Tudo começou a 24 de Dezembro, na Gâmbia, quando um grupo de 94 migrantes oriundos desse país, mas também da Serra Leoa, Senegal, Guiné-Conacri, Mali e Guiné-Bissau; entre os quais três mulheres e 91 homens, sendo 15 menores, com idades compreendidas entre os 14 aos 17 anos, embarcaram numa aventura com destino à Espanha. Alguns partiram ao encontro de familiares que, há anos, fizeram a mesma trajectória.
Natural de Guiné-Bissau e com residência há sete anos na Gâmbia, Almami vendeu alguns imóveis e com o apoio financeiro de familiares, pagou cerca de mil euros, para tentar a sorte.
“A situação na Gâmbia é difícil. O meu trabalho não me permite sustentar a minha família, dando-lhes condições dignas de saúde e educação, por isso, decidi entrar numa canoa e tentar a sorte, dado que Espanha e Portugal não fazem deportação”, contou.
Em situação semelhante ou pior estão outros companheiros, que chegaram a contrair empréstimos para se arriscar na viagem.
A história mais incrível, contudo, talvez seja a dos dois adolescentes, Didi e José (nomes fictícios), 14 e 16 anos, respectivamente, que com o apoio da mãe arriscaram a vida no mar, a fim de conseguirem um futuro melhor.
José contou que a vida da sua família é extremamente difícil, razão pela qual, não mediu esforços em desafiar o mar, para oferecer uma vida melhor para a sua mãe e o seu irmão mais pequeno.
“Somos órfãos de pai e a minha mãe é peixeira. O meu irmão mais velho tem problemas mentais e toda a responsabilidade da família recai sobre as minhas costas. Por isso, com o pouco dinheiro que consegui na carpintaria, mais o apoio da mãe, consegui pagar a minha viagem e a do meu irmão mais novo”, revelou José.
Em poucos dias de viagem, a aventura virou um pesadelo, desabafam.
“Em nove dias ficamos sem comida, com o tempo a água terminou, o combustível acabou e o motor sofreu uma avaria e ficamos à deriva. A tristeza e o desespero aumentaram quando dois companheiros morreram e tivemos de os atirar ao mar, bem perto de Marrocos”, lamentou Almami.
Desanimados e sem terra à vista, o grupo passou a beber água do mar.
“Cansamo-nos muito, passamos fome, sede e muitas dificuldades e o pior, vimos o nosso objectivo defraudado”, revelou a migrante.
Depois de 25 dias no mar e em meio do desespero surgiu a luz de um farol, que os trouxe à esperança de resgate, mas uma esperança carregada de receio de como seria o destino.
“Só que naquela zona havia muitas pedras. A piroga embateu e dois colegas acabaram por falecer na hora. Triste, porque aguentaram a pressão de viagem, mas não tiveram a mesma chance”, sublinhou.
O alerta sobre uma piroga com migrantes clandestinos foi dado por um faroleiro do Farol do Morro Negro que se encontrava de serviço.
“Quando o faroleiro nos informou que estávamos em Cabo Verde, veio a sensação de alívio, porque sabemos que além de ser um país irmão, aqui reina a paz, tranquilidade e não corríamos o risco de vida”, disse.
O senegalês Seco, emocionado agradece a Deus por ter chegado a terra firme, mas sente o peso de tristeza e responsabilidade perante os familiares.
Segundo salientou, a aventura por uma vida melhor tornou-se num pesadelo e deixou marcas para vida.
“Esta aventura custou a vida do meu irmão. Não sei como encarar a minha família. Investi tudo que tinha nessa viagem e terei que começar do zero”, disse Seco que não descarta a possibilidade de uma nova tentativa.
Assim como os outros, o adolescente José pede uma oportunidade para recomeçar uma vida em Cabo Verde e ajudar a mãe.
“Não quero voltar ao meu país. Sei o quão duro é ter uma única refeição por dia e às vezes nem isso. Há momentos que tomamos o café e só comemos no dia seguinte. A vida é um risco e eu arrisquei a pensar na minha mãe e meu irmão mais pequeno. Solicito que alguém nos adopte, que nos dê uma oportunidade na vida, que dê escola ao meu irmão mais novo, para que possamos ajudar a nossa mãe”, implorou.
Dos dados actualizados sobre os sobreviventes, ao fecho desta edição, 85 encontram-se no Pavilhão Municipal Seixal recebendo atendimento diário e cinco, incluindo as três mulheres, encontram-se hospitalizados recebendo cuidados intensivos, devido à desidratação.
No Pavilhão Seixal, os resgatados estão a ter seguimento diário, triagem médica, e receberão tratamento a qualquer outra patologia de base que apresentarem, garante o delegado de saúde, Elton Brito.
Evandro Sousa, Comandante Regional da Boa Vista, sublinhou que a maioria dos migrantes tem idade compreendida entre 18 e 25 anos, ou seja, apenas sete indivíduos têm idade superior a 25 anos.
A maioria é de nacionalidade senegalesa (56). Há também 25 cidadãos da Gâmbia, cinco da Guiné-Bissau, um da Serra Leoa, um da Guiné Conacri e um do Mali.
A Vereadora das Comunidades Migradas e Imigradas da Câmara Municipal da Boa Vista, Fabienne Oliveira, considera que a situação é triste e gera alguma tensão emocional. “É lamentável ver um cidadão arriscando a própria vida para ter melhores condições de vida e chegar muito desidratado e com a saúde fragilizada”.
Fabienne Oliveira garante que a autarquia, juntamente com os parceiros locais, tem trabalhado de forma árdua para minimizar o sofrimento dos migrantes e proporcionar conforto, enquanto aguardam os trâmites do processo de repatriamento.
“Estão a receber todo o cuidado necessário, e inclusive estão em contacto com as famílias”, afirma.
“O processo de repatriamento não será fácil”
Entretanto, o ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, sublinha que o
Governo está a trabalhar em estreita articulação com a Câmara Municipal, e a prestar assistência médica, humanitária, cuidados de saúde, alimentação e alojamento.
Paulo Rocha assegura que está a trabalhar na identificação dos migrantes junto com a Direcção de Estrangeiros e Fronteiras e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, no contacto com as autoridades diplomáticas, todas as embaixadas dos países de origem, para depois se proceder ao processo de repatriamento.
O governo afirma que é a primeira vez que o país recebe uma quantidade tão grande de migrantes, ademais de várias nacionalidades, o que complica o processo de repatriamento.
Enquanto se agiliza o processo de repatriamento, os migrantes vão levar a vida, no Pavilhão Seixal, sob olhar atento da Polícia Nacional.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.