No seu recente livro afirma que temos falta de tradição na conservação preventiva e de manutenção dos edifícios. O que é necessário fazer para mudar a situação?
Antes de responder concretamente à questão, queria começar por agradecer a oportunidade que me é dada para falar sobre aspectos focados na minha segunda publicação denominada “Conservação do Património Construído – Manual de Boas Práticas” que como o próprio nome diz, tem por objetivo divulgar informações sobre boas práticas para a conservação do património. E, dizer que no essencial o que norteou esta iniciativa é o pensamento que partilhamos “Preservar o passado não impede a construção do futuro. E construir o futuro não implica a destruição do passado”. Sobre a questão formulada devo dizer que até dez anos atrás, altura em que me aposentei, quando se calculava o custo global para execução de uma obra pública em Cabo Verde, não era incluída a rubrica respeitante à manutenção da mesma porque essa rubrica era preterida. E, quando a obra era financiada por fonte estrangeira, geralmente diziam que isso devia ser financiado pelo país que solicitava o financiamento. A nível dos privados, salvo as devidas excepções, é claro, repare o seguinte: a maior parte das pessoas não faz a manutenção atempada por exemplo dos eletrodomésticos ou, do carro e muito menos de um edifício que tem um grande número de componentes e, cada um deles tem um tempo de manutenção e sobretudo de garantia díspares. Para mudar esta realidade, a meu ver, devemos seguir a estratégia de mudar as mentalidades, ensinando nas escolas as noções de educação patrimonial, assim como já se ensina a proteger o ambiente. E, já agora também devemos ensinar a educação financeira, aos nossos jovens e aos adultos também. Por exemplo, no Japão, nas paredes dos Jardins de Infância e das escolas, as crianças podem ver afixados durante o ano os nomes e as fotos das melhores empresas nacionais. Isso cria uma mentalidade diferente na criança, algo que no lado de cá do nosso planeta, os nossos estudantes só têm noção, muitos anos mais tarde.
Em traços gerais qual é o estado de conservação do nosso património construído?
Como sabe o património construído é integrado por Património Civil, Património Militar e Património Religioso. Ainda que de momento tenhamos grandes limitações para nos pronunciarmos já que somos um país constituído por ilhas, estamos em crer que o que se passa a nível da ilha de Santiago, em média é semelhante ao que se passa pelo país no seu todo. Todavia, convém referir que através da leitura dos jornais podemos constatar que nas nossas duas maiores cidades, já se nota que, em relativamente poucos anos, perdemos várias construções antigas.Constata-se geralmente que por variadas razões, os edifícios ficam a “sofrer” por longos anos até que sejam feitas intervenções. E, como demonstramos na rubrica “Custos” da nossa publicação intitulada “Conservação do Património Construído Manual de boas Práticas” isso para além de prejudicar o edifício em si, acaba por penalizar financeiramente o proprietário do edifício, numa proporção de um para cinco.Para além disso, é preciso informar que quando por qualquer razão se retira a cobertura de um edifício e se levam vários anos sem a repor, isso implica directamente na destruição rápida do mesmo, pois a diferença de temperatura entre o dia e a noite, a acção da chuva, do sol e do vento conseguem provocar impacto forte que acaba por fragilizá-lo e fazê-lo ruir em relativamente pouco tempo, o que é uma técnica milenar de destruição de edifícios, a baixo custo.
Como caracteriza as construções em Cabo Verde antes e depois da independência?
Na nossa publicação, anteriormente referida, tivemos o cuidado de anteceder a parte referente às Boas Práticas por informação sucinta sobre aEvolução Tecnológica (das paredes de pedra seca; de pedra com argamassa de argila, argamassa de cal e finalmente de cimento) até chegar à nossa Independência Nacional em 1975. Também referimo-nos à evolução Tipológica das nossas construções em Cabo Verde em geral, falando das habitações vernaculares e das populares, sem e com corredor interno. Abordamos as construções de um só piso, de dois ou mais pisos, com cobertura de palha, de telha de madeira importada, de telha de argila, de telha de cimento e finalmente, falamos das habitações cobertas com laje de betão, que tiveram grande impacto na mudança da paisagem urbana em Cabo Verde.Em relação ao depois da Independência, referimo-nos de forma muito breve às construções dos emigrantes, edifícios habitacionais de vários andares implementados pelo Estado e pelas Imobiliárias.Atualmente constata-se que a estrutura em pilares e vigas de metal, sempre aliada ao betão, e pontualmente ao betão pré-fabricado, está a difundir-se, nas nossas maiores cidades. Isso é uma das vias “impostas” pela sociedade moderna e, que aqui tem estado a ganhar terreno. Mas, como a vida é feita de ciclos, eventualmente, poderá voltar a verificar-se a retoma dos materiais naturais.
Já temos obras pós-independência que podem ser consideradas património nacional?
Ainda bem que coloca esta questão interessante pois permite-nos referir à definição do Património construído. O património é a “face visível” da memória de uma coletividade e, que por ser singular, deve ser preservada. Aliás, é pelo património que um país se reconhece. Mas, património não é somente sobre o passado pois o património é sobre o futuro. Ou seja, é sobre o que ficará depois de nós desaparecermos. Esta é a visão interessante de Simon Turley. Como sabemos, património é uma palavra de origem latina e significa herança do pai. Posteriormente foi gradualmente alargado o seu sentido para outros aspetos nomeadamente histórico, financeiro, etc. Respondendo à sua pergunta, o Património é aquilo que uma dada geração considera dever ser deixado para o futuro. Assim, fica evidente que as responsabilidades de estabelecer o património construído não cabe somente ao Governo (através dos serviços competentes) e às Câmaras Municipais, mas essa responsabilidade é de todos. Deve ser partilhada.Como disse, a utilização da palavra património para definir aquilo que consideramos herança cultural tem sofrido alterações significativas pois, o que era considerado património ontem poderá não o ser hoje ou, deixar de vir a ser amanhã. E, os que ontem não eram abrangidos nesse conceito, podem hoje estar incluídos nele ou vir a sê-lo no futuro. Daí creio que se infere o sentido da minha resposta.
O seu recente livro debruça-se sobre as três mais antigas cidades do país, Praia, Mindelo e São Filipe. O que têm em comum e qual o estado da situação existente no património edificado nessas cidades?
Nos Centros Históricos destas três cidades e bem assim nas outras cidades capitais das outras ilhas, existem em comum os sobrados ou construções senhoriais, representativas de um determinado período da história destas ilhas. E, no aspeto urbanístico, algumas partes do centro histórico dessas cidades foram concebidas sobre uma malha urbanística regular – por exemplo, caso do Platô na Cidade da Praia, parte antiga de Mindelo na ilha da São Vicente, de Ponta do Sol na ilha de Santo Antão e de Sal-Rei, na ilha da Boa Vista.Por razões várias, alguns edifícios estão mais deteriorados do que outros, o que é normal. Mas, algumas situações de destruição/demolição são resultantes da confrontação de pontos de vista em que por um lado se alega que o proprietário perde a rentabilidade do solo, por não construir na vertical, contra o peso da história. E, como em Cabo Verde ainda não existe qualquer tipo de compensação para o proprietário de uma construção antiga, seja ela sobrado ou não, resulta claro que os edifícios antigos têm vindo a ser os vencidos neste processo. Por isso, há imensa pressão, de forma directa e indireta nas nossas maiores cidades, no sentido de se dar lugar a novos edifícios, construídos na vertical, é claro. Nota-se, que para além da pressão, também há falta de informação sobre aspectos relativos às boas práticas de conservação, tanto do lado do proprietário como por parte da administração, pois infelizmente foi interrompida a acção de envio de técnicos superiores para o estrangeiro, para formação especializada nesta área. Ademais, nunca é demais insistir, que “preservar o passado não impede a construção do futuro e, construir o futuro não implica a destruição do passado”
Temos um importante património militar, concretamente, fortaleza, fortes e fortins. Em que ilhas existem e qual é seu estado actual de conservação?
É verdade, por termos constatado que algum desse património está em estado muito lastimável, ocorreu-nos fazer um desdobrável sobre os mesmos que lançamos em 2016, sobretudo com o intuito de divulgar e lembrar que esse património também é importante. A título de exemplo, no ano passado estava prevista a inauguração da obra de reabilitação do forte de Albarquel situado em Setúbal, Portugal. Esse forte foi construído no século XVII e foi cedido à Câmara Municipal de Setúbal pelo Governo desse país, por um prazo de 32 anos. A obra terá custado 1.800.000 Euros. A Câmara M. de Setúbal conseguiu uma parceria financeira com uma cidadã estrangeira que nele terá investido também. Em Cabo Verde ainda existem fortificações em cinco ilhas. Na ilha de Santiago, na Cidade Velha, há vários fortes e a Fortaleza e, na Cidade da Praia, na ilha do Maio há um pequeno forte em bom estado de conservação por louvável iniciativa da Câmara Municipal, nas ilhas do Fogo, Boa Vista e São Vicente também. O Fortim d’El Rei em Mindelo, que segundo bibliografia é dos primeiros edifícios dessa cidade, actualmente até aflige qualquer pessoa que lá vá, pois é um exemplo acabado de como os edifícios sofrem, face à peleja de interesses. Bem, como se lê em bibliografia estrangeira, “os países desenvolvidos é que conservam o património”, infelizmente. A este propósito vi um conjunto de fotos de habitações antigas de uma vila piscatória chamada Foodee na Escócia. Essas construções antigas foram reabilitadas, incluindo os pequenos largos com bancos, vasos de flores, sinalética, placas com resumos históricos, etc, foram todos arranjados e agora os turistas vão residir nessas pequeninas habitações, para além dos próprios nacionais.
Tem dedicado vários desdobráveis aos Sobrados de São Filipe, no Fogo, chamada a Ilha dos Sobrados, inclusive elaborou, em 2004, a maqueta de 4 selos postais sobre os “Sobrados de São Filipe” na ilha do Fogo; Qual o objetivo dessas publicações?
Essencialmente, é para divulgar e sensibilizar as pessoas para procurarem conhecer mais o que faz parte da nossa história construída, despertar a curiosidade dos jovens para obterem alguma informação junto dos seus ascendentes e não só. Como sabe antes de se fazer a classificação dos edifícios (chamado Tombamento no Brasil), faz-se previamente o inventário e o levantamento dos mesmos pelo que é importante passar a informação do que se conhece – ano e material de construção, quem teve a iniciativa de mandar construir, para que uso foi inicialmente construído, se houve algum acontecimento importante que ocorreu durante o tempo de vida dessa construção, etc. Essas e outras informações devem ser fornecidas ao IPC (Instituto do Património Cultural) que é a entidade nacional encarregue de preservar a defesa e a valorização do património cultural. Ademais, fazemos isso porque o conhecimento acompanha o crescimento. E a acção resulta da inspiração. A propósito dos selos a que se refere, há vários anos numa viagem ao estrangeiro em serviço, qual não foi a minha surpresa e emoção, quando o intérprete que nos acompanhava me mostrou esses 4 selos dos Sobrados de São Filipe e outros que os Correios de Cabo Verde me deram a oportunidade de realizar e a brincar perguntou-me se eu conhecia São Filipe. De facto, os selos são um ícone da comunicação e um meio de vencer grandes distâncias.
Os sobrados da Praia têm merecido também a sua atenção. Onde os há e qual a sua importância do contexto geral de Cabo Verde?
Na cidade da Praia, vou-me referir não só em relação aos sobrados, éinteressante verificar que para além do Platô, temos exemplares de edificações mais ou menos antigas, na zona baixa da cidade, aliás, onde foi o primeiro porto da cidade. Assim temos construções antigas onde hoje se localiza a Electra, o Arquivo Nacional que também foi a antiga Alfândega da Praia. E também existem depois duas antigas oficinas das Obras Públicas, até Chã de Areia e, os antigos armazéns e uma ou outra habitação antiga como a do Sr. Mercaninho, de dois pisos, praticamente ao lado da Estação de Combustível de Chã de Areia. No contexto geral, se trabalharmos em equipa ou em parceria, a nível das Câmaras Municipais/Associação Nacional dos Municípios com o Governo, graças à força interna e externa da ANMCV para desenvolver projetos interessantes, aproveitando as redes existentes nomeadamente a nível da Europa. Aliás, a Câmara Municipal do Maio tem um cartão-de-visita muito significativo por ter conseguido apoios para a reabilitação do Forte de São José em Porto Inglês, de entre outras iniciativas interessantes.
Qual a importância patrimonial dos faróis de Cabo Verde e porque é tem havido abrandamento na sua conservação?
O farol é uma estrutura que serve de ajuda e orientação à navegação, pelo que foram suporte do comércio marítimo também em Cabo Verde. Tiveram grande evolução tecnológica em fontes de alimentação (azeite, petróleo, eletricidade) e em aparelhos eletrónicos dotados de sistemas de óptica. Muitos físicos dos séculos XVIII e XIX participaram no avanço da iluminação dos mares. Depois do aparecimento dos painéis solares e do GPS (Sistema de Posicionamento Global) que trouxeram benefícios vários, todavia por razões que desconheço, na minha percepção exterior, eventualmente terá havido um abrandamento na conservação das construções afectas aos faróis. Contudo,devemos tirarproveito do aparecimento das novas tecnologias, e continuar a preservar os faróis pois, atualmente, diversos faróis são espaços de interesse museológico, não como museu de “sítio”, mas como espaço de exposição de peças de óptica, de engrenagens, de candeeiros antigos, que são de interesse para os jovens;comocentro de documentação com livros de registo e não só; com a descrição de naufrágios ocorridos, etc;como local de bela vista panorâmica da envolvente, da região, e de fotos da evolução da localidade, no antes e depois e como espaços de memória de especial significado para as comunidades piscatórias.Pelo que devem ser reabilitados, preservados os recheios e elaboradas histórias de vida dos personagens pois, os faróis sempre foram sentinelas a vigiar para a segurança dos pescadores e dos navegantes em geral.
Que recomendações e sugestões deixa às entidades ligadas à conservação do património construído?
Embora saiba que as entidades competentes nesta área têm vários projectos em carteira mas, correspondendo ao solicitado, avançamos duas sugestões. Primeira, em parceria entre o IPC e a ANMCV que se aproveite a força corporativa paradesenvolver e implementar uma estratégia de monitoramento sustentável e integrada (trabalhando por exemplo com entidades sem interesse financeiro) para se conseguir inspeccionar periodicamente, os edifícios e as construções históricas e fazer recomendações aos respetivos proprietários em relação às práticas de boa conservação, com vista a evitar-se os custos adicionais exagerados que ocorrem por se deixar arrastar durante muito tempo o início duma obra de reabilitação. A título de exemplo do que referimos, uma equipa da DGEMN (Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais) de Portugal elaborou já em 2000 a Carta de Risco para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na Cidade Velha cuja obra só agora está a ser implementada. Por se ter deixado passar tanto tempo, por variadas razões é claro, a situação diagnosticada anteriormente com certeza agravou-se, o que para além de prejudicar o imóvel em si e, com certeza não teve só impacto financeiro. A segunda sugestão (se é que já não esteja em curso) é: pelo facto de existirem em Cabo Verde Cidades Património Nacional, pode-se realizar projectos/acções em regime de parceria com cidades estrangeiras que também são Património Nacional.O objectivo seria a protecção da identidade e a valorização do património através de Planos de Gestão Sustentável, para cada sítio.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.