Qual o papel do regulador na criação de um ecossistema virado para a inovação? Que regulação para áreas onde as mudanças acontecem de um dia para o outro? Como regular a indústria 4.0, cada vez mais multifuncional, conectada e imaterial? Que mudanças vai sentir Cabo Verde com a entrada do 4G e para quando o avanço para o 5G? Estas são alguns dos temas abordados nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.
O que é para si a regulação ideal?
No fundo, o objectivo do regulador é encontrar, em última instância, o equilíbrio entre a promoção da defesa dos legítimos interesses dos consumidores e a garantia da sustentabilidade dos operadores. Os operadores, de forma legítima, defendem os seus interesses, utilizam todos os mecanismos legais ao seu dispor para fazer isso. Os consumidores, também eles têm o direito de defender os seus interesses. O regulador tem o dever de promover a sustentabilidade dos operadores, para que possam investir, para que possam melhorar a qualidade do serviço que prestam, mas temos também de defender os interesses dos consumidores: queremos produtos a um preço mais acessível e com melhor qualidade. Portanto, o nosso trabalho é encontrar esse equilíbrio.
Caberá também ao regulador o lançamento de iniciativas favoráveis à competitividade. Claro que aqui há um papel político, um papel dos agentes empresariais, mas o regulador não pode também ser uma alavanca para o desempenho dos mercados?
Com certeza. Queremos um mercado concorrencial e a concorrência é fundamental. As nossas decisões regulatórias não visam proteger ou hostilizar este ou aquele operador, mas visam essencialmente o desenvolvimento do mercado. Para isso, é fundamental que tenhamos maior concorrência. Naturalmente, as nossas acções vão neste sentido. Por exemplo, no sector das telecomunicações muitas vezes fazemos estudos de mercado, identificamos o operador com poder significativo no mercado e impomos obrigações. Ao fazê-lo, estamos a trabalhar para que haja um equilíbrio de mercado.
Por falar em operadores, Cabo Verde tem dois, haverá espaço para mais? E mais operadores significa melhores serviços?
No sector das telecomunicações, principalmente da telefonia móvel, temos dois operadores. Temos um mercado muito pequeno, meio milhão de habitantes, como digo muitas vezes a brincar, corresponde à população de um bairro de uma cidade grande e temos, naturalmente, de olhar para a nossa regulação no contexto do nosso mercado. Há países, exponencialmente maiores, que não têm muitos operadores. Nós estamos num ambiente de dois operadores, poderá haver lugar para mais um, mas não diria que teríamos espaço para mais três ou quatro.
Temos em Cabo Verde a regulação independente, caso da ARME, e temos também a regulação que não é independente: o governo regula, as direcções gerais também fazem regulação.
Só fiz esta pergunta porque muitas vezes não é a dimensão de um mercado, nem mesmo a evolução tecnológica, que dita o interesse de um operador ou de uma multinacional. Às vezes tem a ver com as políticas para o sector. O governo tem referido muito os objectivos de ter cyberislands, ou de um país plataforma de serviços. As políticas têm sido direccionadas nesse sentido? E que papel pode ter aqui o regulador?
O regulador, como referi, protege os interesses dos consumidores, promove a sustentabilidade dos operadores, mas faz isso num quadro de alinhamento com as estratégias de desenvolvimento do país. Temos em Cabo Verde a regulação independente, caso da ARME, e temos também a regulação que não é independente: o governo regula, as direcções gerais também fazem regulação. Nós, enquanto entidade independente, somos independentes na nossa decisão regulatória, mas, repito, temos de estar alinhados com a estratégia de desenvolvimento do país. Obviamente, as nossas decisões regulatórias ao alinharem com essa estratégia de desenvolvimento, podem, naturalmente, contribuir para que possamos ter um maior desenvolvimento do sector. Por exemplo, penso que podemos desempenhar um papel importante na inovação. Falemos, por exemplo, da questão do espectro. Quando temos uma política de gestão de espectro que estimula a inovação isso traz um contributo importante para o desenvolvimento do sector. Quando falamos em transformar Cabo Verde num hub de conexões internacionais para a África Ocidental através de cabos de fibra óptica intercontinentais, a reguladora poderá desempenhar um papel importante, porque ela regula o mercado, estabelece as condições para que os operadores trabalhem neste mercado.
Por falar em operadores, ambos foram entrevistados na passada sexta-feira, e só duas notas sobre isso; o responsável da UNITEL referiu que só as tecnologias por si não transformam as sociedades, e o responsável da CVTelecom defendeu políticas fiscais para se conseguirem terminais mais baratos. Como é que o regulador vê estas opiniões dos operadores?
Como referi há pouco, os operadores, de forma legítima, defendem os seus interesses. Nós, também de forma legítima, procuramos o equilíbrio entre os interesses dos operadores e os interesses dos consumidores. Quando se fala em políticas fiscais e incentivos fiscais, naturalmente que estes são bem-vindos, na maioria dos casos, e trazem mais-valias. Se for esta a decisão, claro que há impactos, como tem custos. É sempre uma questão de equilíbrio. As tecnologias são fundamentais, mas é preciso todo um ecossistema para que tudo funcione bem. Para um país pequeno como Cabo Verde, sem recursos naturais, a aposta na inovação e nas tecnologias é fundamental. Agora, é preciso construir todo o ecossistema. Quando apostamos no ensino das tecnologias, quando apostamos no empreendedorismo tecnológico, estamos no bom caminho.
Ou seja, quando falamos na sociedade de informação, porque não basta ter um computador, é preciso saber usá-lo.
Exactamente. Tem de saber tirar proveito das potencialidades das máquinas.
Podemos ter um acesso à Internet de uma forma muito mais rápida, com maior largura de banda e com maior qualidade.
Por falar em tecnologia. Em Cabo Verde já começamos a falar em 5G, mas para já vai surgir o 4G. Qual é a grande diferença que as pessoas vão sentir em relação ao actual 3G?
Do ponto de vista teórico, o 4G é muito mais rápido. Pode ir, repito: pode, até 500 vezes mais rápido que o 3G. Portanto, uma das grandes diferenças tem a ver com a velocidade e com a largura de banda. Podemos ter um acesso à Internet de uma forma muito mais rápida, com maior largura de banda e com maior qualidade. Esta é a diferença fundamental em termos de conectividade. É por essa razão que estamos a promover o avanço deste processo. Como já publicitámos, em Julho havemos de conceder as licenças para os operadores começarem a disponibilizar estes serviços, mas já em Junho, no Sal, vamos ter 4G durante os Jogos Africanos de Praia. Agora, a conectividade por si só não é tudo, é o que vem com a conectividade que interessa. A conectividade é boa, mas temos de trabalhar para tirar melhor proveito dessa conectividade. Nós, em Cabo Verde, podemos e devemos trabalhar mais a produção de conteúdos locais, por exemplo, e conteúdos nacionais.
Mas isso tem a ver com a formação das pessoas.
Por isso falei há pouco na necessidade de criar todo um ecossistema e de haver uma estratégia para o sector. Recentemente aprovou-se a Estratégia Digital para o nosso país e isso é importante. Assim sabemos para onde queremos ir. Não podemos andar como canas agitadas pelo vento, movidas pelas circunstâncias, mas temos de ter uma visão clara de futuro.
Então, indo um pouco mais longe, sei que há já iniciativas para o 5G. Que estratégias estão a ser pensadas?
Temos de ter uma visão de futuro, não podemos pensar apenas no hoje. Hoje existem já dezenas de países com experiências no 5G ou que já lançaram o 5G. EM Cabo Verde estamos a começar agora o 4G, mas a nossa ideia é, quão breve quanto possível, termos uma experiência-piloto com o 5G. Naturalmente que a tecnologia ainda tem espaço para amadurecimento, mesmo em termos de padrões internacionais só no próximo ano, ao nível da União Internacional de Telecomunicações, é que teremos os padrões da UIT para esta área. Em termos de terminais, foi agora no Mobile World Congress, em Barcelona, que se lançou o primeiro terminal móvel 5G, os preços são ainda muito elevados, na ordem dos 2.000 dólares, mas é importante percebermos que o 5G não é apenas conectividade, é tudo o que vem por trás. Quando falamos em 5G estamos a falar em viaturas autónomas, em IoT [Internet of Things – Internet das Coisas], em indústrias com fabricação remota, ou seja, você está aqui e tem uma fábrica em São Vicente onde os seus robôs trabalham à distância, em termos de cuidados de saúde, podemos ter um médico aqui a realizar uma intervenção cirúrgica numa povoação remota. Ou seja, estamos a falar em serviços, no fundo. É por esta razão que queremos começar uma experiência-piloto com alguns parceiros. Estamos a conversar com os operadores, com os fornecedores de equipamentos, para vermos quando podemos começar. Queremos iniciar também no próximo mês de Junho um atelier/workshop sobre essa temática. Temos de acompanhar a tendência internacional no que diz respeito das TIC e estou a falar no quadro da regulação. é claro que, para isso, temos que trazer essas informações para Cabo Verde para podermos, no momento certo, tomar as decisões regulatórias necessárias.
As tecnologias mudam diariamente e a regulação não deverá ser um empecilho à inovação
Isso é interessante, a regulação para os novos tempos, onde falamos de transformações, praticamente diárias. Qual é a melhor solução: mais regulação, menos regulação? Uma regulação nova ou a adaptação da regulação que já existe?
Diria que precisamos de ter a dose certa de regulação. As tecnologias mudam diariamente e a regulação não deverá ser um empecilho à inovação. Veja-se a Internet das Coisas, com os smartphones, hoje em dia, tudo está interligado, você pode ter um frigorífico inteligente, uma máquina de lavar inteligente, pode fazer compras na Internet, pode ter uma rede de água inteligente que, se houver perdas, contacta a central para que esta possa mandar alguém, ora é preciso, numa primeira fase, haver alguma flexibilidade para dar espaço à inovação. E havendo necessidade de intervenção regulatória, devemos intervir de forma a não impedir a inovação. No fundo, é preciso regulação, mas no momento certo e em doses certas. É preciso muitas vezes deixar o mercado trabalhar, dar margem para a auto-regulação.
Ia perguntar-lhe isso mesmo, há margem para essa auto-regulação?
Às vezes sim.
Podemos confiar nos operadores para se auto-regularem?
Bom, naturalmente que estaremos vigilantes para garantir que as coisas acontecem de forma a, mais uma vez, defender os interesses dos consumidores e a sustentabilidade dos operadores.
Quais devem ser os limites da regulação?
Os limites são estes que tenho referido: os interesses dos consumidores têm de ser respeitados. Não podemos ter um contexto em que o mercado se auto-regula em detrimento dos consumidores, ou seja, tenham de pagar preços cada vez mais altos. As balizas são essas, consumidores por um lado, sustentabilidade dos operadores por outro, aliado à qualidade do serviço. E o nosso serviço é termos essa vigilância, sermos atalaias na torre para garantirmos que isso aconteça.
Há pouco interrompi-o quando estávamos a falar de como é regular neste ambiente cada vez mais multifuncional, mais interconectado e mais imaterial. Pensa que serão uma série de desafios?
Vou aproveitar essa questão para falar de regulação multissectorial. Hoje temos em Cabo Verde uma Agência Reguladora Multissectorial de Economia, e isso tem uma razão. Por exemplo, quando falamos das telecomunicações falamos da partilha de infra-estruturas e isso é muito importante. Hoje não precisamos de ter duas torres de telecomunicações, uma ao lado da outra, quando com uma resolve os problemas e as operadoras podem partilhá-la. O mesmo acontece no sector eléctrico, as redes de electricidade tem infra-estruturas que podem partilhar com os operadores de telecomunicações. Nós regulamos tanto o sector energético como as telecomunicações e é menos difícil para nós avançar com o processo de partilha porque regulamos ambos os intervenientes. Hoje vemos televisão na Internet, acedemos à Internet na televisão, são dois mundos que estão num processo de, diria, fusão. Por esta razão, a regulação multissectorial, atrevo-me a dizer, é a regulação do futuro, por que as várias áreas estão também a aproximar-se. Hoje, se olharmos para a nossa realidade, ao fazermos regulação multissectorial optimizamos recursos. Imagine que precisa de um economista para trabalhar nas tarifas de água, electricidade, saneamento, apenas um pode trabalhar nessas várias áreas, se tiver agências distintas, precisa de um economista para cada uma delas. A regulação multissectorial não é nova em Cabo Verde, já tivemos nos anos 90, não é nova em África, não é nova na Europa, portanto, é a regulação do futuro.
A regulação para a área da conectividade.
(risos) Exactamente.
As coisas funcionam melhor quando encontramos um mecanismo através do qual conseguimos um nível aceitável de segurança e ao mesmo tempo garantimos a privacidade dos cidadãos
Qualquer discussão sobre tecnologia é também uma reflexão sobre o poder. Na sua opinião, quais serão os caminhos do futuro: mais Estado ou menos Estado? Privacidade ou segurança? Crescimento económico ou partilha de rendimentos?
É preciso encontrarmos o equilíbrio. Falou em segurança e privacidade, acho que a garantia da segurança não deverá ser razão para pormos em causa os princípios básicos de privacidade a que temos direito enquanto cidadãos. As coisas funcionam melhor quando encontramos um mecanismo através do qual conseguimos um nível aceitável de segurança e ao mesmo tempo garantimos a privacidade dos cidadãos. Obviamente, a nossa privacidade também não pode pôr em causa os princípios básicos da segurança. Como lhe disse, é preciso equilíbrio.
Só lhe pergunto isto porque estas são as reflexões de qualquer regulador, as agências não existem apenas para subir e baixar preços, há todo este papel. Mesmo no caso dos cidadãos, muitas vezes reduzidos à posição de meros consumidores, que não percebem o que está a acontecer – ou não querem perceber – como disse o Tim Cook: “se algo é gratuito no mundo virtual, provavelmente o produto é o próprio utilizador”. Ou seja, o papel do regulador também pode ser o de proteger o consumidor de si próprio?
Acho que sim. É por essa razão que na ARME queremos uma regulação de proximidade, queremos ouvir e falar com o consumidor, informar o consumidor sobre os seus direitos, os seus deveres e também sobre os riscos que corre. Porquê? Por que quando os consumidores utilizam a Internet e disponibilizam informações sensíveis sobre a sua vida pessoal, temos de proteger, de facto, os consumidores de si próprios, porque algumas acções podem pôr em causa a sua privacidade e a própria segurança. Temos de ensinar, por exemplo, que as crianças não devem falar com estranhos nas redes sociais. Isso consegue-se com boas campanhas de sensibilização e de informação dos consumidores.
Temos estado a falar das novas tecnologias – IoT, indústria 4.0 – não falámos ainda de Big Data, mas vai provocar uma maior assimetria da informação detida pelas empresas e pelos cidadãos. O cidadão, cada vez mais, vai deixar de fazer escolhas racionais e soberanas e passa a ser influenciado pelas companhias que conseguem direccionar produtos específicos para necessidades que, por vezes, nem sabíamos que tínhamos. O regulador tem de se actualizar para enfrentar estes desafios?
Participei há dois meses num debate sobre esta questão. Algumas pessoas diziam saber que disponibilizam os seus dados para os grandes oligopólios, mas em troca recebiam mais-valias, como recomendações úteis que são úteis e algumas pessoas não se importam com isso. Outras, consideram que as suas informações são confidenciais e não aceitam partilhá-las. Mais uma vez, é uma questão de equilíbrio. Quando usamos serviços como o Google, Yahoo, Facebook, etc., pode parecer-nos gratuito, mas estamos a pagá-los com os nossos dados, é assim que eles conseguem fazer dinheiro. Temos é de estar conscientes disso e tomar a decisão do que queremos e não queremos partilhar. Importante é estarmos informados.
Ou seja, tecnologia para aumentar a autonomia dos cidadãos e não para os tornar cada vez mais passivos.
Claro. Se a decisão couber ao consumidor, de forma consciente, sabendo os riscos e as mais-valias, a satisfação será maior. O nosso papel é ajudarmos o cidadão a estar mais informado.
Uma última questão: as indústrias não precisam de ser éticas, mas precisam de ser reguladas?
É uma afirmação forte. Não sei se falaria nesses termos, porque para mim os princípios éticos são importantes. Agora, o que não devemos fazer é estabelecer demasiadas barreiras à inovação. Veja o caso do Google: querem inovar? Muito bem, não pensem nos constrangimentos, tenha a sua mente aberta para criar. Depois analisaremos os problemas. Portanto, na fase inicial não devemos colocar demasiado freio à inovação, vamos deixar que as pessoas tenham ideias, se houver necessidade de regulação, lá estaremos para intervir.
No fundo, se há alguém com alguma ideia que não sabe ainda se a pode por em prática ou não, por que não sabe se a regulação permite ou não, primeiro deve deixar-se que ele faça.
Exactamente. Deixemo-lo trabalhar, deixemo-lo criar. Obviamente, se for um produto capaz de matar alguém, ou para enganar as pessoas, alto lá, temos de ter cuidado. Mas primeiro permitir a criação, depois ver se é preciso regular.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 912 de 22 de Maio de 2019.