Meandros duma transição

PorSilvino de Oliveira Lima,22 nov 2021 8:12

Engenheiro Civil – antigo Ministro das Obras Públicas
Engenheiro Civil – antigo Ministro das Obras Públicas

Ano corre outubro passa, a história do mês que tanto dificultou o pão-de-cada-dia ao cabo-verdiano já não mete medo – transmuda generoso no chão das ilhas o quadro das estiagens: foco no céu virado para o mar; espetro de razia humana desfeito; opróbrio de barriga inchada feito sumiço; reencontrado sorriso perdido no disforme de rostos.

Milagre dum processo de séculos? Triunfo da dignidade e decência sobre a mesquinhez dum tempo que pouco mais que pedra oferecia para suster vida? Ou profunda penetração na alma cabo-verdiana do sacro crescer-multiplicar fosse esse dual de verdade projetar-se nos feitos da independência e liberdade democrática? Bem que se tenha ido nessa direção. Já por isso, fosse dado escolher primado na avaliação do secular percurso, optaria pela dimensão humana, sem menosprezo doutras, porque estaria a ajuizar sobre a singularidade desta nação, progresso e abrolhos da história interligados, resistência e ambição no modo ``quem te viu quem te vê ´´, povo a questionar-se qual sobrevivente ímpar, herói no campo identitário, trunfo poderoso na barganha dos negócios do estado.

Tanto já não mete medo o velho fantasma que em plena crise de mortífera pandemia e persistente seca outubro deste ano veio a confirmá-lo fechando com chave de ouro o ciclo eleitoral a três tempos, as presidenciais, afortunadamente, muito concorridas. Contudo, não poderá fazer-se do apagar do medo a ausência de risco. Já da afluência de candidatos e elevada abstenção ao voto percebe-se significado diferente: ``navegação´´ sob ameaça de tropeçar nos escolhos; sombra na perspetiva de porto seguro; ânsia de assegurar o leme, evitar o pior; expetativas não correspondidas fazendo da abstenção um protesto. A perceção de risco espelha-se ainda no cardápio das promessas, porventura, uma muito cara aos dois candidatos mais votados decorrente de sua longa experiência governativa: humildade face aos desafios após terem aprendido com os erros. Certíssimo. Sem semelhante sensibilidade, Mandela não se projetaria com sua política de verdade e reconciliação para se agigantar na história; tão-pouco Willy Brandt, obcecado com a credibilização da palavra, não teria surpreendido o mundo postado de joelhos no gueto de Varsóvia pedindo perdão pelos excessos bárbaros do nazismo e tornar-se outro gigante para promover o milagre económico alemão. Cá por este lado, também, não deixa de ser razoável encontrar no heroísmo da nação a legítima expetativa de ver brotar do solo cabo-verdiano o génio que saberá conjugar milagre económico com o verbo do desenvolvimento.

Projetar o génio para esse feito é uma necessidade, sobretudo nestes tempos de rotura climática global que ameaça colapsar a sobrevivência no planeta se nada em escala adequada se fizer para travar o fenómeno. E bastante razão tem Cabo Verde para estar particularmente preocupado: Num lado, alongamento das secas que transtorna o equilíbrio ecológico, seca nascentes, lençóis freáticos, fatores que agravam os movimentos populacionais indesejáveis, propósito, minoração da inquietação; noutro lado, prolongada ausência das grandes cheias, ingénua ousadia a manifestar-se nas gerações mais jovens assentando habitação em espaços que foram sempre território das cheias, ladeiras, palco dos grandes deslizamentos de terra. E então pergunta-se: que acontecerá se a grande tempestade ressurja de modo a espraiar o infortúnio por estas dez ilhas? Portanto, uma mudança radical se impõe para dar combate às raízes do fenómeno, mais e mais ação, mais e mais rigor lá onde há constrangimentos locais que impedem a fixação de suas populações, consequentemente, condições concordes com as expetativas da nação. Como fazer?

Sorte é que no atual contexto tecnológico o problema do sucesso já é mais questão da intensidade de foco que de potencial. É que este já existe efetivamente. Basta ver: mar para produzir água para todos os usos; privilegiada exposição a vento e sol para que não mais seja grande problema a questão energética; potencial humano sedimentando abundante capacidade qualificada e oferecendo promissor futuro de industrialização. Ora, um país assim nada tem a queixar-se de falta de ``asas´´ para voar. Quando muito, queixar-se de miradas defeituosas que poderão concorrer para o desacerto de alvos, comprometer a eficácia dos ``voos´´. Daí – mais uma vez vindo ao de cima a humildade plasmada no cardápio das promessas –, só há que refletir, redirecionar os movimentos, corrigir os desacertos. Parece esse o caminho que os gigantes da história indicariam, a via que poderá levar ao tão desejado milagre económico.

Uma abordagem sustentável exigiria o equilíbrio da geografia populacional onde os movimentos denunciam mal-estar, demanda de resguardo cujas consequências estão continuamente a superar a capacidade de as solucionar em tempo, talvez um dos maiores problemas que o país vem enfrentando. Radica num conceito muito mitigado do que deveria ser o ordenamento do território para fazer a transição, de país alicerçado em base frágil, fatores climatéricos muito contingentes, para um estádio em que não só a sustentabilidade já seria garantida como asseguradas as melhores facilidades para corresponder ao padrão de vida que almeja o cabo-verdiano. Dito doutro modo: transição dum estádio dependente de bónus incerto e descontinuado vindo do céu para outro onde a bonificação se espera segura, perene, e agora vinda do mar. Para que isso aconteça da forma mais proficiente, desde logo se exigiria ações cirúrgicas na morfologia rochosa de determinados pontos das faixas do litoral de algumas ilhas, e o problema da circulação de pessoas e bens já se resolveria nas condições mais propícias para um Cabo Verde moderno, próspero, sustentável.

É tendo em vista tal propósito, que o ordenamento das ditas faixas, a começar pela correção das barbelas rochosas que constrangem a circulação, estaria a minorar o grande desnível de vantagens competitivas entre aquelas ilhas mais acidentadas e as mais planas, Sal, Boavista, Maio, pujantes na economia turística, atrativas para os movimentos humanos, consequentemente, suscetíveis de asfixia populacional. Daí que um bom ordenamento lá onde há constrangimento, acaba sempre por favorecer não só a região origem como também o destino daqueles movimentos. É um facto. Adiar a intervenção nessa nova frente de progresso é perpetuar uma situação insustentável, insistir numa fuga em frente que concentra maior foco na exploração do interior que, como se vê, desafia a insustentabilidade – resultados questionáveis – em detrimento do redesenho territorial que caucione a boa transição para o patamar económico desejado. Campo imenso para muita reflexão. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1042 de 17 de Novembro de 2021.

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Autoria:Silvino de Oliveira Lima,22 nov 2021 8:12

Editado porAndre Amaral  em  24 ago 2022 23:28

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