Os desafios de uma alimentação saudável em Cabo Verde

PorSheilla Ribeiro,7 nov 2021 8:29

Em busca de uma maior qualidade de vida, pessoas optam por uma alimentação baseada em vegetais. Em Cabo Verde, os desafios de uma alimentação vegetal passam pelo preconceito, disponibilidade no comércio e, principalmente, pelo custo dos produtos.

A dieta vegetariana não inclui carne vermelha, frango ou peixe, mas muita gente que segue esse padrão consome leite e derivados, além de ovos.

Já o vegano faz mudanças que vão além da cozinha. Fora não ingerir nada de origem animal, não usa itens de limpeza doméstica e higiene pessoal, por exemplo, de origem animal.

Na Praia, a Tambake, uma oficina biológica, dedica-se exclusivamente à venda de produtos, que na sua produção agrícola, não foram usados agro-tóxicos. Qualquer produto biológico, incluindo cosméticos e detergentes.

“Isso, por uma questão de saúde individual, mas também de todo o ecossistema. Os agro-tóxicos provocam imensa poluição, provocam desequilíbrio no ecossistema agrícola, que vai desde todos os bichinhos que são necessários a um equilíbrio da biodiversidade, à saúde do agricultor e à dignidade de quem faz a produção agrícola”, justifica a gerente do estabelecimento, Catarina Ressurreição.

Para além dos produtos biológicos, a Tambake foca em produtos e subprodutos que não sejam de origem animal. Ou seja, não é carne nem peixe nem mesmo lacticínios ou ovos.

“Na nossa oficina produzimos as refeições que vão desde pequeno-almoço, almoço ou lanche, todas exclusivamente com produtos vegetais”, garante.

Desafios do investimento vegan

No próximo dia 27 de Dezembro, a Tambake completa quatro anos de existência. Catarina Ressurreição salienta que um dos principais desafios refere-se ao facto de a grande maioria dos produtos serem importados, pela inexistência da certificação biológica no país.

Sem a certificação biológica, enquanto estabelecimento orgânico, a Tambake trabalha apenas com dois projectos nacionais de agricultura biológica, depois de ter feito uma certificação informal.

“Fizemos isso através de um certificador português que veio conhecer os projectos e fez uma certificação para garantir a Tambake que poderia vender aqueles produtos com toda a confiança aos seus clientes e garantir que eram biológicos, totalmente livre de químicos”, acrescenta.

Catarina Ressurreição defende ser necessário um plano de apoio ao desenvolvimento da agricultura biológica, que no seu ponto de vista, seria “muito mais interessante” para o contexto de Cabo Verde.

Isso porque, num primeiro momento, os químicos podem permitir uma maior produção agrícola, contudo, contaminam aos poucos os solos, os lençóis freáticos, causam o desequilíbrio do ecossistema, importante para a agricultura.

“Num país que tem sempre o perigo da desertificação, a agricultura biológica repõe toda a parte orgânica e mineral e acaba por tirar menos ao chão do que aquilo que dá. Então, seria importante haver um plano de desenvolvimento da agricultura biológica com formação e com certificação para que quem aderisse a este tipo de agricultura tivesse esse incentivo para poder colocar no mercado um produto que garantidamente é isento de químicos”, argumenta.

Ainda no que tange aos desafios, a gerente aponta o processo burocrático e os custos da importação que considera serem “altíssimos”, mesmo tratando-se de produtos mais saudáveis e que seriam desejáveis que a maioria da população tivesse acesso.

“Para prevenir vários tipos de doenças endémicas, doenças não transmissíveis como diabetes, tensão alta, doenças coronárias, doenças oncológicas, vários tipos de intolerâncias e alergias alimentares. São produtos que acabam por ficar muito caros porque o transporte é caro e a parte da pauta aduaneira não está adequada a uma política que queira que as pessoas comam mais saudável”, acredita.

Catarina Ressurreição frisa que seria “muito importante” uma revisão das taxas aduaneiras em consonância com as orientações da OMS e as orientações de uma alimentação saudável.

“Para um produto sem glúten ou produtos que pretendem substituir os lacticínios de origem animal, acabamos por pagar muito mais do que os mesmos produtos de origem animal. Então dá a sensação que comer biológico é muito caro. É mais caro sim, mas não haveria a necessidade de ser tão caro se as taxas aduaneiras onerassem mais os produtos que fazem mal à saúde e onerassem menos os produtos que são mais saudáveis”, exemplifica.

Nesse sentido, sugere uma coordenação entre os diferentes ministérios, como as Finanças, Saúde e Educação para que o acesso aos produtos mais saudáveis seja democrático.

“Acreditamos que as pessoas mesmo não sendo 100% veganas a todo tempo, se pelo menos conseguissem reduzir o consumo de produtos animais a 50% o impacto a nível ambiental e a nível de custos para a saúde pública e individual seria muito benéfico”, acredita.

Conquistar o público

De acordo com a gerente da Tambake, os últimos quatro anos têm sido de “partir a pedra”. Ou seja, tem sido, de pouco a pouco, criar um mercado que não existia.

“Isto também é um grande desafio, ultrapassar alguns preconceitos, nomeadamente que a comida vegana é aborrecida, ou que é só alface, ou que não é nutritiva o suficiente. É ir conquistando pouco a pouco as pessoas pelo sabor”, profere.

Além do público vegetariano e vegano, a comida vegana é procurada por pessoas com limitações alimentares que pretendem comer o doce sem açúcar e opções sem glúten, pessoas que simplesmente gostam de ter uma vida mais saudável e até pessoas que, por motivos religiosos, não comem carne.

“Ou seja, a procura e o interesse existem, principalmente depois da pandemia, mas o acesso ainda não é democrático. Isto é algo que me deixa muito triste”, afirma.

Catarina Ressurreição revela que para superar o preconceito relativo à comida vegana, procura fazer fotografias diárias dos pratos para mostrar que pode ser variada e apelativa. Fotos que depois são publicadas nas redes sociais.

No espaço, prossegue, a cozinha é aberta e “totalmente transparente” para que os clientes possam comunicar com as manipuladoras dos alimentos, que vão explicando e desconstruindo os preconceitos que possam existir.

Adaptar pratos típicos

A mentora da Tambake garante que veganismo não é apenas para quem tem dinheiro porque a comida cabo-verdiana é tipicamente vegana.

“A cachupa sem a carne é um alimento completo. Tem o cereal integral, tem as leguminosas que são uma proteína, as hortaliças. A adição da carne ou do peixe é algo que hoje em dia se faz com mais quantidade, mas que os nossos avós ou os nossos pais consumiam muito pouco por uma questão até financeira”, ilustra.

Para além do milho, Catarina Ressurreição menciona o feijão como “comida de terra e vegetal”, ao qual é acrescentado “erradamente” o chouriço ou o caldo de Knorr.

Enquanto uma oficina vegana, a Tambake tenta veganizar não apenas os pratos típicos de Cabo Verde, como de outras paragens tal como a feijoada à brasileira e pratos tipicamente portugueses.

“Por isso é que chamamos oficina e não restaurante ou snack-bar. É uma oficina que vamos testando receita, experimentando as coisas de que nos lembramos e ver como resulta em versão vegan”, precisa.

Cabo Veggie – plataforma de partilha de experiência vegetariana

Há mais ou menos cinco anos, Suzilene Andrade começou a caminhada pelo vegetarianismo devido a problemas de saúde. A jovem conta que sem saber que era intolerante à lactose, consumia-os, o que lhe provocava vómitos e diarreias constantes.

Ao Expresso das Ilhas, Suzilene Andrade diz que apenas pensou que o mal-estar se devia à sua alimentação, quando foi alertada por uma jovem de Santo Antão que não reside no país. Inicialmente, confessa que não aceitou a sugestão de que podia ser responsável por estar doente devido ao que comia.

“Não sabia o que estava a comer ou porquê estava a comer. Não tinha nenhuma noção do que o meu mal-estar constante era por causa do leite e de lacticínios”, reconhece.

Suzilene Andrade explica que aos poucos o alerta criou raízes na sua mente e começou por retirar da dieta o leite e alguns derivados como o iogurte. Em poucos dias, após constatar a diferença, decidiu mudar a dieta, por conta própria, o que viria a agravar a anemia.

Na altura, os médicos aconselharam a jovem que era mais fácil obter ferro e proteína de origem animal do que origem vegetal. E assim, voltou a consumir carne e proteína animal.

“Só que me sentia inchada e sofria com prisão de ventre. Então comecei a estudar medicina Ayurveda, uma filosofia médica milenar da Índia e tive o acompanhamento de uma especialista na área, que me deu orientações sobre terapia e tratamentos naturais”, narra.

Entretanto, depois de se ter mudado para a ilha do Sal e com o confinamento imposto pela pandemia da COVID-19, Suzilene resolveu criar a plataforma Cabo Veggie para partilhar não apenas a sua experiência enquanto vegetariana, mas também lugares onde se podia encontrar refeições à base de vegetais.

“A plataforma foi criada depois que me mudei para a ilha do Sal em Janeiro de 2020 e, na altura, muito mais do que agora, praticamente não encontrava opções vegetarianas a não ser hambúrgueres, saladas, sopas e batatas fritas”, narra.

Sendo nova e não conhecendo muito bem a ilha, Suzilene Andrade optou por criar um grupo para conhecer pessoas vegetarianas da ilha que poderiam trocar informações e assim facilitar a vida uns dos outros. Assim surgiu a Cabo Veggie no Facebook e no Instagram.

“Fui publicando aos poucos, fui estudando muito sobre vegetarianismo e sobre alimentação. Fiz alguns cursos básicos durante a pandemia e comecei a partilhar não só a minha experiência, mas também lugares onde as pessoas podiam encontrar produtos não só restaurantes como lojas onde podiam encontrar produtos que pudessem ajudar na transição e pudesse ajudar aqueles que mesmo não sendo vegetarianos queiram ter uma alimentação mais balanceada ou diversificada”, declara.

O objectivo da plataforma, assevera, não é converter as pessoas, mas sim fazê-las reflectir sobre a forma como cuidam do corpo. “A única coisa que a gente tem e que é nossa nesta vida”.

Obstáculos ao vegetarianismo

Suzilene Andrade afirma que no início da sua transição para o vegetarianismo, a maior dificuldade foi a família que estranhou e tentou, “a todo o custo”, fazer com que comesse carne.

Um outro desafio é encontrar produtos na ilha onde actualmente reside, Sal, devido a falta de produção local. Além da dificuldade em obter alimentos frescos.

“Não tendo uma produção local implica um custo extra. Tudo que chega ao Sal, chega num preço duplicado do que é por exemplo, na Praia ou em São Vicente. Além do preço, o produto não tem a mesma qualidade com que saiu da ilha de origem, não tem o mesmo tempo de vida”, ressalta.

“A maioria dos restaurantes não estão preparados para vegetarianos e tão pouco para veganos que passam por uma grande dificuldade em Cabo Verde. Nos restaurantes há a dificuldade de aceitarem que quero comer de uma determinada forma. Se quiser comer apenas legumes cozidos, acham que não fica bem e querem fazer de outra forma por achar que é melhor”, descreve. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1040 de 3 de Novembro de 2021.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,7 nov 2021 8:29

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  8 nov 2021 8:29

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