O Manel foi uma figura castiça, frequentador assíduo de grandes competições do xadrez em Portugal, realizadas nos anos setenta e princípio dos anos oitenta do século passado, e era através das suas histórias que eu vivia, intensamente, os grandes campeonatos portugueses, e outros eventos de xadrez realizados naquela época. Era através das suas histórias que eu conhecia e convivia com o Fernando Silva, com o Luís Santos, com o Durão, com o José Pereira dos Santos (a quem ele apelidava de “o inimigo”) e com o Álvaro Pereira.
Foi através dele, primeiro, e da imprensa, depois, que tomei conhecimento de um feito histórico em Portugal: o Álvaro Pereira tinha-se tornado recordista ibérico de xadrez às cegas.
Para os que não sabem, o xadrez às cegas consiste em jogar, geralmente com os olhos vendados, jogar com outro, ou com outros, sem ver o tabuleiro onde decorre o jogo.
Era também através das histórias do Martinho que eu ia tomando conhecimento das peças de teatro, das séries de televisão ou dos filmes em que o Álvaro Pereira ia participando e que eu teimava em não identificar, pelo motivo que à frente revelarei.
Como naquela altura já era jogador de xadrez por correspondência, também ia acompanhando os bravos desempenhos internacionais do Luís Santos e do Álvaro Pereira, naquela variante do jogo dos reis onde ambos atingiram o título de Grande Mestre.
Através das simultâneas que joguei, ou depois nas que organizei quando estive a “comandar” o xadrez na Câmara Municipal de Coruche (Portugal), fui conhecendo pessoalmente o Durão, o Fernando Silva, o José Pereira dos Santos e o Luís Santos, este último chegando a ser meu colega de equipa, e 1.º tabuleiro, numa das eliminatórias da Taça de Portugal de 2010, em representação do G. D. Diana de Évora que se sagrou campeão dessa mesma competição.
Acabei por conhecer e até conviver com alguns dos meus ídolos das histórias contadas pelo Martinho Lopes, à excepção do Álvaro Pereira, que só mais tarde me apercebi que para o teatro, para a televisão, para o cinema e para a literatura, era o Álvaro Faria, motivo pelo qual não o tinha identificado nos outros registos. Ou seja, temos um Álvaro, Pereira no xadrez e Faria nas artes cénicas e na literatura.
É claro que com as novas modernices, eu e o Álvaro Pereira já nos tínhamos tornado amigos numa das redes sociais existentes, mas continuávamos sem nos conhecer pessoalmente.
Quis o acaso que na edição de 2018 do Torneio Internacional da Figueira da Foz, onde eu fui um dos árbitros, o Álvaro estivesse presente na abertura, onde foi comemorado o seu feito de 1975: o record ibérico de xadrez às cegas.
É assim que, finalmente em Outubro passado, lá o conheci pessoalmente e pudemos conversar “tête a tête”.
Foram necessários mais de 40 anos, após ouvir as primeiras histórias contadas pelo saudoso Martinho Lopes (que partiu está a fazer precisamente um ano), para que conseguisse cumprimentar o herói, que me faltava conhecer pessoalmente, dessas hilariantes e bem torneadas narrativas.
Foi nesse encontro que vim a saber mais um pouco acerca do tal recorde ibérico, que decorreu no casino da Figueira da Foz em 1975, e que me foi contado pelo próprio:
“Fui desafiado pelo Simões Nunes, que era o presidente da Federação Portuguesa de Xadrez, a bater o recorde de xadrez às cegas que pertencia ao cubano, naturalizado espanhol, Francisco José Pérez Pérez. Eu já tinha dado algumas simultâneas às cegas, mas nunca com mais de 10 (ou talvez 12) tabuleiros.
Ele disse-me que o record ibérico era de 24 tabuleiros e perguntou-me se eu não queria tentar fazer 25. Com a arrogância da juventude, respondi-lhe que não se bate um record só por um, de modo que iria fazer com 26!
Ainda bem que tive esta arrogância, porque depois de terminada a simultânea viemos a descobrir que afinal o record era de 25 tabuleiros, pelo que acabei por bater o record só por um.”
Resta acrescentar que o resultado desta simultânea recorde foi de 14 vitórias, 11 empates e 1 derrota. Instado a lembrar-se de alguns jogadores seus adversários, Álvaro responde que “só me lembro do Luís Cadillon, porque éramos amigos e foi o único que me ganhou!”
É claro que aproveitei este nosso encontro na Figueira para colocar em dia, parte de 40 anos de conversa.
Mas o Álvaro, além do Pereira, também tinha trazido o Faria e com ele o seu último livro: “O sobrevivente”.
Já tinha conhecimento do lançamento da obra e era minha intenção adquiri-la, pelo que veio mesmo a calhar aquela sessão de autógrafos, onde cumpri a minha intenção.
“O sobrevivente”, não é um livro sobre xadrez ou a história de xadrez, mas uma obra que retrata um pouco do que foi a segunda metade do século passado, num Portugal cinzento e salazarento.
Daniel, que sobreviveu à gripe asiática quando era pequeno, foi ao longo dos anos sobrevivendo a outras maleitas da vida e, são as peripécias deste personagem, que partiu à procura de melhor vida e da aldeia que ficou, que vamos acompanhando ao longo deste romance, que comparo com as histórias do Germano Almeida, não em termos literários, que não é o meu campo, mas em intensidade e descrição da acção.
Aconselho vivamente a leitura deste livro, que nos arrebata de princípio ao fim, e que também tem uma breve referência a Cabo Verde, quando Daniel, já de partida para seu salto até Espanha, pergunta ao moleiro Anselmo:
- Onde é que esteve preso? No tal sítio perto do mar?
- Sim. No Tarrafal. Em Cabo Verde.
- É Portugal e não é Portugal.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 894 de16 de Janeiro de 2019.