Juca Martins cresceu com o pai, a irmã e a avó. Aos 18 anos, Juca perdeu o pai, na altura com 40 anos, que decidiu pôr fim à própria vida.
Ao Expresso das Ilhas, o jovem, hoje com 30 anos, diz que ainda hoje é difícil aceitar a partida repentina de alguém que sempre foi sinónimo de alegria e tranquilidade.
“O meu pai era uma pessoa calma, tranquila, sempre brincalhão e divertido. Não trazia stress para casa e quando bebia demais deitava-se e descansava, por isso não sei o que se passou para que ele fizesse o que fez”, confessa.
Juntar dinheiro, trabalhar e reformar a casa onde viviam. Eram esses os planos do pai de Juca, conforme lembra. “Ele era o homem da casa e até queria construir um novo piso”, conta.
Damiro Soares, assim como Juca, perdeu, este ano, alguém próximo por suicídio. A prima, de apenas 16 anos, que sonhava em viajar para Portugal para terminar o secundário e depois concluir o ensino superior naquele país.
Ao descrever a prima, Damiro diz que era alguém de extremos, mas genuína. “Era uma pessoa que não levava desaforo para casa, ao mesmo tempo, meiga, doce e com uma amizade sincera. Era muito franca quando falava com as pessoas. Ao mesmo tempo que era carinhosa, podia ser explosiva, mudava de personalidade de uma hora para outra. Mas quem a conhecia percebia que isso fazia parte dela”, defende.
A jovem, segundo o entrevistado, guardava para si muitos sentimentos. “Ela não era de se abrir muito. Até ao último dia de vida pensava em viajar para Portugal, porque as amigas mais próximas tinham ido todas para lá. Uma prima nossa, de quem era muito chegada, também emigrou. Ficou com essa vontade de tentar viajar para Portugal”, recorda.
O adiamento desse sonho trouxe frustrações. “O plano inicial era viajar já, antes de terminar o secundário, mas o facto de ter duas personalidades tornava a convivência difícil. Diziam que ninguém ia aguentar as mudanças. Ela era meiga, mas de repente falava de forma agressiva. Eu acredito que essa agressividade era uma forma de se proteger”, argumenta.
Hoje, Damiro acredita que tudo que a prima queria era ser compreendida melhor pelas pessoas que a rodeavam.
“Eu só comecei a entendê-la depois da sua morte”, afirma.
Suicídio é a principal causa de morte por causas externas em Cabo Verde
O suicídio permanece como um dos maiores desafios de saúde pública em Cabo Verde, sendo a principal causa de morte por causas externas no país. Entre 2015 e 2018, registou-se, em média, oito casos de suicídio entre homens para cada caso entre mulheres, segundo dados da Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio do Ministério da Saúde.
Em 2019, a taxa foi de 12,6 por 100 mil habitantes do sexo masculino e 5,7 por 100 mil do sexo feminino. Apesar de uma redução de 17,4% entre 2010 e 2019, a taxa de mortalidade por suicídio em 2019, foi de 15,23 por 100 mil habitantes, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No mesmo ano, registaram-se 49 mortes por suicídio em Cabo Verde, sendo 45 homens e apenas quatro mulheres.
A ausência de um sistema centralizado de notificação de tentativas de suicídio continua a ser uma das maiores fragilidades do país. Actualmente, os registos são feitos de forma dispersa pelos profissionais de saúde, sem integração numa base de dados nacional. O Ministério da Saúde reconhece o desafio, mas garante que é superável com investimento e decisão política.
Nesse sentido, Cabo Verde integrou no Plano Estratégico Nacional de Saúde Mental (PENSM 2021-2025) uma Estratégia de Prevenção do Suicídio, apoiada pela OMS, que segue o programa “LIVE LIFE – Viver a Vida”.
As principais medidas incluem a limitação do acesso a meios de suicídio, a formação de jornalistas para uma cobertura responsável, o reforço das competências socioemocionais dos adolescentes e a identificação precoce de comportamentos de risco.
A análise nacional reforça ainda a necessidade de acompanhar de perto famílias de sobreviventes e expandir serviços de saúde mental, incluindo através da telemedicina.
Em 2020, apenas nove das 786 teleconsultas realizadas no país foram de psiquiatria.
Sinais de risco
O psicólogo e especialista, Jacob Vicente, considera que é urgente alterar como a sociedade aborda o suicídio. Conforme defendeu, ninguém quer deixar de viver, mas sim livrar-se da dor, de um sofrimento e de um desespero psicoemocional bastante grande.
Segundo o especialista, o fenómeno deve ser visto de forma mais ampla e cuidadosa. “O suicídio é um tema muito complexo, bastante sensível, em que temos de tomar muito cuidado na sua abordagem, porque quando falamos deste tema, está muitas vezes uma pessoa ao nosso lado que já tentou ou está a pensar em suicidar-se”, refere.
O psicólogo sublinha ainda que existem sinais prévios que podem ser identificados, muitas vezes dois meses antes de uma tentativa.
“Há pessoas que começam a dar sinais explícitos nas redes sociais. Outras mudam o comportamento de forma repentina. Por exemplo, alguém que era isolado passa a ser extremamente expansivo, ou o contrário, alguém comunicativo começa a fechar-se. São alterações de humor que variam entre 8 e 80”, explica.
O pedido do socorro de quem tem o pensamento de suicídio, para quem está muito próximo, às vezes é muito explícito, segundo Jacob.
“Porém, nunca pensamos que a pessoa vai chegar a este ponto. Nós mudamos a nossa forma de ser, mudamos a nossa forma de vestir, mudamos a nossa forma de estar, mudamos a nossa forma de comunicar”, aponta.
Contudo, reconhece que nem sempre os familiares conseguem perceber estes indícios. “Todos nós temos a nossa própria vida e é difícil notar certas mudanças. Não podemos viver na auto-culpa, porque identificar esses sinais exige conhecimento especializado”, acrescenta.
Por isso, defende maior sensibilização e apoio psicológico. “Quando temos sentimentos de auto-censura ou culpa devemos procurar um psicólogo, fazer uma terapia profunda e encontrar formas de lidar com a dor”, reforça.
Depois do suicídio
Depois do acto, o que fica é uma ferida permanente. Para os familiares, a vida segue, mas carregada de dor, dúvidas e mudanças no dia-a-dia.
“Depois da perda, a minha avó chorava muito por dentro e, na véspera de completar um ano da morte do meu pai, faleceu de forma súbita. Eu tinha 19 anos e a minha irmã 16”, conta Juca Martins.
A morte do pai foi o início de uma sucessão de golpes para Juca, que teve de assumir responsabilidades cedo demais. “Depois tive de deixar os estudos de lado e trabalhar para sustentar a casa, mas não tive muita sorte e era sempre explorado, ou não me pagavam pelo trabalho feito, ou não era um preço justo. Recebia apoio dos familiares no estrangeiro e isso ajudou bastante”, narra.
O luto, conta, transformou-se numa presença constante. “O mais difícil era estar dentro de casa com a minha avó, olhar para o lugar onde o meu pai se sentava e notar a sua ausência. O luto é para sempre. Todos os dias lembro dele. Esquecemos a dor, mas sempre que entro em casa, ainda hoje eu recordo”, enfatiza.
Juca admite que foi assombrado pela pergunta “porquê?”. Mas, sempre era aconselhado pelos vizinhos e amigos que não deixasse que estes pensamentos o dominassem e deixasse de pensar no ocorrido.
“Eu gostava quando as pessoas chegavam e perguntavam como eu estava, o que se passava na minha cabeça. Pensava muito no ocorrido, mas sempre tive alguém por perto com quem podia desabafar e isso aliviava a alma, apesar dos conselhos para não pensar”.
Se a dor de Juca veio de um pai que parecia esconder os seus fantasmas, Damiro Soares perdeu uma prima que no seu último dia de vida questionou às pessoas próximas se, quando partisse, as coisas poderiam melhorar.
“Acredito que queria sentir-se mais amada, ser mais feliz. Talvez não tenha entendido a transição da adolescência”, reflecte.
Damiro lembra que, no derradeiro encontro, a prima mostrou uma calma fora do comum.
“Hoje entendo que era uma despedida, porque não era normal ela estar assim. Ela não tinha problemas com os pais, eram carinhosos, até diziam que a mimavam demais. Mas a adolescência é complicada. Acredito que ela não queria tirar a vida, queria matar a dor e infelizmente, não foi possível sem se destruir a si mesma”, lamenta.
O vazio transformou também a dinâmica familiar. “Ficámos mais unidos e atentos reciprocamente. Há o lado negativo das pessoas que começaram a julgar os pais, surgiram teorias sem fundamento. Esquecem-se de que há dores que não conseguimos ver. Eu aprendi que devemos perguntar mais, ouvir mais, dar abertura ao desabafo”, salienta.
Por serem religiosos, a espiritualidade ajudou a família de Damiro a atravessar o luto, mas a ausência continua presente.
Ajuda psicológica e prevenção
Jacob Vicente alerta que os familiares de pessoas que morreram por suicídio enfrentam frequentemente sentimentos de culpa e isolamento, precisando de acompanhamento especializado para lidar com a dor.
Para o psicólogo, a sensação de autoculpabilização é comum, mas pode tornar-se uma armadilha. “Pensar que não estive perto o suficiente pode até dar algum conforto, mas é preciso aceitar que não somos especialistas e cada um tem a sua própria vida para gerir. Para estar em paz, é necessário perceber que se fez o que era possível”, aconselha.
Jacob Vicente explica que muitas famílias evitam falar sobre o tema, mesmo anos depois da perda. A falta de diálogo e de apoio psicológico, entretanto, agrava o sofrimento.
“Durante os primeiros seis meses, muitos não conseguem criar espaços para conversar em casa sobre o que aconteceu. É por isso que defendo que familiares de pessoas que morreram por suicídio devem ter acompanhamento psicológico. Precisam de falar, de desabafar, de reconstruir o significado do acontecimento”, defende.
O especialista lembra ainda que o acesso à psicoterapia continua a ser limitado em Cabo Verde, sobretudo devido aos custos.
“Há procura crescente por consultas, de todas as classes sociais. Mas muitas pessoas acabam por desistir, porque não conseguem pagar. E não podemos continuar a pensar que a terapia é um luxo. É uma necessidade”, adverte.
Jacob Vicente sublinha que os jovens estão entre os mais vulneráveis. “Recebemos cada vez mais casos de adolescentes que chegam com tentativas de suicídio. O sofrimento emocional bloqueia a capacidade de tolerância e rouba-lhes a esperança”, disse, acrescentando que a espiritualidade, quando vivida como fonte de confiança e sentido, também pode ter um papel importante na prevenção.
Para o psicólogo, é urgente quebrar tabus e falar do suicídio de forma aberta e educativa, em especial nas escolas.
“Temos milhares de crianças no sistema de ensino. Se ensinarmos os sinais de alerta e criarmos uma cultura de prevenção, muitos jovens podiam salvar colegas, irmãos ou até os próprios pais. Precisamos educar, conversar e formar a sociedade para reconhecer e agir”, argumenta.
Jacob Vicente acredita que viver em piloto automático, preso a expectativas inalcançáveis e à comparação constante, tem fragilizado os cabo-verdianos, sobretudo os mais novos.
“Temos de aprender a gerir expectativas e a construir sonhos possíveis. Não se trata de deixar de sonhar, mas de ensinar os jovens a sonhar e a caminhar para concretizar os seus sonhos. É esse o maior desafio de Cabo Verde”, reitera.
_____________________________________________________________
No âmbito do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, que foi assinalada na quarta-feira dia, 10, a Polícia Judiciária (PJ) realizou uma conversa aberta sobre saúde mental e prevenção do suicídio.
Foi conduzida pela psicóloga Christie Wahnon, destinou-se aos funcionários da instituição na cidade da Praia e aos colaboradores dos departamentos de São Vicente, Sal, Boa Vista e da Unidade de Assomada, que participaram via Microsoft Teams.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.