Uma frustração das esperanças que ainda se agrava com a intensificação dos fenómenos da perturbação global do clima, seres humanos aos milhões e milhões flagelados por todo o planeta. Estarão as grandes lideranças à altura das grandes medidas? De várias partes do mundo a resposta que vem é das ruas, gente de todas as idades aos milhares mostrando sua indignação, as soluções – ou a falta delas – provocando reações nem sempre contidas nos limites da tolerância. Noutro quadro o que ainda se vê é desespero das grandes correntes migratórias, reflexo do atual contexto geopolítico não menos perturbado, `os velhos senhores´ a gula os empurrando para os velhos métodos, ganhar, ganhar sempre, nem que as consequências lhes caiam em cima, como acontece com a complicação que passou a envolver as mais recentes correntes vindas das regiões desestabilizadas à procura de resguardo nas pátrias tidas de liberdade, solidariedade, leite e mel em abundância.
Preocupa sobremaneira que para barrar os fluxos na fronteira daqueles destinos começaram a surgir muros já dum tipo diferente do de Berlim, muito mais perigoso, não só pela sua rápida propagação mas pela facilidade de se encapotar de virtude para driblar devidas medidas, quando aquele, sem tais defeitos, pôde resolver-se sob muita festa. Sintoma dum mundo em ascendente complexidade ou uma democracia que já só se vende para o exterior? A resposta já é dos politólogos. De todo o modo, não deixa de ser curioso observar que enquanto muro de fronteira no ocidente já é banalização, no oriente é cultura, ou não seria exemplo inequívoco a milenar muralha chinesa vista como uma das maiores maravilhas do mundo. É um facto. Naquelas latitudes cultura assume-se como base do desenvolvimento, o que se percebe através de duas grandes revoluções culturais: a de Mao, rampa de lançamento para a projeção do milagre económico chinês protagonizado por Deng Chiao Ping; a iraniana, trampolim para o grande avanço tecnológico do Irão da atualidade.
Estaria na mesma linha o sentido cultural de Baltazar Lopes da Silva que batia apaixonadamente na tecla da identidade cabo-verdiana? Certamente. Com devida reserva de na época o principal foco se centrar na emancipação política, a verdadeira grandeza do problema cultural só se revelando já em plena soberania, com a surpresa de permanecer forte o fantasma `pobre coitado´, obstáculo bem pesado na projeção da economia. Mesmo já no estado social com a quase generalização de tudo: comida, saúde, esperança de vida, veste digna de pés à cabeça, prenda abundante, é notório: resiste com toda a força o fantasma. Talvez devido à pouca importância que a história das ilhas vem merecendo, as gerações mais novas sem poderem ter uma visão correta dos abrolhos do caminho percorrido pela nação, uma referência para que possam ajuizar o valor das coisas de hoje, consequentemente, pouca possibilidade de uma atitude consentânea com a perspetiva da projeção do futuro. Percebe-se então como é fundamental o combate nessa vertente, não venha outro meio século perpetuar reciclagem de ajuda pública ao desenvolvimento, as virtudes escondendo o lado mau, fragilização da soberania, freio na progressão da economia.
Contudo, é facto relevante a fortuna de introduzir na semântica do capítulo económico duas expressões geniais: economia azul, economia verde. Estará na junção das belas o verdadeiro bojão dos milagres para elevar o arquipélago à condição de grande país? Só o extenso mar que enforma sua geografia já dá corpo à perspetiva dessa condição, o que ainda se reforça com a distribuição do território por dez ilhas, nunca maldição, antes bênção, seja em matéria de custo de transporte, seja por proporcionar vasta extensão de orla marítima, interface das duas economias, campo imenso para o estabelecimento das atividades potenciadoras do grande salto. É na vasta extensão dessa orla que poderá estar a `terra prometida´ do sonho de grandeza da nação cabo-verdiana, exigidos os seguintes princípios: primeiro, que a disparidade de vantagens competitivas entre as ilhas resulta, grandemente, da morfologia de suas orlas marítimas – alto padrão, Sal, Boavista, Maio; segundo, que é fundamental a aproximação com o alto padrão minorando as discrepâncias; terceiro, que uma intervenção pertinente nas morfologias litorâneas abre campo para a diversificação da economia, reequilíbrio dos movimentos migratórios, emprego para sucessivas gerações, a enésima podendo lograr do concreto, o grande salto, colher dele os proveitos.
A intervenção com obediência a tais princípios exige equação que leve em linha de conta as preocupações que mais pesam na transição económica: ordenamento litorâneo para promover migração interna, receber o extravaso de população vindo de áreas rurais problemáticas; urbanização controlada que descomprima os ecossistemas rurais em declínio; base segura para a habitação prevenindo a incidência de fenómenos potenciadores de desastres humanos; devido aproveitamento das atuais facilidades tecnológicas, impacto na mitigação das secas e expansão da economia verde; projetos de grande relevância compatíveis com a generalização do emprego sustentável. Factível? Nada a objetar. No entanto, implica seguir o caminho que outras nações já percorreram com sucesso, revisão profunda no campo cultural, primordial para as condições que conjugam a alta ambição com o grande salto.
Para além disso, a transição para uma economia forte e sustentável precisaria resolver a questão da atração de capital estrangeiro para as ilhas ainda fora da categoria do alto padrão litorâneo, até hoje um grande problema que decorre de óbvia falta de condições objetivas para a produtividade dos investimentos, custo do trabalho e ausência de boas ideias de projeto talvez os maiores obstáculos. É lacuna a colmatar através de foco centrado na aproximação ao alto padrão, um bom ordenamento implicando redesenho seletivo de formações rochosas, tendo em vista caucionar espaço para grandes projetos, atração para o grande investidor. O que já estaria a proporcionar: por um lado, espaço seguro, zona alta, para uma paisagística habitacional, fotovoltaica, eólica, devidamente enquadrada; por outro, zona baixa a conquistar ao mar através da arrumação de todo o material proveniente da intervenção na parte rochosa, em alguns casos os resultados podendo ser surpreendentes.
Portando, é fundamental que cada ilha se disponha a encontrar os seus melhores achados para promover muito e muito trabalho em ambiente, dentro do possível, já expurgado da influência do velho fantasma.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1047 de 22 de Dezembro de 2021.