O uso da água depurada no combate à seca

PorNatalia G. Vargas / Praia,13 jan 2019 14:01

A professora Vanessa Mendonza lê a banda desenhada didáctica do projecto ADAPTaRES
A professora Vanessa Mendonza lê a banda desenhada didáctica do projecto ADAPTaRES

​Canárias e Cabo Verde estão a trabalhar na implantação de técnicas para reutilizar as águas residuais com o objectivo de salvar os cultivos do aquecimento global – projecto dentro da iniciativa ADAPTaRES, que faz parte do Programa de Cooperação Territorial MAC Interreg 2014-2020 – depois da seca que devastou hectares de plantações de milho no país africano.

Imensas plantações de milho vestem o interior da ilha de Santiago. As culturas deste alimento chave na dieta cabo-verdiana estendem-se desde o ponto mais alto das montanhas até às margens das estradas. No entanto, o seu aspecto actual é o de uma produção devastada pela seca de 2017, um fenómeno que não só acabou com a colheita desse ano, como deixou os agricultores sem sementes para voltar a semear. “Este ano as pessoas vão novamente passar mal” lamenta-se o jovem Aderito Di Nos ao contemplar a terra seca. “As famílias vêem-se obrigadas a comprar produtos do exterior nos supermercados e nem todos têm dinheiro suficiente para isso, é um ciclo de pobreza”, assegura. Di Nos viajou em 2008 para Gran Canaria onde estudou engenharia de obras públicas e, depois de regressar à Praia, tornou-se no responsável da empresa Sistema de Engenharia de Cabo Verde, que procura soluções que permitam ao país enfrentar a inseguridade alimentar.

A empresa de Di Nos colabora com o Instituto Tecnológico das Canárias (ITC) no projecto ADAPTaRES, financiado pela União Europeia com um orçamento de quase dois milhões de euros e liderado pela citada organização canarina. Como sublinha o coordenador da iniciativa, Gilberto Martel, o objectivo é fomentar a reutilização de águas residuais depuradas na agricultura da Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde e implementar novas tecnologias na protecção dos cultivos para que sejam mais eficientes.

A mudança no modo de proceder que ADAPTaRES propõe para o sistema agrícola cabo-verdiano “deve ir sendo acompanhado de formação e sensibilização para todos os níveis da sociedade”, diz Martel. Até há bem pouco tempo, papéis, restos de animais e mesmo de fármacos eram despejados perto das água residuais, aumentando a sua contaminação, pelo que “hoje em dia existe um impacto negativo sobre a qualidade da água reutilizada para a rega das culturas para consumo humano”. Nilson Duarte, um dos administradores executivos da Águas de Santiago, considera também que a opinião pública é a principal barreira com que pode chocar esta iniciativa. “Temos que consciencializar os agricultores. É uma tarefa difícil, mas necessária para optimizar os nossos recursos”, sublinha.

As professoras da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria Pino Palacios, engenheira agrícola, e Vanessa Mendonza, veterinária, propuseram-se a acabar com este estigma apoiadas em provas tangíveis. E já puseram mãos à obra nas depuradoras dos municípios de Santa Cruz e Santa Catarina. No primeiro criaram umas parcelas demonstrativas onde cultivarão produtos para consumo humano com águas residuais tratadas, empregando dois sistemas de rega diferentes: o superficial e o enterrado. “Uma das vantagens da rega enterrada é que a água reutilizada não entra em contacto directo com o alimento, o que minimiza os riscos de contaminação”, refere Palacios. Ainda assim, outra das missões do projecto é desinfectar a água depurada com recursos próprios do país. “Há materiais próprios suficientes para desenvolver este processo de forma autónoma, por exemplo, através de sal comum”, explica Gilberto Martel.

Para que os resultados sejam mais fiáveis foram tiradas amostras de diferentes pontos da parcela que serão analisadas nos laboratórios das universidades canarinas. Assim se saberá qual é o estado do solo antes da aplicação da água residual tratada. “Se correr mal não queremos que se atire a culpa para a água, porque há outros factores que influenciam o estado do solo”, justifica a docente. Por outro lado, “o funcionamento dependerá de um programa que permitirá aos agricultores automatizarem a rega”, explica Vanessa Mendonza. ADAPTaRES também pretende deitar mão à tecnologia para controlar o estado das plantações, utilizando imagens filmadas por drone que, através de luz infravermelho, permitirá saber “se a planta de encontra em situação de stress hídrico”.

Esta sinergia entre a terra e a inovação tecnológica é ambiciosa, uma vez que a intenção é levar aos agricultores, através de uma aplicação móvel, toda a informação referente às águas residuais tratadas e as previsões climáticas que afectem os cultivos. “A ideia já está mais avançada na Madeira e nas Canárias, mas em Cabo Verde os que trabalham a terra ainda não confiam na água reutilizada. Temos de ir passo a passo”, salienta o coordenador do projecto.

Na depuradora de Santa Catarina a metodologia é diferente uma vez que é um terreno piloto dirigido a provar a eficiência da rega de compensação que permita aos agricultores optimizar a água de que dispõem em caso de seca. “Vamos reduzir a quantidade de água destinada a cada planta, mas vamos aumentar o número de produtos”, explica Pino Palacios.

As professoras Vanessa Mendonza e Pino Palacios e o engenheiro Aderito Di Nos trabalham nas parcelas demonstrativas em Santa Cruz
As professoras Vanessa Mendonza e Pino Palacios e o engenheiro Aderito Di Nos trabalham nas parcelas demonstrativas em Santa Cruz

A educação, cúmplice indispensável

“Acho que vamos ficar sem a nossa katxupa”, diz a pequena Fátima à sua mãe, fazendo referência ao prato típico de Cabo Verde ao ver as plantações de milho tão secas. São duas personagens que protagonizam as bandas desenhadas que ADAPTaRES criou para ensinar aos mais pequenos as consequências das alterações climáticas. Também contêm fichas didácticas e jogos online que têm o objectivo de ser introduzidos nas aulas, um trabalho que se desenvolveu com a colaboração do Ministério da Educação cabo-verdiano. “Queremos produzir estes jogos também em papel e cartolina porque há muitas escolas sem ligação à internet, refere Gilberto Martel. Além disso, a participação da rádio canarina ECCA no projecto permitirá usar as ondas hertzianas com o mesmo objectivo sensibilizador.

O nome do ADAPTaRES já soa pelos cantos de Cabo Verde, dando informação e novas técnicas às famílias para que assim possam defender-se perante as alterações climáticas. Por isso mesmo, a intenção do Instituto Tecnológico das Canárias e dos seus associados é prolongar o projecto por mais um ano e ir procurar novos fundos europeus complementares que dêem continuidade ao trabalho já começado. “As pessoas deste país estão muito apegadas à terra e agora é o momento de se reinventarem”, conclui Aderito Di Nos.

As professoras Vanessa Mendonza e Pino Palacios e o engenheiro Aderito Di Nos trabalham nas parcelas demonstrativas em Santa Cruz
As professoras Vanessa Mendonza e Pino Palacios e o engenheiro Aderito Di Nos trabalham nas parcelas demonstrativas em Santa Cruz

A água, uma arma para enfrentar o aquecimento global

A água dessalinizada abastece mais de dois milhões de pessoas e milhares de hectares agrícolas no Espaço de Cooperação MAC Interreg, que integra a Madeira, Açores, Senegal, Mauritânia, Canárias e Cabo Verde. Estes dois últimos territórios têm as centrais dessalinizadoras de maior capacidade, no entanto, não são exploradas ao máximo, uma deficiência que poderia ser resolvida com as energias renováveis. Desta visão nasce o DESAL+, outro projecto que integra o programa MAC, liderado também pelo Instituto Tecnológico das Canárias e financiado com mais de dois milhões de euros. A iniciativa pretende criar uma “rede de investigadores” para aumentar o conhecimento existente e planear o uso do vento, das ondas e do sol na dessalinização.

O intercâmbio de informação entre o ITC e a Agência Nacional de Água e Saneamento (ANAS) de Cabo Verde foi determinante para “fazer frente a uma crise hídrica sem precedentes” nas ilhas africanas. Em Fevereiro, o presidente da ANAS, Miguel Moura, mostrou vontade de implementar medidas orientadas para melhorar a distribuição da água e aumentar a sua disponibilidade para a agricultura, com o propósito de minimizar o impacto da escassez hídrica. São pequenos passos rumo à criação de um Plano Director Nacional de Dessalinização, onde esta técnica será a estratégia a seguir para optimizar o uso da água num contexto climático que a converte em mais vital que nunca.

 coordenador do ADAPTaRES, Gilberto Martel, comprova o estado da água depurada em Santa Cruz
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 coordenador do ADAPTaRES, Gilberto Martel, comprova o estado da água depurada em Santa Cruz
coordenador do ADAPTaRES, Gilberto Martel, comprova o estado da água depurada em Santa Cruz

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Natalia G. Vargas / Praia,13 jan 2019 14:01

Editado porChissana Magalhães  em  13 jan 2019 14:01

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