milho, “dando assim continuidade a essa festa que mobiliza a economia local”.

Com a não realização da 8ª edição da Festa do Milho e os maus resultados da campanha agrícola deste ano, muitos foram os que não se deslocaram ao interior como é tradição de 1 de Novembro. Foi o caso de Leandro, que optou por não levar a família a visitar os parentes em São Domingos para não sobrecarregá-los com despesas avultadas que sabia que efectuariam para recebê-los bem.

“Um quilo de [feijão] congo que no ano passado se comprou a 70 escudos neste momento está a 300 escudos. Imagina!”, faz notar o jovem pai de família que conta ter visto milho à venda em algumas zonas da cidade da Praia no dia 1, sendo no entanto espigas oriundas da ilha do Fogo onde, nas regiões mais altas, se conseguiu alguma colheita.

 

Projecto Brasil Rural vem a Cabo Verde

Andreia Roque é uma expert em Políticas Públicas para Turismo Rural e em Desenvolvimento Territorial que marcou presença no IV Fórum Mundial de Desenvolvimento Económico Local e aproveitou a estadia em Cabo Verde para estreitar parcerias com vista à implementação de dois projectos bastante distintos, mas que acabam por ter na essência o mesmo propósito de valorização do meio rural.

 Enquanto consultora do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), a brasileira vem trabalhando no seu país em um projecto de desenvolvimento local denominado Agentes de Desenvolvimento Subterritorial e protagonizado por jovens.

Andreia Roque destaca particularmente o projecto desenvolvido em Sergipe, “o Estado mais pobre do Brasil”, onde nas margens do rio São Francisco procuram reduzir a pobreza e debelar o êxodo rural através da criação de actividades geradoras de rendimentos para jovens até então em situação de trabalho precário.

São estes jovens que a consultora quer trazer a Cabo Verde, particularmente à ilha de Santo Antão, para um intercâmbio com jovens produtores e criadores da zona de Lajedos, Santo Antão, numa parceria com a ONG criada por Leão Lopes. Conforme o plano traçado, o grupo de jovens brasileiros deverá chegar a Cabo Verde em Junho de 2018 e a ideia é que práticas e experiências possam ser trocadas de lado a lado.

Outro projecto desta especialista em Turismo Rural e Desenvolvimento Territorial, este já a nível pessoal, passa pela criação de um pacote de turismo rural com Cabo Verde como destino.

Ela que já estivera há anos nas ilhas de Sal e Boa Vista, ficou ainda mais interessada em ajudar Cabo Verde a explorar o seu potencial para outro tipo de turismo, mais sustentável, como é o turismo voltado para o desenvolvimento de territórios rurais.

CEO da empresa Brasil Rural, uma pequena operadora turística que aposta em pacotes que ofereçam “experiências naturais” em ambientes rurais, Roque tem já uma operadora turística cabo-verdiana como parceira e, da sua viagem ao nosso país em Outubro último, efectuou contactos e identificou potenciais parceiros em Santiago, Santo Antão e Fogo com vista a iniciar operações já em Janeiro de 2018.

“Em Santo Antão o nosso parceiro deverá ser o Leão Lopes, com o seu projecto. Em Santiago a Misá é um dos nossos contactos, já que a aldeia dos Rabelados e principalmente Porto Madeira deverão entrar no circuito. E na ilha do Fogo temos dois parceiros, a Cooperativa de Vinhos em Chã das Caldeiras e, em São Filipe, a ONG Casa do Sol”, avançou-nos a empresária.

Integrada numa rede internacional de pequenas operadoras com as quais tem parcerias, a Brasil Rural espera trazer a Cabo Verde turistas do mundo todo. Entretanto, o primeiro grupo que já tem viagem programada para o período de 24 de Janeiro a 2 de Fevereiro  de 2018 vem do Brasil, das regiões de Brasília e Goiás.

No site da Brasil Rural o destino Cabo Verde já está a ser divulgado através de um pequeno texto que fala em “terras de morabeza” e que poucas vezes se irá encontrar “uma terra formada de pequenas ilhas e de tão grande identidade”.  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 832 de 08 de Novembro de 2017. 

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Autoria:Chissana Magalhaes,12 nov 2017 6:54

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  10 nov 2017 14:23

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