Chegaram a uma nova etapa, têm a vida pela frente e o potencial necessário para um futuro brilhante. Um futuro que, pelo menos no imediato, passa por burocracias e a incerteza de um “carimbo” impessoal (o Visto para Portugal), para o qual o mérito se mede em euros. Márcia Santos e Silviane Correia falam do seu “segredo” para o sucesso escolar, dos seus sonhos, aspirações e receios. Em comum, a sede da excelência e a vontade de contribuir para o progresso de Cabo Verde.
19,50. Foi esta média que colocou Márcia dos Santos no topo da lista das Bolsas de Mérito. E foi com uma nota de candidatura de 19,65 que garantiu a vaga no curso que escolheu: Medicina, na Universidade de Lisboa.
Márcia é pois, provavelmente, a melhor aluna de Cabo Verde este ano. (Não podemos afirmá-lo com certeza uma vez que apenas temos a informação dos alunos que concorreram à Bolsa de Mérito, não havendo, de acordo com a Direcção Geral do Ensino Superior, uma lista global das médias finais dos alunos.) E essa “distinção” é motivo de grande orgulho, como nos conta, com a sua voz doce e bom português, a partir de Porto Novo, onde sempre estudou.
“É uma honra enorme. Eu sempre sonhei ser a melhor aluna da minha escola mas nunca pensei que eu poderia chegar a melhor aluna de Cabo Verde”, confessa.
Segredo para as boas notas, “não há”. A receita é sabida: “dedicação” e “impor limites e metas a si próprio”.
Com apenas 17 anos – faz 18 no próximo 16 de Setembro, um dia antes das aulas começarem – é com muita expectativa e ansiedade que espera a sua próxima etapa. Uma grande mudança para quem nunca saiu de Cabo Verde e vai agora para uma grande urbe, num outro país. Teme ainda a adaptação a um novo ciclo, numa escola estrangeira, eventualmente com “métodos de ensino” diferentes.
“Tenho algum receio, mas sei que vou dar o máximo para poder orgulhar os meus pais assim como os orgulhei até agora”, promete.
Entretanto, os papéis para pedido de Visto já foram entregues, logo após a publicação da lista definitiva da Bolsa de Mérito, que garante aos estudantes que se destacam pela sua média, um apoio financeiro de 271 euros. A par dessa ajuda, Márcia conta também com apoio familiar, seja a nível financeiro, seja da presença de familiares emigrados em Lisboa. A própria irmã mais velha de Márcia, formada em Enfermagem, seguiu já este ano para Lisboa para fazer o Mestrado, o que certamente constituirá um suporte emocional forte.
Mesmo assim, Márcia não sossega. Não pode, até que o Visto esteja deferido. E com celeridade.
“O meu medo é chegar tarde e não poder acompanhar as matérias”, revela.
A vontade de ajudar
Altas notas: medicina. É assim em muitos países e Cabo Verde não é excepção. Quando um aluno da área de Ciências tem uma média muito elevada o que se espera é que siga esse curso. E Márcia acabou por optar também pela medicina, uma paixão que nasceu e se nutriu, ao longo dos anos, da vontade de fazer algo pela sua localidade.
“Somos jovens, não damos grande importância, mas à medida que vamos crescendo vamos notando que algumas coisas são bem mais complicadas do que parecem. Então decidi escolher medicina”, para colmatar as carências da ilha, explica, olhando, dos seus 17 anitos, o futuro. Até a especialidade já está pensada: cardiologia.
Depois do curso e especialização é regressar. “Voltar e dar apoio a quem precisa”.
A vontade de ajudar e retribuir o que recebeu da sua comunidade é aliás algo que vem desde a infância.
Na Primária, o seu foco era outro. Queria ser engenheira agrónoma. “Via o meu pai a falar com alguns amigos e familiares agricultores e ouvia falar das pragas que andavam a afectar [as culturas]. Queria ser engenheira agrónoma e controlar as pragas para que a colheita fosse boa”, relembra.
Mais tarde pensou fazer Biotecnologia, para encontrar a cura para as doenças como a malária ou o dengue. Cursos diferentes, o mesmo intuito, ajudar. Salvar o mundo, apoiar Cabo Verde, ou pelo menos contribuir para isso.
“O investimento escolar deve começar nos próprios alunos”
O sucesso escolar de Márcia assenta também, para além da dedicação, numa característica muito sua: a curiosidade. Mesmo nos tempos livres gosta de aprender, de fazer pesquisas na internet, de explorar o que a rodeia.
Assistir a animes (animação japonesa) ou jogar RPG (role playing games – jogos em que os jogadores assumem papéis de personagens e criam narrativas) online são outras formas de passar o tempo livre. Isso, ouvir música e, claro, ler.
Sobre os autores, diz ainda não ter decidido qual o seu preferido. “Sou apaixonada por livros, então todos são especiais”.
Márcia, aluna da Escola Técnica João Varela, na ilha de Santo Antão, participou também em algumas iniciativas nacionais escolares como Olimpíadas de Português e de Matemática (venceu a medalha de Prata das Olimpíadas internas, que vai receber no dia 19) e conferências infanto-juvenis. Contudo, reconhece que o afastamento dos polos centrais do país acaba por afectar principalmente a informação que chega aos alunos.
Falta também, na sua escola algum material, como livros, mas nada que condicione o desempenho, garante. “A minha escola é uma boa escola. Mesmo se faltar algum material os professores ajudam”, diz.
Aliás, em termos de investimento que deve ser feito na educação, “o maior investimento deverá começar nos próprios alunos. Porque os professores estão lá para nos dar indicações”, defende.
E salvaguardando que “é importante divertir-se com os amigos”, para a melhor aluna de Cabo Verde no ano 2018, o importante é que os alunos tenham objectivos, e se apliquem “nas suas metas, não nas metas dos outros”.
“O nosso futuro depende disso”, sublinha. O seu parece, pelo menos para já, traçado. E é risonho.
“O segredo é acreditar”
Silviane Correia é outro rosto das “jovens promessas” cabo-verdianas. Tem uma média de 19,14 e entrou no curso de Engenharia Electrónica Industrial e Computadores da Universidade do Minho com nota de candidatura de 19,45. Um percurso escolar irrepreensível que começou desde o primeiro ano de escolaridade e se prolongou até ao 12º.
“O segredo é acreditarmos que podemos. Eu quero mudar a minha vida, então essa é a minha inspiração”, confidencia.
A par com as boas notas, Silviane tem mantido também uma presença marcante em eventos como as Olimpíadas de Matemática, fazendo inclusive parte da equipa que vai representar Cabo Verde na VIII Edição das Olimpíadas de Matemática que decorre entre 2 e 8 de Setembro em São Tomé e Príncipe. Isto, depois de ter regressado recentemente do México onde participou no campeonato do mundo da Robótica (o First Global Challenge), integrando a equipa cabo-verdiana. E não veio sem reconhecimento. A equipa venceu o prémio Segurança (Safety Award) no meio de muitas dezenas de concorrentes a nível mundial. É, aliás, a segunda vez que participa neste campeonato mundial, tendo já ido, no ano passado, a Washington.
Um currículo destacável, portanto, assim como a sua desenvoltura. Aliás, falamos com ela, por telefone, depois de uma entrevista sua a Júlio Vera-Cruz na RTC e voltou a impressionar pela sua maturidade e à vontade.
Paixão pela electrónica
Silviane sabe o que quer. Desde pequena.
Nascida em São Vicente há 17 anos (faz 18 em Novembro), esta (ex-)aluna da Escola Industrial e Comercial do Mindelo, sempre gostou de tecnologia.
“Gostava de ver os desenhos animados de ficção científica, onde se via a construir coisas, queria fazer isso também, fazer os meus brinquedos. A certa altura quis criar um avião (risos). Já pensei fazer tanta coisa nesta área”, diz como quem já leva vários muitos anos de estrada.
No tempo livre, quando o tem, ajuda os colegas, passa algum tempo com os amigos e lê (mais uma vez a leitura, ponto que parece ser comum aos bons alunos e um prazer que mais uma vez se advinha pelo bom Português e rico vocabulário).
Lê muito, então. Mas não romances. “Já passei essa fase”, diz a menina. “Eu gosto de ler coisas sobre a minha área, e também histórias de vida, motivadoras.”
Tal como Márcia, também o objectivo de Silviane é regressar a Cabo Verde depois do curso, que tem mestrado integrado. Uma vez regressada, “iria desenvolver algum projecto” na área da Robótica, projecta.
Guimarães porum canudo?
Mas Silviane ainda não está de malas aviadas. E se no caso de Márcia tudo aponta nesse sentido, já no seu, há alguns obstáculos.
Pela proximidade, pela boa cotação de algumas universidades e também pela disponibilização de cursos que lhe interessavam, optou por Portugal, embora esta nem fosse a sua escolha de eleição. Escolheu, mais concretamente, a universidade do Minho e o curso, como referido, de Engenharia Electrónica Industrial e computadores, que “cá não existe”.
Foi a sua primeira opção, das três vagas em universidades portuguesas a que poderia concorrer. Entrou e foi-lhe atribuída a bolsa de Mérito, mas provavelmente não poderá ir.
É que há já vários anos que as Bolsas do governo não chegam para garantir que um estudante possa ir licenciar-se no estrangeiro. Na realidade, são hoje meramente uma ajuda a quem vai. E de acordo com a DGES, nem as propinas estão incluídas na Bolsa.
Se o estudante não tiver um responsável financeiro, não lhe é atribuído visto. Se não conseguir somar aos 271 euros de bolsa o necessário para atingido os 550 euros mínimos exigidos pelo consulado, nem sequer poderá pois viajar.
A excelência não basta. É preciso meios financeiros. E a família de Silviane não os tem. Os familiares que tem emigrados em Portugal também não lhe podem dar alojamento pois vivem longe de Guimarães (polo da UMinho onde entrou). Talvez consiga alguma ajuda em termos de alojamento e/ou alimentação de alguma instituição que a aliviem de ter de apresentar o responsável financeiro, mas Silviane não sabe bem a quem recorrer. Contactamos a referida Universidade mas até ao fecho de edição nada nos chegou sobre a existência, ou não, de política de “captação de cérebros” e apoios ao estudante internacional.
Silviane, se não conseguir o visto, não ficará parada a lamentar. “Se as coisas ‘correrem mal’, estava a pensar estudar engenharia informativa aqui na Universidade do Mindelo”, revela.
De qualquer forma, não desiste de ir estudar no estrangeiro, na área que quer. Não vai resignar-se à primeira.
Aliás, se houve coisa que os professores lhe ensinaram foi a ser persistente e acreditar em si. “Sempre me incentivam e dizem para eu não desistir, porque eu consigo alcançar tudo o que eu quiser”. E apesar dos percalços, o seu futuro advinha-se sim, tecnologicamente brilhante.
A Bolsa de Mérito para Formação Superior em Portugal confere aos estudantes “que finalizem o secundário com elevadas classificações académicas” uma ajuda monetária de 271 euros.
A bolsa é, pois, apenas uma comparticipação para custear os estudos e não um financiamento dos mesmos. Uma ajuda que não cobre a exigência de mais de 500 euros estipulada para atribuição de vistos, levando a que não sejam raros os casos de bolseiros que acabam por não conseguir ir estudar para Portugal.
Este ano, de acordo com as listas publicadas no site da DGES, concorreram à Bolsa de Mérito 69 estudantes com média igual ou superior a 18. Foram atribuídas 10 Bolsas, a alunos com média superior a 18,91. Apenas um rapaz integra o Top 10. Medicina é o curso mais escolhido (três bolseiros), seguido de Economia (dois, embora haja ainda um curso de Matemática aplicada à Economia e à Gestão). Na lista deste ano, ao contrário do ano transacto, por exemplo, não consta o rendimento do agregado familiar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 874 de 29 de Agosto de 2018.