A lei do arrendamento vigente em Cabo Verde data de 1961. Com quase 60 anos tornou-se há muito obsoleto e já não acompanha a dinâmica do desenvolvimento do país. A nova proposta de lei entregue pelo governo no Parlamento visa, entre outras, criar um quadro que fomente o mercado de arrendamento e facilite a mobilidade dos cidadãos. Para o jurista Simão Monteiro trata-se de uma reforma necessária, mas não vai resolver todos os problemas do sector.
Simão Monteiro começa por constatar que a proposta de lei do governo tinha que ser forçosamente melhor que a vigente, por remontar ao ano de 1961, era ainda Cabo Verde uma província ultramarina de Portugal. Entretanto, segundo o jurista um dos prossupostos comuns aos dois documentos continua de pé: o legislador defende a parte mais fraca que é o inquilino.
“Este pressuposto continua subjacente a esta proposta de lei. Portanto, há muitas restrições que continuam nesta proposta e que já vinham da lei antiga e que visam proteger a parte mais fraca que é o inquilino”.
Uma das inovações do presente diploma consiste na abolição da regra relativa à obrigatoriedade de escritura pública e registo dos arrendamentos, designadamente para o exercício de comércio, indústria e profissão liberal. Na prática não é cumprida e o diploma reconhece isso. Agora a escritura pública e o registo deixam de ser obrigatórios, mas a lei impõe o princípio de escrito particular.
Outro aspecto importante do diploma é se você tem uma casa para habitação e quer mudar a sua finalidade para indústria ou comércio, terá que ter uma nova licença para esta nova finalidade.
Prazos
O prazo de arrendamento na legislação vigente, se as partes não estipularem a sua duração, é de 30 anos. Agora a lei vem modificar um pouco a situação: segundo o artigo 10º, o prazo mínimo de arrendamento urbano passa a ser de seis meses, se outro não for determinado pelas partes. Mas, no silêncio das partes, depois desses seis meses o contrato passa a renovar-se de 3 em 3 anos. “O que também não facilita muito e não creio que esta presunção facilite o mercado de arrendamento”, comenta Simão Monteiro.
Outra novidade da proposta de lei é a oposição à renovação. Ou seja, a possibilidade que é conferida ao senhorio de impedir a renovação do contrato. Antigamente as causas da extinção do contrato de arrendamento eram muito taxadas na lei e não havia claramente hipótese de impedir que um contrato se renovasse. Agora a lei permite que o senhorio pode ir ao tribunal fazer uma notificação judicial avulsa, ou mesmo mandar uma carta escrita com a antecedência mínima de 6 meses do termo pretendido a dizer ao inquilino que o contrato não vai renovar-se. O inquilino pode-o também fazer, só que o seu prazo é menor: 90 dias. Em qualquer dos casos não há indeminização. É uma novidade que permite pôr termo ao contrato antes de tempo. Se não for cumprido o prazo do pré-aviso, qualquer das partes é obrigada à indemnização pelo período não cumprido.
Outra novidade é que esta comunicação obriga ao inquilino desocupar a casa. Se não o fizer voluntariamente, haverá uma acção de despejo e o inquilino corre o risco de ser condenado à indeminização pelos prejuízos causados ao dono.
Arrendamento
A questão das rendas do novo regime traz também algumas novidades, nomeadamente que a primeira renda vence no momento da celebração do contrato, o que não está expresso na lei vigente. Ou seja, o inquilino é agora obrigado a pagar a renda no primeiro dia útil do mês a que disser respeito. Isto facilita a vida ao senhorio e evita acumulações de renda por atraso.
Actualizações
Relativamente à actualização de rendas, a lei vigente permite uma actualização de cinco em cinco anos. Já no novo diploma a actualização de rendas pode ser feita pelas seguintes vias: 1) por acordo das partes plasmado no próprio contrato; 2) mediante actualização da renda em cada termo do período de contrato; 3) quando houver obras de beneficiação da casa. Na falta de acordo das partes quanto ao valor da actualização de rendas, a sua fixação tem por base o cúmulo das taxas de inflação verificadas entre o momento de fixação da renda ou da última actualização e a data nova de actualização, a serem consultadas no site da internet do INE.
Entretanto o senhorio deve comunicar por escrito ao inquilino com a antecedência mínima de 30 dias, o novo montante da renda.
“Há uma omissão aqui. O inquilino pode dizer, ‘eu não estou de acordo, porque você não está a aplicar bem a lei, ou os critérios de base estão errados’. E o senhorio pode contrapor que ele é que está certo. Aqui a lei não dá uma solução definitiva em como ultrapassar esse conflito. Esta é uma questão que pode depois gerar conflitos em termos de actualização de rendas”, alerta Simão Monteiro.
Segundo o jurista há também uma norma no artigo 68 sobre a indeminização e recuperação do prédio que não tem em conta a realidade do país. “O artigo 68º diz que é devida ao arrendatário, pela desocupação do prédio para habitação do senhorio, uma indeminização correspondente a dois anos e meio de renda à data do despejo. Isto significa que se te arrendo uma casa e depois preciso da casa para eu morar, eu tenho que pagar ao inquilino dois anos e meio de renda. Depois, se o senhorio desocupa a casa dentro de 60 dias, ou tiver a casa fechada durante um ano sem motivo de força maior, ou não morar na casa durante três anos, ainda além dessa indeminização de dois anos e meio de renda, ele vai pagar ao inquilino mais dois anos de renda e este tem o direito de reocupar a casa outra vez”. Para o jurista esta solução não é de todo realista e não é dessa forma que se protege a parte mais fraca. “E não favorece os objectivos do diploma, nem as intenções do legislador, que é fomentar o mercado de arrendamento”.
Simão Monteiro acredita que a proposta de lei apresentada pelo governo vai ser uma lei melhor que a vigente, mas, na sua opinião, fica-se com a ideia de que ainda há muita protecção do inquilino. “A experiência vai agora dizer, depois da aprovação no Parlamento, como é que as coisas vão-se desenrolar na prática judiciária”.
Mobilidade
Para já não acredita que a proposta de lei vai facilitar a mobilidade dos cidadãos, um dos objectivos visados pelo presente diploma. “A mobilidade não depende apenas deste regime. Depende, em primeiro lugar, da existência de fogos para arrendamento; depende da cultura. Há ilhas onde há dificuldades em conseguir um arrendamento mesmo havendo casas. Por exemplo, na Boa Vista, as pessoas de Santiago que foram procurar trabalho não tiveram acesso às casas. Daí ter nascido um novo bairro. Na ilha de Santiago, há muita imigração para a Praia, mas como não há fogos disponíveis, as pessoas vão para a construção clandestina. Porque o problema da mobilidade tem sobretudo a ver com a capacidade de pagar a renda. Pode haver fogos, o senhorio coloca a renda que achar justa, mas se o inquilino não estiver de acordo com o preço, não arrenda”.
Na opinião deste jurista a questão da mobilidade tem que ser atacada não só com a lei do arrendamento, mas também com a parafiscalidade. “Como é que você quer mobilidade, como é que quer que um senhorio arrende a sua casa, se o Estado lhe tira 20 por cento da renda à cabeça. A fiscalidade tem influência no mercado imobiliário e na mobilidade. Portanto, muitas vezes os senhorios arrendam e não declaram ao fisco para não pagarem os 20 por cento. Portanto a parte fiscal não estimula a mobilidade”.
Um dos objectivos visados pelo presente diploma é o fomento do mercado de arrendamento para habitação. Para Simão Monteiro a presente proposta de lei é melhor que a vigente porque facilita mais, mas continua a ser restritiva. “O diploma vai dar o seu contributo de forma relevante para melhorar o mercado de arrendamento, porque a lei actual é muito restritiva, mas a própria proposta de lei continua restritiva”.