À beira de mais um 1º de Maio o presidente da Confederação Cabo-verdiana dos Sindicatos Livres (CCSL) traça um cenário negro no que respeita ao panorama laboral cabo-verdiano. Para José Manuel Vaz mais do que manifestações torna-se necessária uma greve geral. “Se acontecer, com certeza que o governo vai passar a respeitar os trabalhadores e as organizações sindicais aqui em Cabo Verde”, refere o líder da CCSL em entrevista exclusiva ao Expresso das Ilhas. Salário mínimo, Código Laboral, subsídio de desemprego e PCCS são, para José Manuel Vaz, apenas alguns dos motivos de descontentamento dos trabalhadores cabo-verdianos.
Expresso das Ilhas - Qual é a actual situação laboral dos trabalhadores cabo-verdianos?
José Manuel Vaz – Neste momento é extremamente delicada e injusta. O poder de compra teve uma quebra, nos últimos anos, de 12 a 14%. O desemprego afecta cerca de 15% da população, mas a nossa percepção é que essa taxa é, de longe, superior. Há muita injustiça relativamente à segurança social. O governo reduziu drasticamente o cálculo da reforma dos segurados do INPS de tal forma que, neste momento, qualquer segurado que vá para a reforma consegue 60% do seu ordenado. Para além disso, os trabalhadores segurados que são evacuados das ilhas têm grandes dificuldades em termos de assistência médica e medicamentosa. O INPS, unilateralmente, suspendeu a comparticipação de exames de TAC e ressonância magnética fazendo com que cada segurado tenha de pagar cerca de 32 mil escudos por cada exame. Por outro lado, os médicos cabo-verdianos estão praticamente proibidos pelo INPS de receitar medicamentos que curem a doença e os trabalhadores cabo-verdianos estão condenados a engolirem paracetamol e brufen. Na semana passada o Conselho de Ministros anunciou a alteração ao código laboral, com a qual nós não estamos de acordo. Primeiro porque as propostas vão no sentido de retirar os direitos adquiridos, nomeadamente a redução das indeminizações por despedimento colectivo e despedimento por justa causa que reduz de um mês de indeminização por cada ano para 20 dias de indeminização. Em relação ao despedimento sem justa causa o governo propõe a redução de dois meses de indeminização para 45 dias para os trabalhadores que tiverem contracto a partir de 1994. Em relação ao código laboral o governo ainda propõe a redução do pagamento das horas extraordinárias de 50% para 35%, o aumento do horário de trabalho de 44 horas semanais para 48, podendo ir até 50 horas por semana. Estamos a caminhar para um período, de longe, mais crítico e injusto do que aquele que havia na era colonial. A CCSL é o único dos parceiros sociais que não subscreveu a última deliberação do conselho de concertação social do ano passado sobre o Orçamento de Estado para este ano porque não prevê o reajustamento salarial para 2015, o que nós consideramos extremamente injusto. Para além disso, o governo acordou com os parceiros o novo Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS) para a Administração Pública. Isso entrou em vigor em 2012 para os funcionários do quadro comum e ficou pendente a aprovação dos estatutos do pessoal do quadro privativo da administração pública. Estatutos que, até hoje, o governo não aprovou quando prometeu que até 2013 as propostas seriam apresentadas e discutidas com os sindicatos. Isso não aconteceu. Neste momento estamos a planear participar na manifestação do 1º de Maio e com intenção de convocarmos uma greve geral entre as duas centrais sindicais que vemos como a única alternativa para conseguir que sejam resolvidas, efectivamente, as reivindicações dos trabalhadores cabo-verdianos.
Como é que a CCSL lê estas alterações feitas pelo governo ao código laboral?
A leitura que fazemos é que os actuais governantes, em breve, vão para a vida privada. Estão a preparar as condições, como empresários para, amanhã, não terem problemas em termos de despedimentos, em termos de custos por indeminização dos trabalhadores. Do nosso ponto de vista, a leitura que fazemos é essa. Estão a retirar poder aquisitivo ao trabalhador e continuamos sem subsídio de desemprego e o governo, maldosamente, aprovou as linhas gerais de alteração ao código laboral e não levou em linha de conta o elemento essencial que foi discutido em concertação social e aprovado: a introdução do subsídio de desemprego, para equilibrar a alteração do código laboral.
O governo voltou atrás com a palavra?
Exactamente. E nós vamos agir contra isso. A última reunião do conselho (de concertação social) aconteceu no dia 25 de Fevereiro e a alteração do código laboral foi feita em paralelo com a introdução do subsídio de desemprego. O que nós achamos estranho foi, na sexta-feira, o ministro da presidência do conselho de ministros ter apresentado as linhas gerais do pedido de autorização legislativa para alterar o código e não ter apresentado a proposta de introdução do subsídio de desemprego. Estranhámos isso. Aliás devo dizer que esta proposta do subsídio de desemprego é da CCSL e o governo sempre se bateu pela sua não introdução em Cabo Verde. A muito custo esta proposta foi discutida, foi consensualizada. O governo solicitou um estudo, apresentou-o na concertação social, foi várias vezes discutido e consensualizou-se na última reunião do conselho de concertação social no dia 25 de Fevereiro. Agora, por estranho que pareça, o governo não apresentou a proposta de introdução do subsídio de desemprego. Por isso, vamos batalhar para que o governo não consiga aprovar as alterações ao código laboral sem que introduza o subsídio de desemprego.
Pode-se concluir então que o subsídio de desemprego pode estar em risco?
Está. Está em risco. Se há consenso, se a proposta foi discutida na última reunião de concertação social, no mês de Fevereiro, porque é que o porta-voz do governo apresenta as linhas de pedido de alteração legislativa sobre alteração do código laboral e não apresenta a proposta, alcançada em sede de concertação social, sobre o subsídio de desemprego? Esse consenso só foi alcançado por causa da introdução do elemento subsídio de desemprego e nós pensamos que aí o governo agiu de má-fé. Por isso vamos agir.
Mas o que é que a CCSL pode fazer?
Tudo poderá acontecer. Vai haver a marcha no 1º de Maio e vamos ter palavras de ordem sobre isso. Já propusemos à UNTC-CS que depois da manifestação nos sentemos à mesa para analisarmos a situação sócio-laboral do país, que já vimos que não é boa, e convocarmos a greve geral como o último instrumento de luta dos trabalhadores cabo-verdianos. Que é algo que ainda não aconteceu em Cabo Verde. Se acontecer, com certeza que o governo vai passar a respeitar os trabalhadores e as organizações sindicais aqui em Cabo Verde.
Já houve uma ameaça de greve geral que acabou por ser, depois, desconvocada. Porque é que desta vez vai ser diferente?
Houve um compasso de espera. Desnecessariamente. Em 2014 disse-se que havia ainda possibilidade de diálogo com o governo e para não se enveredar pela greve geral, passado um ano chegou-se à conclusão que o governo não dialoga. Quer impor aos parceiros sociais o seu ponto de vista. Já que se chegou a essa conclusão nós pensamos retomar a greve que tínhamos convocado no ano passado juntamente com a outra central sindical, com todos os outros sindicatos filiados e não filiados a nível nacional, com todos os trabalhadores de Santo Antão à Brava para que, efectivamente, convoquemos a greve geral como o último recurso para fazer com que o governo respeite as reivindicações e as aspirações dos trabalhadores cabo-verdianos.
A relação entre as duas centrais sindicais não tem sido o melhor. Este alinhamento para a participação da CCSL na marcha do 1º de Maio e o apelo que a CCSL fez à UNTC-CS para aderir à greve geral significam que estão feitas as pazes entre as duas centrais?
Nós sempre estivemos abertos para uma luta conjunta das duas centrais sindicais. Em relação à convocação da greve no ano passado houve um desentendimento entre as duas centrais sindicais por causa das reivindicações que hoje estão em pauta, mas já chegamos à conclusão, as duas centrais sindicais, que efectivamente o diálogo, que impossibilitou a realização da greve em 2014, era impossível e que o caminho que a CCSL tinha apontado, que era a manifestação seguida de uma greve geral, era o correcto.
Na altura houve alguma polémica por causa das datas escolhidas para a greve. Eram dois dias de greve que depois se juntavam a um fim-de-semana e a um feriado…
Houve de facto essa polémica. Mas, o mais importante é que já estamos em 2015 e o cenário da situação sócio-laboral continua o mesmo. Um cenário negro e grave para os trabalhadores. Por isso, neste momento estão criadas as condições, que já tinham sido criadas em 2014, para que as duas centrais sindicais consensualizem uma data para a greve geral, porque não acredito que a manifestação no dia 1 de Maio vá resolver algum problema dos trabalhadores. E nós não queremos participar apenas nas marchas e manifestações. Já fizemos três ou quatro e o governo não deu atenção às reivindicações dos trabalhadores cabo-verdianos. A saída aponta para uma greve geral, dependendo de conseguirmos uma data consensual para todas as partes intervenientes no processo.
Passado um ano sobre essa marcha e sobre essa ameaça de greve geral, qual é o retrato que faz em relação às condições laborais em Cabo Verde?
É muito pior do que há um ano. Muito pior. Veja que depois da suspensão da greve houve um conjunto de greves por sectores de actividade, para além de um conjunto de medidas que o governo anunciou e que fizeram com que a situação se agravasse em relação a 2014. Para 2015 a situação é muito mais penosa, muito mais grave e dolorosa para os trabalhadores. Daí que nós apelamos a todos os trabalhadores e sindicatos filiados numa e noutra central sindical para convocarmos uma greve geral como saída para as reivindicações dos trabalhadores.
Os sindicatos têm hoje uma imagem pouco consensual na sociedade e as pessoas dizem que os sindicatos existem, que todos os meses descontam uma percentagem dos seus salários, mas depois, na prática, isso acaba por não se traduzir em resultados. Os sindicatos e as centrais sindicais são realmente úteis para os trabalhadores?
Eu acho que sim. Os trabalhadores cabo-verdianos dizem isso de uma forma muito categórica. Que é fundamental a existência das centrais sindicais em Cabo Verde. Caso não existissem centrais sindicais aqui em Cabo Verde, a situação era muito mais complicada para os trabalhadores. Quanto às quotizações, devo dizer que elas são irrisórias. A grande maioria dos trabalhadores em Cabo Verde ainda não se encontra organizada e sindicalizada. Temos uma taxa de 60% de trabalhadores não sindicalizados.
Recentemente o Inspector-geral de Trabalho disse que não há salário mínimo em Cabo Verde, o que obrigou a um esclarecimento posterior por parte dele. Qual é a situação do salário mínimo em Cabo Verde? Porque quem trabalha menos do que 44 horas semanais não tem direito a salário mínimo.
Aqui há um equívoco introduzido pelo governo, especificamente pelo Ministério da Juventude, Emprego e Desenvolvimento dos Recursos Humanos (MJEDRH) relativamente a um serviço que pertence a esse ministério e que é a FICASE. A FICASE tem um grande número de funcionários, que são as cozinheiras e as empregadas de limpeza das escolas e jardins-de-infância, a quem o Ministério continua a pagar 8250$00 sabendo que o salário mínimo fixado é de 11 mil escudos. O ministério argumenta que essas funcionárias trabalham menos de 8 horas por dia mas elas entram às 7 da manhã e saem às 18. Por isso a justificação que o ministério dá para continuar a violar a lei relativamente ao salário mínimo não tem fundamento, de maneira que estamos a preparar uma acção judicial contra o MJEDRH e contra o Ministério da Educação por causa dessas funcionárias que estão a receber um salário que é inferior ao estabelecido por lei.
Mas o MJEDRH alega que as funcionárias da FICASE não recebem o salário mínimo porque têm um horário de trabalho de seis horas e que com o acordo dos sindicatos todas as horas que façam a mais, para além das seis horas diárias, são pagas como horas extra.
Isso é redondamente falso. Não pagam nenhumas horas extraordinárias. E também não é pago o salário mínimo estabelecido por lei que é de 11 mil escudos. E isso dá azo a que outras entidades, nomeadamente do sector privado, não cumpram. Mas felizmente a grande maioria das empresas ligadas ao sector privado tem respeitado, salvo raras excepções, o salário mínimo. De maneira que, estranhamente, o governo é o principal violador do cumprimento da lei do salário mínimo estabelecido aqui em Cabo Verde.
E qual seria o salário justo a ser pago por uma pessoa que trabalhe, por exemplo, 20 horas por semana?
20 horas? Nós estamos a defender que o salário que poderia dar alguma satisfação à grande maioria dos trabalhadores era um valor de 25 mil escudos. Não é justo esse salário. Deveria ser mais. 40 anos depois da independência deveria ser superior ao que estamos a propor.
Mas e no caso de uma pessoa não cumprir o horário completo de trabalho semanal?
Aí aplicava-se o método de cálculo, em termos de horas receberia um salário com base no salário mínimo.
Os PCCS têm sido alvo de polémica. O que é que se passa?
O que se passa é que o governo não cumpre aquilo que acordou com os parceiros sociais em 2012. Foi por proposta do governo, porque nos estávamos a insistir, na altura, que os estatutos, a grelha salarial e a lista de transição dos funcionários afectos aos quadros privativos também entrasse em vigor a partir de Janeiro de 2012. O governo disse que não era possível porque não tinham feito o estudo à volta disso, porque era necessário ver os impactos financeiros relativamente a cada sector de actividade e que precisaria de seis meses para consensualizar esse estudo com os sindicatos e aprovar os estatutos, a grelha salarial e a lista de transição de todos os quadros da administração pública cabo-verdiana. Isso não aconteceu. Os únicos que o conseguiram foram os guardas prisionais, mais ninguém, e foi porque fizeram greve. Penso que a situação se pode agudizar daqui para a frente.