Em 2014, um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) constatou em Cabo Verde a existência de um gap fiscal na ordem dos 40%. Quer isto dizer que os cofres do Estado arrecadam menos 40% em impostos indirectos, nomeadamente o IVA, do que aquilo que potencialmente poderiam arrecadar.
Grande parte dessa discrepância é devida, como aponta o Director de Serviço de Inspecção Tributária e Aduaneira (SITA), Jeremias Fernandes, ao não cumprimento das obrigações legais relativas às facturas, “documento fundamental da mecânica do IVA e que serve de base ao funcionamento do imposto”. Assim, este estudo por si só, “realça de facto a importância da factura”, destaca o responsável.
Olhando os números vemos, por exemplo, que se em 2016 o Estado arrecadou 11.986 milhões de escudos em IVA (de acordo com o Banco Central de Cabo Verde), poderia ter conseguido, com base nesse gap apontado, uma receita de 19.977. Uma diferença de cerca de oito milhões de contos que ao invés de ser entregues ao Estado, para usufruto da Nação, acabam retidos em bolso particular para benefício individual.
O impacto de um sistema de facturas deficiente (facturas ilegais, não solicitação/emissão de facturas) é pois significativo e têm vindo a ser intensificadas as acções para tentar colmatar essas falhas. Assim, após uma aposta prioritária na informação e divulgação da legislação e funcionamento do sistema (ver caixa), arrancaram também as acções de fiscalização no terreno, que juntamente com a vertente educativa da cidadania fiscal, irão intensificar-se nos próximos meses.
Fiscalização aperta
A operação de fiscalização levada a cabo pelo SITA, em articulação com a Repartição de Finanças da Praia, resultou na apreensão de milhares de cadernetas de facturas ilegais.
Mais de 2000, de contribuintes activos, em diversas actividades, nomeadamente o ramo de comércio de géneros alimentícios (essencialmente mini-mercados) e materiais de construção, ramos onde, de acordo com Jeremias Fernandes, ocorreu a maior parte das apreensões.
“Os retalhistas – não estou a falar das grandes superfícies, mas de pequenas lojas - estão dispensados da obrigação de facturas, mas sempre que lhe é solicitado eles devem passar uma factura. Verificamos que normalmente não tem vindo a cumprir nem com as obrigações de talão de venda, nem com obrigação de facturas”, aponta.
Cadernetas apreendidas, foram também levantados vários autos de contra-ordenação pelas infracções detectadas, bem como a instrução de um processo de averiguação para uma eventual responsabilização criminal dos infractores, junto do Ministério Público.
Além da acção de fiscalização na Praia foi também realizada, de 19 a 23 de Março, uma operação na ilha do Sal, área fiscal relevante devido ao seu fluxo turístico e consequente peso no PIB, igualmente com o intuito de “averiguar a situação tributária dos contribuintes” a nível da facturação.
Nessa ilha, embora a quantidade de facturas ilegais apreendidas tenha sido menor do que na Praia, é considerada pelo Director do SITA como sendo “um número considerável”.
Estas operações vêm na linha de outras já realizadas no ano passado, na Praia. Para este ano, e na linha do reforço de fiscalização preconizado, estão agendadas outras operações sendo que o objectivo é chegar a todas as áreas fiscais.
Só tipografias autorizadas
Mas em que consiste então uma factura ilegal?
A lei (mais concretamente a portaria 24/2017 de 29 de Junho, que regulamenta essa matéria) manda que as facturas sejam impressas somente por tipografias autorizadas: não podem ser feitas pelo contribuinte, não podem ser impressas fora do país e, tampouco, podem ser impressas por uma tipografia que, mesmo nacional, não esteja na lista oficial das tipografias autorizadas.
Neste momento há 13 tipografias autorizadas a imprimir facturas, sendo que a lista pode ser consultada no site da DNRE (www.dnre.gov.cv). No cumprimento da referida portaria, essas tipografias comunicam mensalmente à administração fiscal todas as requisições de facturas que lhes são feitas e por quem.
“Por isso mesmo é que têm de ser as tipografias autorizadas a emitir as facturas, que é para administração fiscal poder controlar”, sublinha o director do SITA.
Jeremias Fernandes salienta ainda que, aquando da aprovação da portaria 24/2017 – e seguindo a linha orientadora do dever de informar (ver caixa) – esta foi socializada junto às tipografias e contribuintes, através das associações que os representam, sublinhando-se pois os parâmetros da legalidade das facturas.
Entretanto a operação no terreno, e em concertação com as alfândegas, deparou-se também com inúmeros processos de importação de cadernetas de faturas.
“Reparamos que nos últimos anos, 16/17, houve muita importação de facturas. Conseguimos ver quais são os contribuintes que importaram as facturas, identificamo-los e recolhemos essas facturas”, explica o director.
De referir ainda três outras irregularidades encontradas. A começar pela utilização ilegal do nome de tipografias e respetivas autorizações, para a produção de facturas “clonadas”, o que já poderá constituir, não uma contraordenação mas um crime. Um outro caso diz respeito a uma tipografia que imprimia e comercializava as facturas sem a respectiva autorização ministerial. Outro aspecto a salientar nas facturas e talões de venda é que têm, obrigatoriamente, de ser produzidos na língua oficial do Estado de Cabo Verde.
“Sempre que detectarmos essa situação iremos autuar”, avisa Jeremias Fernandes.
Diferentes obrigações
Apesar de toda a campanha de informação e formação, questionado sobre se o uso de facturas ilegais não terá a ver com algum desconhecimento na matéria, o director concede que há alguma dispersão legislativa que poderá dificultar esse conhecimento.
A matéria legal, no que toca à facturação, está contemplada em diferentes diplomas. “Temos um diploma para as facturas processadas por computador, saiu em 2014; temos uma portaria para a emissão de facturas em suporte papel, por tipografias autorizadas, que saiu em 2003, mas foi revisada e republicada o ano passado, 2017, temos um decreto lei de 2003 que regulamenta a emissão de talões de venda por caixas registadoras, temos uma portaria de 2015 que regulamenta os procedimentos de facturação do contribuintes do REMPE e temos algumas outras situações de facturas”, explica. E há ainda várias diferenças em termos das obrigações na emissão.
Os contribuintes que estão inseridos no regime especial de micro e pequenas empresas (REMPE), por exemplo, “estão dispensados da obrigação de factura, mas têm obrigação de emissão de talão de venda”. Contudo, salvaguarda-se, sempre que lhes for solicitada a factura, esta não pode ser negada. Não sendo uma obrigatoriedade à partida, passa a sê-lo a partir do momento em que é pedida.
É o caso dos taxistas, por exemplo. Estando por norma enquadrados na REMPE, eles têm a obrigação de emitir um talão de venda, cuja caderneta deve ser solicitada nas tipografias autorizadas, como explica Jeremias Fernandes, e que contempla a identificação do contribuinte e tem uma numeração sequencial entre outras especificidades. Contudo, isso não tem sido usado. Além disso, obrigados a passar uma factura quando lhes é solicitado, fazem-no, mas o documento entregue por norma não tem qualquer validade fiscal.
“Estamos a fazer vários trabalhos para vermos se conseguimos de uma vez por todas controlar esta situação”, refere o director.
Para os contribuintes em regime de contabilidade organizada as regras são outras e a emissão de factura é obrigatória, à partida.
Entretanto, há várias outras situações específicas, nomeadamente os casos em que há uma inversão do sujeito passivo, e quem liquida o IVA é o adquirente (nomeadamente na construção civil), entre outros.
Facturas por computador
Em Cabo Verde são reconhecidos dois tipos de facturas: as processadas por programas informáticos, no computador e as impressas por tipografias autorizadas, ou seja, em suporte papel.
Nesta operação, as apreensões versaram sobre as facturas impressas, e foi junto aos contribuintes do REMPE, ou seja, que não estão enquadrados no regime de contabilidade organizada, que a operação do SITA encontrou maiores problemas.
Contudo reconhece-se que a fiscalização a facturas processadas através de programas informáticos – e que são usadas pelos contribuintes de maior dimensão – ainda necessita de um mecanismo controlo mais sofisticado, reconhece o director do SITA.
Isso não quer dizer que não haja directivas.“Os contribuintes que utilizam os programas de facturaçao devem comunicar a administração fiscal e dizer qual o programa que estão a utilizar” e a Administração Fiscal pode, sempre que julgue necessário, determinar a fiscalização dos respectivos programas informáticos utilizados pelos contribuintes, mas será importante também proceder à “certificação dos softwares de facturação”, algo que deverá ser feito no curto prazo, antevê Jeremias Fernandes.
Entretanto, mesmo os contribuintes que usam esse tipo de facturas, devem ter uma caderneta, para salvaguardar os clientes aquando de eventuais avarias dos programas, falhas de electricidade, ou outros imprevistos, avisa.
Isto porque “nunca se deve deixar de emitir uma factura para uma transmissão de bens ou prestação de serviço”.
Na era digital e a médio longo prazo pretende-se mesmo é avançar com a factura electrónica, que tem mostrado pela experiência de outros países ser um passo de gigante para a transparência e combate “à economia paralela”, fuga e evasão fiscais.
“Não é uma coisa que se consiga rapidamente, mas já criamos uma comissão e estamos a estudar qual o melhor modelo”, diz, apontando que no entanto serão “precisos vários investimentos, principalmente a nível tecnológico” até isso ser possível.
Antes de fiscalizar: informar, sensibilizar e formar
As acções de fiscalização ocorridas este ano são na realidade a terceira parte de um conjunto de actividades amplas, e que envolvem várias entidades e acções, com vista a melhorar o sistema tributário em Cabo Verde.
Para cumprir a lei, há em primeiro lugar que a conhecer e, assim sendo, a “DNRE tem consciência de que tem o dever também de informar e de formar”, destaca Odete Andrade, que é também coordenadora do Programa Nacional de Cidadania Fiscal (PNCF).
Contudo, salvaguarda, se de um lado há esse dever de informar e formar (de ter uma vertente pedagógica nos seus programas), da parte do contribuinte há também a obrigação de procurar essa informação e, claro, cumprir. E cabe, entretanto, também às autoridades agir no caso de incumprimento.
A par com as acções da DNRE decorre também, o referido PNCF, que parte da premissa que um sistema fiscal eficiente só é possível com o envolvimento de todos.
Este é programa levado a cabo “em parceira com a DNRE”, mas essencialmente educativo e que não abrange somente os contribuintes que estão agora no activo - e que são o foco principal da DNRE, mas todos os contribuintes, explica a coordenadora.
DNRE e o PNCF são assim “duas entidades que se complementam”, explica Odete Andrade.
“Nós [o PNCF] preparamos o “terreno”, numa vertente pedagógica e só depois de muitos meses é que o serviço de inspecção foi ao terreno fazer o seu trabalho de fiscalização”, refere a coordenadora, salientando a importância desse trabalho preparativo.
O PNCF, recorde-se ainda, iniciou em 2015 uma campanha centrada essencialmente nas facturas, onde é feito o apelo directo a que todos os cidadãos que a peçam, em qualquer estabelecimento. “Factura? Sempre, obrigado” e “Quando toda a gente contribui, o país evolui” são aliás os slogans desta campanha que tem vindo a ser difundida nos mais diversos suportes e media. São aliás slogans que demonstram o papel de cada cidadão na construção de um sistema tributário em que o valor dos impostos vá parar onde poderá servir a população e suas necessidades.
Nos próximos tempos, tanto o PNCF como a DNRE vão continuar a investir na vertente pedagógica e de sensibilização, envolvendo outros parceiros designadamente os estabelecimentos de ensino no país, reforça Odete Andrade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de Abril de 2018.