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Liberdade e democracia garantem terreno seguro para construir prosperidade e combater a pobreza

PorHumberto Cardoso2 jun 2025 17:39

Já está a compor-se o panorama para o confronto político nas legislativas no segundo trimestre de 2026. No domingo, 25 de Maio, Francisco Carvalho, actual presidente da câmara municipal da Praia foi eleito presidente do PAICV e certamente que será o candidato a primeiro-ministro. Do lado do MpD, ficou decidido numa reunião da direcção nacional, em Janeiro último, que o actual primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva procurará um terceiro mandato. Considerando a conjuntura mundial de grandes incertezas e o ambiente politico nacional de crescente polarização e de perda de confiança nas instituições, provavelmente vai-se ter nessas eleições um embate mais crispado, menos sintonizado com o futuro e potencialmente desafiante dos fundamentos do próprio regime democrático.

As democracias vivem actualmente um momento único. Uma das razões para isso é o progressivo colapso do centro político e dos partidos tradicionais, que são os pilares do sistema constitucional, e a emergência em simultâneo de forças políticas nos extremos. Com a ascensão de forças anti-sistema, deixa de existir diálogo entre visões e estratégias de futuro a partir de uma base consensual comum para passar ao confronto político permanente e, a partir daí, à degradação do Estado de Direito e à erosão dos direitos fundamentais. É um processo visível em várias democracias onde há claros sinais de uma deriva iliberal com o enfraquecimento dos checks and balance do sistema político, a demonização dos media e a contestação do poder judicial.

Não estranha que algo similar aconteça em Cabo Verde tendo em conta que na actual conjuntura factores presentes em países democráticos favorecem o sentimento anti-sistema entre indivíduos e grupos. Normalmente difuso, esse sentimento, quando mobilizado e conjugado com a tentação populista que culpa elites, promove a desconfiança nas instituições e alimenta a desesperança, pode lançar um partido numa espiral ascendente e eventualmente até à posição de principal força política de oposição. Já aconteceu em vários países, recentemente em Portugal com o Chega, pouco antes na Alemanha com a AfD, anteriormente na América pela via da captura do partido republicano por Trump e os seus apoiantes.

É evidente que isso não acontece sem que haja resistência das outras forças políticas quando se trata de um novo partido ou de resistência interna nos casos de captura. Assim, há partidos que são deixados isolados por cercas sanitárias que lhes são impostas ou impedidos de entrar em coligação por linhas vermelhas estabelecidas pelos partidos institucionais. O processo de captura de um partido já é mais complexo e mais duro. Primeiro, conforme o ambiente encontrado, há que seduzir, aliciar e intrigar para conseguir posições de influência e controlo futuro dos lugares no partido. Conquistado, porém, um lugar sólido de poder, passa-se para a fase seguinte quando as eleições se aproximam e com elas vem “o cheiro do poder”. Aí desaparecem as resistências e a corrida para se colocar à frente e alinhar com quem mais promete sobrepõe-se a qualquer espírito crítico e a quaisquer lealdades passadas.

A disputa de liderança no PAICV tem sido vista por vários observadores como exemplo de um processo de captura de um partido. Realmente, vê-se isso pelo momento e a forma como foi anunciada a pretensão do presidente da câmara da Praia, logo que foi reeleito, em ser líder do partido e candidato a primeiro-ministro. Percebe-se que o então líder não tinha outra saída perante o que configurava um golpe de força. Também não se pode deixar de notar que as três candidaturas que se seguiram aparentemente compartilhavam da mesma motivação de impedir que uma espécie de “hostile takeover” do partido se concretizasse.

O facto de a corrida pela liderança ter sido resolvida de forma democrática com uma maioria sólida para o vencedor não impede que se olhe para todo o processo com a devida atenção e se verifique se, de facto, um partido do arco do poder em Cabo Verde foi capturado por uma liderança populista com tentações anti-sistema. Os incidentes à volta do pagamento de quotas, que estão na origem do adiamento das eleições internas, e o questionar da integridade do banco de dados dos militantes fazem lembrar as encenações provocatórias de outras paragens onde que quem as inicia tem a arte de se apresentar depois como vítima. Aliás, nas autárquicas de 2024 foram feitas acusações sobre o plano que envolvia a NOSi na alteração dos resultados eleitorais que depois se esfumaram a seguir às eleições. Se se continuar a seguir pelo mesmo “playbook” pode-se já prever novas denúncias nas vésperas das eleições legislativas.

A prática de pôr em cheque as instituições, de contornar, senão de violar, os procedimentos democráticos e de ultrapassar no exercício do poder as competências estabelecidas na lei favorece o populismo. Parece dar razão aos populistas que insistem em passar a ideia que a democracia é um jogo de cartas marcadas em que só as “elites” ganham. O “povo” ganha se confiar no seu líder que é autêntico e realmente o representa. Com isso, está-se a dizer às pessoas que a democracia não funciona, que não se pode acreditar no Estado de Direito, que política e políticos significam corrupção e que a solução para os problemas é mais simples do que parece e está á mão se for seguida a liderança do chefe. Não é à toa que nas democracias se procura evitar que tais forças populistas, que postulam uma divisão entre o “nós” e os “outros”, assumam as rédeas do poder.

Para não correr esse risco e considerando o papel central dos partidos no sistema político democrático, é do interesse geral que os seus processos internos sejam seguidos pelos cidadãos, particularmente nos momentos de escolha dos líderes. Realmente, é da capacidade dos partidos poderem representar o povo na pluralidade de opiniões e na diversidade de seus interesses que depende a qualidade do diálogo, essencial para a definição, execução e fiscalização de políticas com vista ao bem geral.

Também é do comprometimento dos partidos com as regras do jogo democrático que se assegura que, se erros forem cometidos e opções de política não se revelarem as melhores, há sempre a possibilidade de alternativas. Se, porém, se permitir que desvios sejam introduzidos no sistema político e que os procedimentos democráticos deixem de ser respeitados, a possibilidade de mudar de rumo, de corrigir erros e de acelerar o desenvolvimento com inovações e novas práticas pode ser seriamente comprometida.

Nestes tempos de grandes perigos para a democracia, a liberdade deve ser acompanhada de um sentido agudo de responsabilidade para a manutenção das condições necessárias ao seu pleno exercício, em particular a segurança e a ordem pública. Nas próximas legislativas poderão vir confrontar-se pela primeira vez, depois do 13 de Janeiro de 1991, forças comprometidas com a democracia liberal e constitucional e forças assumidamente populistas.

É fundamental, para preservar a base da prosperidade criada a partir dos anos noventa, e a capacidade de a elevar a um outro patamar e construir um futuro para todos, que não se continue a cavar o fosso entre as pessoas. E que não se promova a cultura do individualismo, do cinismo e da irresponsabilidade de quem tudo quer ou tudo promete sem a preocupação se é exequível, se compromete o futuro e se não aumenta a frustração e a desesperança. Uma coisa é certa: nos tempos difíceis que correm não é de pôr em risco o terreno seguro para construir a prosperidade e combater a pobreza que só a liberdade e a democracia garantem.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1226 de 28 de Maio de 2025.

PorHumberto Cardoso2 jun 2025 17:39