Não se sabe ao certo a quantidade de medicamentos que, por ano, entra ilegalmente no país. A ARFA, a quem cabe a responsabilidade de aprovar qualquer medicamento que entre e circule no país e que integra juntamente com a Polícia Nacional (PN) e a Inspecção Geral das Actividades Económicas (IGAE) a equipa que fiscaliza a entrada de fármacos não tem os números. Sabe-se apenas, pelo estudo realizado em 2012, que um quarto dos cabo-verdianos admite que compra medicamentos fora dos espaços próprios e regulados para tal feito.
O estudo, iniciativa da ARFA que teve como amostra 1528 indivíduos em Santiago e 2206 indivíduos a nível nacional (65,9% dos quais do sexo feminino e com uma média de idades de 40,2 anos), tinha por objectivo recolher “dados reais” sobre a compra ilícita de medicamentos, aferir a proporção da população que consome medicamentos provenientes do circuito ilegal, conhecer a geografia da venda ilícita de medicamentos a nível nacional, saber quais os medicamentos mais vendidos e identificar as razões da aquisição desses produtos no circuito ilegal.
O inquérito realizado deu a perceber que a prática tem maior ocorrência na ilha de Santiago (35,4%, seguido da ilha do Maio com 31,8%, São Vicente com 24,2% e por último a ilha Brava com 15,8%). A nível dos concelhos, o maior peso deste mercado informal verifica-se no concelho da Praia (38,9%).
Na sua tese de doutoramento – “Uma Proposta de Modelo de Farmacovigilância para Cabo Verde”, defendida em 2016 na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa - Djamila Reis, presidente do Conselho de Administração da ARFA, avança que, a nível mundial, o mercado ilícito de medicamentos está estimado em mais de 55 biliões de euros por ano, “sendo que a proporção varia entre os países com uma estimativa entre 1% a 60%, em função da capacidade de regulação e de controlo do sistema de distribuição”. Entre 2000 e 2006, este mercado terá aumentado em 800%, com as autoridades a estimarem em cerca de 800.000 as mortes causadas por estes medicamentos vendidos irregularmente durante este período.
A pesquisadora alerta que “nos países em desenvolvimento, caracterizados por maiores problemas de acesso ao medicamento, de equidade no acesso, conjugados com as fragilidades dos sistemas de regulação, a escalada do mercado ilegal está a tornar-se dramática” o que repercute fortemente na saúde da população e também na economia.
“ É a procura que faz o mercado”, diz-nos Ester Gonçalves, directora da Regulação Farmacêutica que admite que a reguladora não tem ainda uma noção geral da quantidade de medicamentos que entra ilegalmente em Cabo Verde mas avança com os nomes dos mais frequentemente apreendidos e que coincidem com os revelados pelo estudo como os mais vendidos fora do circuito legal: paracetamol, com maior peso relativo no total das vendas (37,92), ibuprofeno, com peso relativo de 27,25% e amoxicilina, representando 13,79 do total das vendas. Outro frequente na listadas apreensões, que também inclui medicamentos para uso dérmico, é a Sildenafila (um genérico da família do Viagra).
Cytotec
A procura faz o mercado. E quando quem procura acha, percebe-se que nem tudo o que é medicamento vendido no mercado clandestino cai nas mãos das autoridades fiscalizadoras. Exemplo: o Cytotec (Misoprostol). Medicamento prescrito para doenças do estômago, é amplamente utilizado no país como abortivo por mulheres que, conforme estudo de 2013, contornam o recurso directo ao serviço público de saúde para interromper gravidez indesejada.
O número de mulheres que dão entrada nos serviços públicos de saúde em processo abortivo intencionalmente provocado pelo medicamento, comprova que este – que não consta da lista de fármacos de venda autorizada no país – entra clandestinamente em Cabo Verde e circula nas ruas. Porém de forma bem mais escondida que outros medicamentos vendidos no mercado ilícito.
“Já temos feito incursões, juntamente com as autoridades policiais e a IGAE, por estabelecimentos comerciais e mercados onde fizemos apreensão de medicamentos vendidos ilicitamente mas, o Cytotecnão é encontrado entre estes medicamentos. Ou seja, é vendido ainda mais clandestinamente. E sabemos que é vendido para certos fins porque depois há os casos das mulheres que dão entrada nos serviços de saúde com complicações devido ao uso do Cytotec como abortivo”, conta-nos a jovem directora da Regulação Farmacêutica.
A procura faz o mercado, e o mercado define o preço. A clandestinidade do medicamento faz dele um dos mais caros do circuito ilegal de vendas. Uma caixa com 60 destes comprimidos fabricados para tratar úlceras de estômago é vendida legalmente, nas farmácias portuguesas, por 20 euros (pouco mais de 2000 escudos). No mercado clandestino cabo-verdiano um comprimido de Cytotec chega a ser vendido por 1500 escudos. Um lucro de cerca de 90 mil escudos por cada caixa vendida.
Estas informaçõessão-nos avançadas por uma farmacêutica com largos anos de experiência profissional que prefere o anonimato para nos relatar aquilo que sabe da contrafacção e venda ilícita de medicamentos.
A mesma mostra-se “surpreendida e feliz” com as notícias das apreensões recentes feitas pelas autoridades. “Então os serviços alfandegários já começaram a actuar neste sentido”, deduz. Surpreendida também porque “tinha noção de que essa coisa de venda ilegal de comprimidos tinha diminuído. Antigamente via-se muito em bandejas na rua; agora já não”.
Nas décadas que já leva no sector diz já ter visto de tudo. Vendedeiras no mercado com cartelas de comprimidos à vista que tratam de esconder ao perceber a sua curiosidade, clientes da farmácia que dirige que lhe aparecem com medicamentos que trazem ou recebem dos Estados Unidos - Centrum e outros suplementos alimentares e energéticos e multivitaminicos, sobretudo – e da Europa (na maior parte das vezes Tylinol) e até, num episódio insólito em que o doente que precisava do remédio faleceu. Tentaram vender-lhe insulina, um medicamento que exige condições de refrigeração permanentemente controlada.
“Obviamente que não aceitamos. Nós o que vendemos são medicamentos que foram previamente monitorizados, que tiveram um transporte em condições ideais de temperatura, de humidade, bem conservados. Tudo o que vendemos tem que ter o selo da Emprofac ou de outra distribuidora”, assegura.
A responsável de farmácia explica que a importação de medicamentos em Cabo Verde é centralizada. Tudo o que é legal entra em Cabo Verde de duas maneiras: via Emprofac ou através das ajudas internacionais oferecidas ao país através do Ministério da Saúde.
Viagra
Ilegalmente, entram através dos aeroportos e portos. E pelo menos no caso do chamado “café para homens” (um pó bastante popular em países africanos pelos seus supostos efeitos similares ao Viagra) a nossa entrevistada aponta as rabidantes como as grandes “importadoras” e vendedoras da substância, regularmente entre as apreendidas pelas autoridades. Isso quando o medicamento está disponível legalmente nas farmácias mediante receita médica. Ali, é baixo o número de utentes que o compram.
“A manutenção da qualidade de um medicamento é fundamental. Um paracetamol adulterado por más condições de conservação pode transformar-se em outra coisa e não ter os efeitos pretendidos, ou até ter outro efeito, tornar-se em algo tóxico. Não é à toa que gastamos tanto dinheiro em electricidade para termos nas farmácias o ar condicionado na temperatura certa”, insiste a especialista em medicamentos, que lembra entre os riscos da automedicação o perigo do aumento da resistência aos antibióticos.
A pesquisa realizada pela agência reguladora trouxe a preocupante revelação de que a maioria dos inquiridos estava consciente dos riscos concernentes à compra de medicamentos ilegais. A razão apontada para esse comportamento de risco pela maioria dos entrevistados prende-se com a proximidade e a quantidade. Isto é, responderam que o facto de terem a possibilidade de comprar os medicamentos em locais mais próximos do que a estrutura de saúde da sua região e em menor quantidade (não tendo que pagar o preço de um pacote completo quando o que precisam são apenas alguns comprimidos, por exemplo) era uma razão para optarem pelo mercado clandestino.
Talvez por isso algumas farmácias também acabem por proceder à venda de medicamentos por unidades de comprimidos. É a nossa entrevistada farmacêutica que o confirma, dizendo ter conhecimento desse procedimento em farmácias do interior de Santiago.
Como já referido, para além do potencial de ocorrência de reacções contrárias às pretendidas, o recurso a medicamentos de contrabando resulta muitas vezes no aumento de gastos do sistema de saúde pelo atraso no tratamento correto e provável necessidade de intervenção acessória.
A forma de contornar isso passa pela fiscalização e acções repressivas das autoridades sim, mas sobretudo pela informação e educação da população. Porque, como disse atrás Ester Gonçalves, é a procura que faz o mercado. E é isso mesmo que dizem as recomendações do estudo: apostar numa campanha de comunicação e informação da população no sentido de conhecerem os riscos que correm.
E é isso que a ARFA vem fazendo em anos recentes, segundo a directora da Regulação Farmacêutica. Folhetos, desdobráveis informativos e programas de TV foram produzidos, mas também se apostou na formação dos agentes da PN e do IGAE, no incremento da fiscalização e articulação entre essas diferentes entidades o que estará agora a dar frutos, como exemplificam as apreensões que nos últimos anos vêm ocorrendo.
Por fim, também a legislação merece atenção. “Temos nesse momento alguns regulamentos em consulta pública. Por exemplo, o decreto-lei que estabelece o preço dos medicamentos [decreto-lei nº 22/2009] está em processo de revisão”, explica a técnica da ARFA.
Por outro lado e conforme já dito, a própria presidente do conselho de administração da ARFA, produziu uma tese de doutoramento propondo um modelo de sistema de farmacovigilância adaptado às condições de Cabo Verde, modelo esse em que a repetição do estudo (então inédito) sobre a aquisição de medicamentos contrafeitos e no mercado ilícito é sugerida.
Seis anos passados, interessa de facto saber qual a situação actual do mercado ilícito de medicamentos. Ou seja, saber se a fiscalização, a campanha de informação e demais medidas introduzidas surtiram efeito.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.