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Ninguém ganha com a transmissão directa das sessões do parlamento

PorHumberto Cardoso19 mai 2025 11:12

Na semana passada a Rádio Pública comunicou à Assembleia Nacional que não continuaria a “transmitir as sessões parlamentares nos moldes habituais”. Aparentemente em unanimidade os deputados condenaram a decisão e houve quem questionasse se a RCV estaria a incumprir com as suas obrigações na prestação do serviço público. A direcção da RCV justificou a sua decisão com a necessidade de maior eficácia na cobertura e de optimização da utilização dos tempos da rádio no quadro de uma programação mais diversificada.

Os argumentos avançados posteriormente em vários canais ressuscitaram as questões de sempre quanto à censura e à independência editorial dos serviços públicos de comunicação social, não obstante dias antes os Repórteres sem Fronteiras terem em mais um relatório apontado a autocensura dos jornalistas como o maior problema dos médias em Cabo Verde. Esse facto devia ser um convite para se encarar o assunto numa outra perspectiva que provavelmente iria demonstrar que com o fim das transmissões dos trabalhos parlamentares há mais ganhos do que perdas para o parlamento, para os deputados, para a rádio, para o público e para a democracia.

O costume da rádio transmitir sessões de trabalho vem dos tempos da Assembleia Nacional Popular que, como uma instituição de um regime de partido único, era uma assembleia monopartidária. Fazia naturalmente parte do sistema de propaganda do próprio regime e em geral não permitia intermediação jornalística na radiofusão dos trabalhos dos deputados. Com o advento da democracia, o costume manteve-se, mas agora num ambiente pluripartidário marcado pelo exercício do contraditório e naturalmente pelo surgimento do discurso político crispado entre as partes.

Daí foi um passo para, perante qualquer tentativa da rádio de alterar o formato da transmissão dos trabalhos, se ouvir reclamações de censura ou de tratamento privilegiado. Esse impedimento manteve-se mesmo quando se tornou evidente que a excessiva exposição do parlamento com a radiofusão de todos os seus trabalhos não era benéfica para a imagem do parlamento, para a produtividade dos trabalhos parlamentares e para a própria democracia ainda nos seus primórdios e com uma cultura institucional incipiente.

Na generalidade das democracias representativas, o parlamento nos seus primeiros passos procurou rodear-se de um certo recato para que a função de representação fosse exercida efectivamente e não se reduzisse ao papel de transmissor de recados ou de porta voz de interesses particulares. Afinal, há proibição do mandato imperativo. Só há relativamente pouco tempo que os parlamentos se abriram para transmissões directas, mas através de canais próprios da rádio e da televisão e recentemente pela via do streaming.

É verdade que as sessões dos parlamentos democráticos são públicas e como tal têm que ser acessíveis para quem as queiram seguir ou procure ter o registo dos trabalhos nos diferentes formatos. Para garantir isso no parlamento cabo-verdiano, há vários anos que se vem investindo em canais audiovisuais próprios. Actualmente também pode-se seguir os trabalhos parlamentares via internet e redes sociais. Consequentemente, há muito que deixou de fazer sentido monopolizar a rádio pública durante horas a fio a transmitir as sessões em nome da publicidade dos trabalhos parlamentares. Nem é eficaz, considerando que em democracia é difícil manter audiências cativas porque os ouvintes têm escolha de rádios e de conteúdos.

A insistência em continuar as transmissões teve e vai continuar a ter consequências ao nível da percepção pública do parlamento, da forma como os deputados e os grupos parlamentares vão desempenhar o seu papel como legisladores e fiscalizadores do governo e da produtividade e eficácia que se pode esperar dos trabalhos parlamentares. Em relação à imagem da instituição é visível a degradação aos olhos do público, em parte por conta da tendência geral das democracias em avaliar negativamente o parlamento, mas numa parte significativa devido à crispação política que a transmissão em directo na rádio enfatiza e personaliza. Numa espécie de feedback positivo a reacção do publico a seguir em directo os trabalhos acaba por exacerbar os ânimos e a afectar negativamente a produtividade dos mesmos, tanto em matéria de tempo consumido, como do nível do discurso político e da possibilidade de se chegar a compromissos na efectivação do interesse geral.

Um outro efeito da excessiva exposição dos deputados via rádio é a opção por uma postura mais performativa e individual que, com prejuízo para os trabalhos, acaba por afectar a coesão, a estratégia e a capacidade negocial do grupo parlamentar no diálogo com os adversários políticos. Ao longo do tempo tende a multiplicar-se o número de deputados a intervir sem uma preocupação de grupo, mas com o objectivo de atingir o eleitorado do seu círculo eleitoral como se as eleições fossem uninominais e não por listas plurinominais propostas pelos partidos. Daí a insistência em assoberbar o parlamento e em confrontar adversários e o governo com questões próprias das câmaras municipais.

Só que isso prejudica a democracia. Ao pôr em causa princípios como lealdade institucional que, no caso, tem na sua base o respeito pelas competências dos órgãos eleitos e a autonomia do poder local, pode-se estar a dar espaço e legitimidade para o surgimento de contrapoderes em vez de se ter um sistema político equilibrado com os seus checks and balances. Há que conter a tentação de usar tácticas políticas, a lembrar passados revolucionários, de criação de poderes paralelos para esvaziar os legítimos, diminuir a transparência no exercício no poder e retirar a possibilidade de diálogo que leva à paz social. Candidatos ao papel de contrapoder, posicionando-se acima do sistema democrático, parece que não faltam.

O imbróglio com a RCV suscita uma outra questão que tem a ver com o posicionamento hegemónico da rádio pública no espaço mediático do país. Aliás, é devido a essa posição que é atacada por uns e outros e que vê uma sua decisão unanimemente contestada pelos deputados. Mas é uma situação anómala que, se até agora não foi alterada, não parece que vá acontecer num futuro próximo, independentemente de que partido governa. Por essa razão, uma especial responsabilidade devia recair sobre a direcção da rádio e os jornalistas no sentido de com isenção assegurar a expressão e o confronto das ideias das diversas correntes de opinião.

Podia-se já com a nova cobertura do parlamento investir numa equipa jornalística conhecedora dos procedimentos, da história e das matérias em discussão para fazer a intermediação certa com o público e elevar a outro nível a informação sobre os trabalhos no plenário da Assembleia Nacional No outro pomo de discórdia pública, que é o comentário na rádio e na televisão, devia-se investir na contratação de comentadores capazes de exprimir opiniões diversas que garantissem o pluralismo de ideias e evitasse a nota monocórdia em questões importantes que várias vezes tende a prevalecer. Há um problema com os recursos, mas sabe-se que são sempre escassos e por isso deve-se estabelecer prioridades. Para órgãos que tem obrigação de mostrar pluralismo interno, o investimento em assegurar isso a todo o momento devia ser prioritário.

Da minicrise que resultou da decisão em alterar a cobertura do parlamento pela rádio pública pode ter surgido a oportunidade de, por um lado, levar a Assembleia Nacional a evoluir da condição de um “parlamento de plenário” para um parlamento onde o grosso do trabalho é feito nas comissões especializadas, como acontece em todos os parlamentos maduros. Para a RTC pode ser o momento para alocar recursos de forma a cumprir com a sua missão constitucionalmente estabelecida de contribuir para o dialogo plural, informativo e esclarecedor com foco no interesse público. Se assim for o país saíra a ganhar desta disputa.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.

PorHumberto Cardoso19 mai 2025 11:12