Após o falecimento, o corpo humano inicia o processo de transição, manifestando descoloração e produção de gases, entre outros sinais. Sem a preparação adequada do corpo, torna-se praticamente impossível realizar um velório com o caixão aberto e com a presença dos familiares e amigos. Após ser declarado o óbito, inícia-se todo um processo de preparação do corpo até chegar ao sepultamento.
Processo de preparação
Técnico de tanatopraxia, Delfim Varela, que trabalhou na preparação de defuntos no Hospital Universitário Agostinho Neto durante 36 anos, explicou que a preparação do corpo é essencial para se despedir e prestar homenagens ao ente querido de forma adequada. Isso garante um ambiente isento de riscos de contaminação, preservando, ao mesmo tempo, a integridade do corpo.
Segundo este profissional, o processo de preparação de um defunto tem início ainda no local onde foi declarado o óbito, hospital, residência, ou qualquer outro ambiente. Posteriormente, o corpo é encaminhado para a casa mortuária do hospital ou para uma funerária. Os procedimentos visam orientar o corpo a ter melhor aparência possível, eliminando odores e prevenindo descolorações.
Delfim Varela contou que inicialmente começou na profissão como auxiliar de serviços gerais do departamento de Traumatologia do Hospital Universitário Agostinho Neto, o que o permitiu analisar e acompanhar de perto todo o processo de luta pela vida dos pacientes, até o ultimo suspiro. Este profissional, com vasta experiência, explicou que o processo de tanatopraxia é delicado e requer atenção aos detalhes.
“O trabalho começa com a remoção do corpo do local do falecimento e, em seguida, é feita a lavagem e a higienização. Em seguida, drenamos os fluidos do corpo e os substituímos por produtos químicos que auxiliam na preservação. Por fim, preparamos o corpo para o sepultamento, que pode incluir, ou não, vestir o falecido e fazer sua apresentação no caixão”, detalhou.
Diante da vasta experiência, este técnico confidenciou que não possui uma capacitação académica na área da tanatopraxia, mas que sempre abordou a tarefa com empatia e respeito.
“É importante lembrar que estamos ajudando as famílias a passar por um momento difícil, proporcionando um ambiente onde podem despedir-se de seus entes queridos. A compreensão da importância desse serviço ajuda-nos a superar as dificuldades emocionais, é fundamental adaptar nossos procedimentos a cada situação. Acredito que preparar um defunto é desempenhar um papel crucial na jornada do luto das famílias. Nós permitimos que elas se despedem de seus familiares falecidos de maneira respeitosa e digna. Trabalhar um corpo, apresentar a familia o seu ente para o velório, temos que ter em mente que é a ultima despedida e por isso não se pode deixar uma imagem traumatizante aos familiares e amigos, isso sempre me motivou a continuar”.
Delfim Varela insiste que a profissão de preparar um corpo é uma actividade como qualquer outra, mas não incentiva os jovens a seguir pela área por conta da fraca remuneração e desvalorização da profissão em Cabo Verde.
Agências Funerárias
Por sua vez, o sócio-gerente da agência Casa Funerária da Praia, Jorge Fernandes, explica que no caso das agências funerárias, o primeiro passo é contactar as autoridades competentes, como a Delegacia de Saúde, para certificar o óbito e, na sequência, obter o o certificado de óbito junto à Conservatória Civil.
“Após o certificado de óbito em nossas mãos, iniciamos o processo de preparação para o funeral. Isso inclui uma primeira fase, que é a preparação dos restos mortais de forma a que o defunto esteja em condições para o sepultamento e, a partir daí, é a marcação do funeral. Caso a pessoa seja religiosa, na igreja terá que ser feita uma missa em honra desse defunto e após a missa dirigimo-nos ao cemitério, onde o suporte é previamente preparado sob a responsabilidade da Câmara Municipal do Conselho onde é enterado o defunto. A família arca com as despesas da sustentação, a abertura e outros encargos do cemitério”, informou.
A Casa Funeraria da Praia actua também na preparação e conservação ódo corpo para o sepultamento. “Nós temos uma sala própria com os materiais condicionados. A preparação é feita dentro dos critérios da saúde pública e, atendendo que o nosso clima é muito quente, normalmente nós preparamos os cadáveres com uma injeção de formol, que é uma substância que faz a preservação do corpo. Para um cadáver que tem que esperar mais tempo para ser retirado, temos uma câmara de frio onde, após a preparação com as substâncias químicas, o corpo é colocado nessa câmara para o tempo que for necessário”.
A morte
À frente da Casa Funerária da Praia, este gerente admite que trabalhar com defuntos não é uma tarefa fácil, é precisso saber lidar com a emoção dos familiares e, muitas vezes, o sentimento de perda condiciona um nivel de stresse que acaba por atrapalhar na execução do trabalho. Estar de frente a um corpo, embora seja só um corpo, Jorge Fernandes confesa que não é algo que propociona uma experência agradavel.
“Na verdade, é uma situação estranha, uma vez que para estarmos dentro desse negócio, temos que estar preparados também psicologicamente e quando vemos um corpo, vemos apenas como um corpo e não que trabalhamos com a morte. Tratamos o corpo com a maior dignidade pensando também nos familiares, claro que existem situações mais complicadas quando o corpo tem pancadas muito fortes e, claro, isso mexe um pouco também com quem está a trabalhar com isso. Mas eu, pessoalmente, nunca trabalhei directamente com um corpo, mas já presenciei e nós tentamos encarar isso com naturalidade, embora nem sempre seja fácil”.
Jorge Fernandes explica que em Cabo Verde não existe uma preparação pisicológica para trabalhar com defuntos. Em relação aos iniciantes na área, este responsável revela que é no dia-a-dia, desde o momento da contratação, que se inicia uma preparação para que a pessoa entenda e encare a profissão como uma actividade igual a qualquer outra profissão.
“É diferente, porque mexe com os restos mortais e também mexe com o sentimento das pessoas, dos familiares. Por isso é preciso ter um muito cuidado. Tentamos ao longo de todo o tempo sensibilizar os trabalhadores no sentido de que há que respeitar não só o defunto, mas também os familiares. Portanto, essa preparação psicológica parte praticamente da nossa parte, administradores. Eu tento isso diariamente conversando com os trabalhadores tentar passar uma naturalidade, afinal a morte faz parte do processo da vida, é natural e esperado a qualquer hora”, realçou.
Transladação de corpos
Relativamente à transladação de corpos, tanto em Cabo Verde como para o exterior, Jorge Fernandes explica que é necessária uma autorização prévia da entidade competente de saúde.
“A transladação para o exterior necessita da certificação de todo o processo de preparação dos restos mortais e do envolvimento das várias partes como a Delegacia de Saúde, certificação por parte das entidades estrangeiras, da Embaixada, do Serviço Consular e também do Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma vez que os documentos utilizados para o corpo entrar em um país estrangeiro é preciso ter essa certificação. É um processo aparentemente fácil mas, é claro, tem suas implicações a translação de um corpo para um país estrangeiro, poderá levar mais de 7 dias, então há essa responsabilidade por parte da agência funerária em ter o corpo em condições que possam preservar por bastante tempo”.
Desafios
Ao ser questionado sobre qual a parte mais dificil no trabalho de uma agência funerária, Jorge Fernandes diz que “é fazer com que as pessoas entendam que a morte é um processo natural, qualquer um de nós está-lhe sujeito, é a coisa mais certa que talvez exista na vida, o que não é fácil, porque as pessoas tendem a rejeitar, há esse medo de que faz com que as pessoas se afastem. Mas estar dentro da área, isso torna-se um processo natural e, claro, quando a morte nos toca a nós enquanto elementos e actores desse processo funerário, nós sentimos como qualquer outra pessoa. O segredo é encarar as coisas com naturalidade e saber que é uma profissão”.
“Comparando com outras actividades, por exemplo, na profissão da medicina os profissionais enfrentam situações muito mais terrível do que nós enfrentamos ao trabalhar com um corpo após a morte, porque a pessoa está viva e tem sentimentos, tem dor, tem tudo. Nós, a partir do momento que esse trabalho acaba no hospital, começamos a fazer o nosso trabalho. Já o cuidado recai mais sobre os familiares que sentem a dor da perda do ente querido”, observou.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1146 de 15 de Novembro de 2023.