Segurança no mar: A eterna luta contra a pirataria e o tráfico

PorJorge Montezinho,9 dez 2017 6:00

Pirataria, pesca ilegal, tráficos ilícitos, crimes ambientais. São muitas as ameaças num espaço tão amplo como o mar e o Golfo da Guiné continua a ser uma das zonas do globo mais problemáticas. Na semana passada, no seminário sobre o exercício da autoridade e das responsabilidades do Estado costeiro no mar, que decorreu na Praia, numa organização conjunta entre Cabo Verde e Portugal, houve oportunidade para discutir e analisar os desafios sobre a segurança no mar. Mas a única certeza que há é que nunca se vai eliminar a insegurança no mar.

 

Nos primeiros nove meses de 2017 registaram-se 121 incidentes no Golfo da Guiné, zona onde o fenómeno da pirataria marítima tem recrudescido. São menos incidentes do que em 2016, mesmo assim é um valor preocupante. “Não creio que estejamos perto de acabar com a pirataria”, diz ao Expresso das Ilhas o Brigadeiro Antero  Matos, antigo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas de Cabo Verde e especialista em questões de segurança marítima. “A questão da pirataria é que ela não tem a sua origem no mar, são os conflitos em terra que a provocam, a instabilidade daquela região. Enquanto aquela área, principalmente da Nigéria, não estabilizar, não creio que seja possível falarmos em acabar com a pirataria”.

No Golfo da Guiné grande parte da pirataria está concentrada na zona da Nigéria. Mas toda a região enfrenta uma série de desafios: fronteiras permeáveis, pressão demográfica, má comunicação de dados, o mar como um espaço apelativo a actividades ilícitas, a pirataria e o narcotráfico. Para além disso, sem marinha é quase impossível actuar fora das 12 milhas. “Faltam meios”, reforça Antero  Matos. “A troca de informações nem é a parte mais difícil, os países todos têm mais ou menos informação, há a arquitectura de segurança marítima, o problema é intervir, chegar lá. E para se intervir não bastam os radares, não bastam os satélites, temos de ter navios, aviões, helicópteros e a maior parte dos países não têm esses meios. É preciso que os Estados invistam nos meios operacionais e há estudos que demonstram que os Estados africanos têm investido muito pouco nessa matéria”.

Nos últimos anos, a CEDEAO e a CEEAC (Comunidade Económica dos Estados da África Central) desenvolveram importantes acções com o objectivo de conseguir a protecção e a segurança marítima na área do Golfo da Guiné. A CEEAC trabalhou uma estratégia de segurança para o Golfo da Guiné baseada em dois elementos: a criação de um centro de coordenação regional de segurança marítima – com a tarefa de reforçar as capacidades de militares e civis de países membros – e através da promoção de uma sinergia entre os países da CEEAC e da CEDEAO.

Já a CEDEAO desenvolveu a sua própria estratégia marítima integrada, com base nos esforços regionais para fortalecer uma integração económica. Esta estratégia destaca a necessidades dos Estados membros adoptarem uma abordagem de governança mais integrada no que se trata de assuntos marítimos, incluindo a protecção e a segurança marítimas.

As estratégias da CEDEAO e a CEEAC estabelecem vários objectivos como a partilha de informação e gestão, vigilância conjunta do espaço marítimo, harmonização das acções no mar, introdução de um imposto marítimo regional e a aquisição de equipamentos para uso comum.

Entretanto, a Comissão do Golfo da Guiné (CGG) tem sido um importante mecanismo permanente de gestão das ameaças e problemas comuns da região, em especial no que se refere ao domínio específico da segurança marítima.

A acção destas três organizações regionais – CEEAC, CEDEAO e CGG – conduziu à implementação do Processo de Yaoundé, instrumento fundamental na protecção e segurança marítima na área do Golfo da Guiné.

Em Outubro de 2016, a União Africana adoptou a Carta Africana sobre Protecção e Segurança Marítimas e Desenvolvimento em África, constituindo o primeiro grande instrumento jurídico para a implementação da Estratégia Marítima Integrada de África 2050.

A carta abrange a prevenção da criminalidade nacional e transnacional no mar, designadamente o terrorismo, a pirataria, o roubo à mão armada, o tráfico de drogas, o tráfico de seres humanos e o tráfico ilícito conexo de qualquer natureza feito no mar, a pesca ilegal não declarada e não regulamentada, a prevenção da poluição marítima, bem como as operações que visam o combate a estes actos. Também são cobertas pela carta todas as medidas com o propósito de prevenir ou minimizar acidentes no mar causados por navios ou tripulações.

A carta pretende, num quadro da partilha de responsabilidades entre os Estados, a Comissão da União Africana e os mecanismos regionais, incluindo os derivados do processo de Yaoundé, estabelecer uma arquitectura de protecção e segurança marítimas capaz de garantir uma utilização segura e ambientalmente sustentável do espaço marítimo e promover a criação da riqueza em benefício dos povos africanos.

 

Arquitectura de segurança marítima na área do Golfo da Guiné

Na cimeira de Yaoundé (em 2013) foi decidida a criação de uma estratégia conjunta para combater a insegurança marítima e para o efeito foi projectada uma arquitectura inter-regional de segurança marítima integrada, com quatro níveis de interconexão que se reforçam mutuamente (coordenação inter-regional, operações regionais, operações multinacionais e operações nacionais).

O processo de Yaoundé também criou um Centro de Coordenação Inter-regional (CIC) sedeado em Yaoundé, que foi inaugurado em Setembro de 2014. Os centros regionais também já se encontram operacionais, o CRESMAC com sede em Ponta Negra, República do Congo, opera desde Fevereiro de 2015 e o CRESMAO, com sede em Abidjan, na Costa do Marfim, funciona desde 2016.

As zonas marítimas onde foram agrupados os Estados da África Ocidental e Central são liderados por centros multinacionais de coordenação. Na África Central, o Centro Multinacional de Coordenação de Luanda, a funcionar desde Outubro de 2015, é responsável pela Zona A (Angola, República Democrática do Congo e Congo) e o Centro Multinacional de Coordenação de Douala responde pela Zona D (Gabão, Guiné Equatorial, Camarões e São Tomé e Príncipe).

Na África Ocidental, a Zona E (Nigéria, Benim e Togo) está sob a responsabilidade do Centro Multinacional de Coordenação de Cotonou, a Zona F (Gana, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa e Guiné) é coordenada pelo Centro Multinacional de Coordenação de Accra e a Zona G (Guiné-Bissau, Gâmbia, Senegal e Cabo Verde) estará sob a responsabilidade do Centro Multinacional de Coordenação que será localizado na Cidade da Praia.

“Creio que temos avançado em termos de confiança principalmente na África Central e Ocidental e os Estados têm assumido as suas responsabilidades em matéria de cooperação e solidariedade”, sublinha Antero  Matos, que participou em diversas fases do processo de Yaoundé, “o que está a faltar é a parte financeira, que tem sido muito difícil. Há alguns planos, temos contado com o apoio de países europeus, mas o grande obstáculo que impede a execução do plano é o financeiro”.

O principal problema, na interpretação do Brigadeiro, ainda há uma falta de compreensão do fenómeno. “As pessoas não se consciencializaram de quão complexo é o problema, assim como dos biliões que estão a ser perdidos pelo facto de existir uma grande insegurança nos mares. Se cada país, por si, fosse capaz de garantir a segurança dos seus mares, pouparia biliões e ganharia outros biliões”.

Por exemplo, só a sobrepesca e a pesca ilegal nas águas da África Ocidental, além da ameaça que representa para a segurança alimentar, a reserva de peixes e a saúde dos oceanos retira à economia global mais de 23 mil milhões de dólares por ano, uma realidade que, quando associada ao fraco controlo das águas marítimas em África, passa de preocupante a ameaçadora.

Se houvesse uma tabela para medir as zonas do mundo que sofrem mais com a pesca ilegal, o continente africano ocuparia o lugar mais alarmante. E dentro do continente, a zona de maior incidência de ilegalidades é a África Ocidental, como mostra um relatório do Environmental Justice Foundation. Cruzando os dados de várias fontes, 30 a 40 por cento do peixe apanhado na sub-região é feito de forma ilegal, não declarado e não regulamentado. As perdas anuais cifram-se em 1.3 biliões de dólares, pouco menos do PIB de Cabo Verde (1.6 biliões de dólares em 2015, segundo o Banco Mundial).

Se Cabo Verde não enfrenta directamente o problema da pirataria marítima, já a pesca ilegal, o tráfico ilício e os crimes ambientais são questões que o arquipélago tem de enfrentar com seriedade. “A pesca ilegal é um problema grande para este país, a preservação do ambiente marinho é outra preocupação, a utilização dos mares de Cabo Verde para o tráfico de drogas é outra preocupação e em Cabo Verde há uma vontade de enfrentar esses problemas, mas creio que ainda falta fazer muito mais”, reforça Antero  Matos.

“O sistema de autoridade marítima que temos não permite o pleno desenvolvimento das capacidades que temos. Enquanto persistirmos nessa via, numa via de má edificação de um sistema. Temos de definir as prioridades. Para além da questão dos meios, antes temos de pensar bem no sistema de segurança marítima que pretendemos em Cabo Verde, porque temos várias instituições a actuar dentro da autoridade marítima. O que se vê é uma sobreposição de competências, uma sobreposição de tarefas, com zonas sombra que não têm a intervenção de ninguém. É preciso que quanto antes o governo lidere este processo de construção de um sistema de segurança marítima que permita que todas as instituições, com responsabilidade no mar, possam agir de forma coordenada e para que os meios existentes sejam partilhados”, diz o Brigadeiro.

Como concluiu o antigo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas de Cabo Verde, no seminário sobre o exercício da autoridade e das responsabilidades do Estado costeiro no mar, enquanto os Estados africanos não forem capazes de mobilizar recursos internos para a resolução dos problemas de protecção e segurança marítimas, “a paz e a estabilidade nos nossos mares será apenas uma miragem”.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 836 de 06 de Dezembro de 2017. 

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Autoria:Jorge Montezinho,9 dez 2017 6:00

Editado porFretson Rocha  em  9 dez 2017 15:57

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