Delinquência Juvenil: Juventude inquieta

PorSara Almeida,22 ago 2020 6:54

O aviso vem de associações e individualidades que vêem no terreno um aumento da tensão. Os jovens estão inquietos, com pouco ou nada para fazer, sem oportunidades no horizonte. A isto se juntam rivalidades mal curadas, falhas na reinserção e uma pandemia que veio bulir com tudo... Gerson Pereira, presidente da Associação Associação Kelem em Desenvolvimento (AKD), e o pastor nazareno Lício Lopes, que há anos trabalha com a problemática, falam da necessidade de medidas para fazer face aos fenómenos que se estão a viver nos bairros.

“Daqui a pouco a coisa vai complicar” – Pastor Licínio Lopes

Há vários anos que o pastor nazareno Lícinio Lopes trabalha com a problemática da delinquência e criminalidade juvenis. É que quando se começa, “é dificil deixar de trabalhar com isso”.

O fenómeno vai mudando, as suas características eventualmente também, e há ciclos de mais acalmia. Mas está lá. O risco sempre presente, se medidas não forem tomadas. E para o pastor nazareno, “a coisa vai complicar” a curto prazo.

Sinais há de que a delinquência e criminalidade podem estar um pouco mais escondidas nos últimos meses, até por virtude do confinamento, mas sempre presentes.

Basta ver, recorda, a mega operação polícial, envolvendo mais de 200 agentes, que decorreu em Achada Grande Trás em Junho passado. Nessa intervenção foram detidos 17 supostos delinquentes e apreendidas armas e drogas.

“Houve aquele aparato, mas depois só 3 pessoas ficaram presas”.

Entretanto, em outros bairros também se verifica uma forte tensão. Bairros como Castelão, aponta, onde um grupo de adolescentes, agora nos seus 17, 18 anos “se levantou”.

“Complicadíssimo”, diz. “Alguns jovens desse grupo, Loco gang, já foram para a cadeia, mas alguns continuam no bairro e a coisa está quente”.

Outros exemplos se repetem pela cidade da Praia. “Há sinais claros de que alguma coisa se vai complicar”, insiste o pastor, que neste momento está a trabalhar com a Polícia Nacional num projecto relacionado com a problemática.

Sinais

O Pastor Licínio Lopes é coordenador do Centro Intervenção Bairro Brasil (CIBB), em Achada Santo António. Começou em 2009 e nos anos seguintes viveu de perto os problemas provocados pelas demarcações “territoriais” dos grupos de thugs.

Depois, a partir de 2012, com o envolvimento de várias entidades e instituições, nomeadamente religiosas, houve uma reconciliação e pacificação entre os jovens.

Cenário semelhante ao de Achada terá sido vivenciado em outros bairros.

Seguiu-se um cenário de “aparente” acalmia. Líderes de gangues foram presos e com a pacificação os grupos deixaram de confrontar-se entre si. As mortes entre os jovens baixaram, mas um outro problema ganhou força: os grupos pacificados passaram a unir-se para dar caçu-body, muitas vezes em bando, e assaltar residências.

Mas de lá para cá houve outras mudanças, nomeadamente o regresso às suas comunidades de jovens delinquentes que, entretanto, já cumpriram a pena.

A par com os que saem da cadeia, outros jovens poderão engrossar a lista de delinquentes/criminosos.

“Aqueles que foram para a cadeia deixaram o espaço vazio em termos de liderança. São miúdos que há 4 anos, tinham 14 anos e agora já estão com 18,17, e estão a dar sinais de que esse sector da juventude precisa de ter uma atenção especial”, refere o pastor.

Esses jovens entretanto assumiram uma liderança que os retornados da prisão poderão querer disputar. Vai haver esse problema, antevê Licínio Lopes. Aliás, essas disputas de liderança já começaram...

E é muito fácil arranjar “seguidores” do crime, entre os jovens vulneráveis dos vários bairros, que querem pertencer aos grupos (cada vez mais intercomunitários) e arranjar dinheiro de forma rápida.

“A forma mais fácil de obter dinheiro é dar caçu-body”.

Confrontos e roubos, portanto

“A inserção social sempre falhou, infelizmente. E eles vão ter de sobreviver, ainda para mais numa época de pandemia. Não têm rendimento, quase todos vêm de famílias do sector informal e vão ter problema. O coitado pede, mas os jovens que já experimentaram essa vida de delinquência, de gangue, de assaltar as pessoas, vão fazer isso de novo”, alerta.

Apoio efectivo

Entretanto, “a COVID-19 já traz problemas para o orçamento do governo e essa camada não está bem incluída nesse orçamento”. O Orçamento Rectificativo prevê um corte na segurança. Isto não é necessariamente mau, desde que se aumente em termos das questões sociais.

“Aí a coisa pode mudar, mas tem de ser com projectos concretos, para poder ter financiamento. Se não, vamos ter problemas”.

Licínio Lopes reconhece o imenso trabalho e dinâmica positiva por parte das Associações Comunitárias nas zonas. Contudo, adverte que é uma dinâmica que tem essencialmente a ver com a solidariedade da sociedade civil, e acaba também por ser pontual. “Não tem a ver com a política que o governo ou que o estado devia ter”, critica.

A formação e capacitação, considera, são de facto importantes, mas têm de ser complementadas com apoios efectivos, como os kits para início das actividades geradoras de rendimento. Ademais, formação e sensibilização não basta. Está incluído, “mas você tem de dar-lhes possibilidades de encetarem pelo menos no empreendedorismo local”. E “isto é responsabilidade do governo”, aponta.

Assim, em suma, o pastor Licínio Lopes considera que os sinais não podem ser ignorados.

“Porque esse fenómeno, que aparentemente está mais calmo, se não for tomada alguma precaução, alguma medida, e não falo em medidas repressivas, em prender os jovens, mas medidas a nível social e económico, preventivas” pode piorar.

Inserção e reinserção

A verdade é que a par com as dificuldades de inserção, a reinserção social é ainda muito frágil. A própria sociedade rejeita quem tem um passado de crime, delinquência e/ou consumo de drogas. Não lhes dá novas oportunidades.

“Mas os ‘caras’ [thugs] estão aí, prontos para dar uma chance a esses jovens. E se o Estado, que tem esse papel, não criar políticas e não incentivar a inserção desses jovens vamos ter problemas”.

As intervenções nos bairros – e que tem sido, efetivamente, feitas – carecem de acompanhamento constante. “Por isso é que a elaboração de uma política social para os bairros de periferia é extremamente importante”, mais do que, por exemplo, o investimento em vídeo-vigilância que inibe comportamentos criminosos, mas só até um certo ponto, sem nunca ir à raiz dos problemas.

Questionado sobre o Plano Nacional de Reinserção Social, apresentado em Outubro passado e que pela primeira vez estipula um programa financeiro para a sua execução, Licínio Lopes dá o benefício da dúvida, mas...

“Não estou querendo ser pessimista, mas dêem-me exemplos de jovens que já saíram da cadeia e houve uma reinserção social, que é tão falada. Esses jovens quando saem da terão que ter um seguimento”.

E seja como for, até pelos elevados custos que as penas de prisão acarretam para o erário público, “a inserção é mais fácil que a reinserção”.

Assim, tem de haver políticas públicas do governo, mas também envolvimento da sociedade civil, Associações e do próprio poder local que “deve ter essa sensibilidade”.

“Se não, vamos ter problemas mais tarde...”, reitera.

“É preciso encontrar soluções para ocupar os jovens” – Gerson Pereira

Desde Março que Cabo Verde vive sob o espectro da COVID-19. Durante dois longos meses a capital viveu confinada, em estado de emergência. Uma coisa dessas – e mesmo a actual situação de Calamidade – têm um impacto imenso nas famílias, principalmente nas que trabalham no sector informal e dependem do ganho diário. A “coisa” só não foi (ou é) pior porque houve uma vasta gama de apoio e solidariedade. As Associações comunitárias tiveram aqui um papel importante. Foi inclusive criada uma rede - Rede das Associações Comunitárias da Praia – e o trabalho prioritário das mesmas tem sido, no geral, prestar o apoio imediato às famílias afectadas.

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Mas há um outro aspecto que merece também uma atenção particular: tem havido um aumento da delinquência e criminalidade.

Gerson Pereira, presidente da Associação Kelem em Desenvolvimento (AKD), e fundador da rede, refere que esse fenómeno não ocorre apenas em Achada Santo António (onde a zona de Kelem se insere), mas, pelo “feedback” que tem de outros líderes comunitários, um pouco por todos os bairros. Achada Santo António, Paiol e Achada Grande Trás parecem ser os locais mais problemáticos, neste momento.

Um ligeiro aumento da criminalidade e delinquência que terá começado logo “depois do término do estado de emergência”, aponta.

Arrombamentos, assaltos e outra criminalidade parecem pois estar a subir um pouco por toda a Praia, e parece estar a verificar-se igualmente um aumento da rivalidade entre grupos de jovens.

As causas? No entender do presidente da AKD, várias, a começar pelo próprio confinamento. “Não havia coisas para ocupar os tempos livre dos jovens. No estado de emergência alguns reuniam-se em grupinhos, em casa uns dos outros, ou em becos”... Mas também pela crise financeira resultante da pandemia. “Para algumas famílias, a situação ficou um bocado complicada”. Não diria que seja o principal motivo, “mas pode estar de certa forma ligada”.

Até agora nenhum preso nas cadeias nacionais foi libertado sob alguma medida excepcional decretada devido ao coronavírus. Contudo, por motivos de cumprimento de pena, vários antigos líderes de grupos de delinquentes saíram da cadeia civil. A Kelem, no último par de meses, regressaram três desses indivíduos que eram tidos como líderes.

Um deles já foi baleado e outros têm sido vistos em situações que em nada tranquilizam a comunidade.

As brigas entre grupos, que há anos marcavam vários bairros, e onde em Achada Santo António eram constantes, quase desapareceram do quotidiano. Até agora.

Além desse regresso, nota-se que jovens mais novos, que eram apenas crianças naquele período “querem de alguma forma reacender essa rivalidade”,

“Não sei o que se está a passar com esses jovens, mas tem dado sinais que estão tentando de alguma forma reacender essa rivalidade”, alerta.

E mais uma vez, para essa inquietude e extrapolação terá “contribuído muito, a falta de encaminhamento da energia e foco para actividades educativas, formativas e até de lazer.

Gerson Pereira lamenta que, pelas circunstâncias impostas, destacamente no âmbito das medidas de combate à COVID-19, a AKD não tenha conseguido realizar todas as actividades que gostaria, “porque a situação não permite estar constantemente no terreno”. O que resta aos jovens é a internet, da qual, na realidade, não sabem fazer uso útil. De resto, pouco para fazer... falta rendimentos... incerteza e falta de oportunidades...

Tudo alinhando-se, portanto, para a ‘tempestade perfeita’. Ou não. Medidas, se forem tomadas.

“Acredito que se não fizermos nada agora a nível dos bairros, a nível das associações, junto das famílias e dos jovens, mas também de iniciativas a nível do governo e da Câmara Municipal, algo que possa fazer com que os jovens se sintam úteis e ocupem os seus tempos livres de forma mais saudável para evitar que enveredem por esse caminho, a situação vai piorar. É isso que temos que ver, mas pensando em conjunto, acho que podemos encontrar algumas soluções”, advoga o líder comunitário. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 977 de 19 de Agosto de 2020.

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Autoria:Sara Almeida,22 ago 2020 6:54

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  22 ago 2020 13:46

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