José Luiz Tavares: “Paraíso apagado” foi um “trovão” no céu da literatura cabo-verdiana

PorAntónio Monteiro,3 jul 2010 23:00

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Se já nos habituamos à voz peculiar da poética de José Luiz Tavares suportada por uma imagética intensa e original, aos poucos vai-se-nos tornando também familiar o discurso frontal e sem compromisso do cidadão José Luís Tavares, que grafa com (s) para se diferenciar do poeta. Referindo-se à terceira edição bilingue do livro "Paraíso apagado por um trovão" que será apresentado este fim-de-semana na Assomada, Tavares afirma, em termos superlativos: "Penso que este livro, que foi um trovão aquando da sua primeira publicação, poderá vir a marcar o campo da literatura em língua caboverdiana, quanto mais não seja por ser o primeiro livro do nosso cânone literário a ser publicado nas duas línguas nossas". E sobre o prémio literário que venceu recentemente na Espanha: "Tenho a consciência (se calhar demasiada) de que tenho levado duma forma consistente e meritória o nome e a literatura do meu país a muitos espaços geográficos e culturais onde quase nenhum escritor tinha chegado individualmente". Daí também não surpreender a afirmação de que, na tradução do presente livro para o caboverdiano, não seguiu a via dos seus predecessores, "pois eu faço o meu próprio caminho". Morto Samarago, perguntamos ao poeta quem será o próximo Nobel da língua portuguesa. "Vou telefonar aos velhinhos da academia sueca. Espero que não se esqueçam desses nossos grandes talentos indígenas que povoam a bloga e as caixas dos comentários"

Porquê o próprio autor a traduzir um livro seu do português para a língua cabo-verdiana?
José Luíz Tavares - A tradução deste livro vem na sequência de um conjunto de trabalhos que tenho realizado neste domínio e que inclui autores das mais diversas proveniências, estando neste momento concluídos 80 sonetos de Camões, uma antologia de poemas do Álvaro de Campos, incluindo todas as grandes odes, e morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto. Assim que houver oportunidade passarei a autores clássicos doutras línguas, e também a autores clássicos caboverdianos. Este trabalho vem na linha do entendimento que tenho, segundo o qual um cânone literário em língua caboverdiana poderá constituir-se quer por via da criação originária, quer por via da tradução, que poderá colocar ao alcance dos executantes um material que poderá revelar-se o manancial ou o húmus donde poderão irromper poéticas e linguagens configuradoras do salto qualitativo, longe da modalização, quase toda ela de raiz popular, que percorre a escrita literária em língua caboverdiana.

Quer isto dizer que Kaká Barboza e Danny Spínola estarão a poetar no deserto?
Há muitas definições de literatura, mas eu partilho especialmente essa que a entende como um corte abrupto com a fala (comum ou pragmática). É dessa espécie de abismo, desse abalo que os formalistas russos convencionaram chamar estranhamento, que ela nasce. Em relação aos nomes que citas, entendo que, ao lado de alguns outros, têm feito um trabalho honesto, mas ainda existem essas condicionantes de ser uma língua essencialmente oral, ainda que com uma prática de escrita já antiga, mais muito circunscrita, e cuja superação não depende apenas do talento individual..É preciso uma longa cadeia que crie uma tradição e essa ainda não existe. É a minha opinião, falível e sujeita a revisão, mas recordo-lhe que o Mário Fonseca, um dos homens que mais sabia de literatura nesta terra, e o Oswaldo Osório são do mesmo parecer.

A crítica não irá antes nesta poesia de cariz rural, bucólico do que na poesia de raiz popular que terá eventualmente os seus méritos. Ou seja, não é empregando termos como Txintxiroti ou Santxo que temos a verdadeira poesia popular. Aqui seria válida a lição de Rilke com a sua poética fenomenológica do zurück "zu den Sachen selbst" na esteira de Edmund Husserl?
Não há nenhum desprimor no facto de a poesia ser de feição rural (que não é necessariamente bucolismo) ou popular, pois, como já disse inúmeras vezes, não são os temas ou motivos que importam. Só que no nosso caso a oralitura ocupou o lugar da tradição culta ou erudita que não havia, por força da agrafia, e tem uma força que pode ser libertadora ou bloqueadora, conforme o uso que se faça dela. Toda a obra literária autêntica é o nascimento de um mundo e a tentativa da reconquista duma origem, até pelo carácter não mediatizado e fundacional da arte. A literatura não é um mundo dentro ou ao lado doutros mundos, mas o próprio mundo, na lógica dos mundos possíveis de Leibnitz. Este tende também a ser o entendimento de Mikel Dufrenne. Aliás, quase todos os filósofos tendem a tomar o modelo artístico como modelo de descrição fenomenológica ideal. Mas, pelo excesso que comporta, nenhuma obra de arte se esgota na sua descrição ou interpretação, nem se poderá reduzir a nenhuma fenomenologia ou ontologia, porque presas ainda aos limites conceptuais, como já intuíra o grande Platão.

Que dificuldades surgiram nesse processo e como foram ultrapassadas?
As dificuldades, para além daquelas inerentes a qualquer acto tradutório, decorreram quer do uso de um vocabulário inabitual, ainda que sem intuitos preciosistas, quer da estrutura dos meus poemas, pela sua feição barroquizante, cavando quase que intermináveis relações de subordinação, que muitas vezes tornam o sentido do texto português um tanto ou quanto escorregadio, sendo óbvio que essas particularidades foram mantidas na tradução, ainda que o uso recorrente e metódico à paráfrase veio, bastas vezes, iluminar o texto original português.Com a fidelidade que me foi possível, tentei um equivalente poético em língua caboverdiana, nas condições que o estádio literário dela permite. Um dos cuidados, quando isso foi possível, foi o de evitar ao máximo o recurso à importação de termos portugueses, preferindo largamente a paráfrase, o que, se implicou um acréscimo de dificuldades, aguçou o engenho do poeta tradutor. Penso que o resultado é satisfatório, embora seja essa uma versão provisória, até porque muitos desses poemas já têm traduções alternativas.

Antes de ti, Eugénio Tavares, Sérgio Frusoni, Luiz Romano e outros empreenderam traduções do português para o cabo-verdiano e vice-versa. Pudeste valer-te dessas experiências?
Não segui a via de nenhum deles, pois eu faço o meu próprio caminho. Mas, todos eles, estiveram comigo em espírito.

A estrofe "Pôr em verbo o que vida fora?/Em dramático lance contar do assombro?/Ou por subtil engenharia escavar o ínfimo?" traduzes assim para o caboverdiano: "Poi na verbu kel ki foi vida?/Papia di spantu nun ikilíbriu dramátiku?/Ô rabolbe kel más misgu através di enjinharia dilikadu?". Nesta tradução, como em todas do teu livro, evitaste, ao máximo, como dizes, o recurso à importação de termos portugueses. Será este o diapasão por que terão que afinar os futuros tradutores?
Há um perigo enorme de descaracterização da língua caboverdiana por via da língua lexificadora, o português. Se na criação directa ainda se aceita uma espécie de «nobilitação», na tradução, convivendo as duas línguas lado a lado, senti a necessidade de afastar-me o mais que pude e a estrutura da língua de chegada e do poema suportavam. Embora contendo muitas opções ainda em aberto, penso que este livro, que foi um trovão aquando da sua primeira publicação, poderá vir a marcar o campo da literatura em língua caboverdiana, quanto mais não seja por ser o primeiro livro do nosso cânone literário a ser publicado nas duas línguas nossas.

Um crítico literário afirmou que José Luiz Tavares é um génio da poesia cabo-verdiana. Calças esse sapato?
Primeiro: a mim não me enganam com guloseimas, até porque, se me conhecessem bem, saberiam que gosto mais de coisas ácidas.
Segundo: poderia calçar, até porque tenho dois bons pés, que o tempo ajudou a diminuir a tosquidão de muito caminhar por cutelos, matos e ribanceiras. Daí ser pouco dado a doçuras: nem as poéticas, nem as que me atiram ao ego. No entanto, invertendo anatomicamente este célebre verso de Ezra Pound, «Quero uma coroa/que não esmague a cabeça», preferia antes umas sandalinhas que me não apertassem muito os pés e me permitissem sentir o ar, a poeira e o visco do mundo. Portanto, nada de mumificações extemporâneas: o que pode ter acontecido é eu ter esforçado mais e falhado menos. Mas nem isso é garantido.

Dizes que o decisivo na arte é o domínio dos meios de expressão que confere grande grandeza ou menoridade ao artista. Para Borges o que confere grandeza a uma obra é o encanto. Ele diz que se uma obra não agrada o autor falhou. No teu caso: escreves para agradar a crítica ou ao comum dos leitores?
O que é válido para Borges pode não ser válido para outros escritores, até porque já lá vai o tempo das poéticas prescritivas. Mais: o desagrado pode até ser o efeito procurado e o factor de julgamento do conseguimento duma obra. Bastaria pensarmos nas vanguardas artísticas do início do século XX ou na estética negativa de Theodor Adorno. O que eu entendo é que cada escritor desenvolve uma espécie de poética particular e tende a laborar nesse âmbito, ainda que, bastas vezes, a criação possa não corresponder à teorização autoral. Eu não escrevo para a crítica nem para o leitor, comum ou não. Aliás, estou para saber o que é um leitor comum de poesia. Quem lê poesia nestes tempos só pode ser um leitor incomum. Eu escrevo os livros que sinto necessidade de escrever e que o meu pouco talento e muito trabalho permitem. Arrumar o mundo duma forma particular, considerando esse empreendimento sobretudo como um esforço não só estético, mas também ético, é o meu fito.

Faleceu recentemente, José Saramago, o único prémio Nobel da língua portuguesa. O que significa esta perda para a lusofonia e quando teremos o próximo prémio Nobel?
José Saramago ergueu, nalguns dos seus romances, alegorias civilizacionais poderosíssimas, numa linguagem que tinha a densidade do magma incandescente. Mas isso não impediu que uma trupe de bestas e anões ignóbeis tenha tentado cuspir no seu cadáver, pelo facto de não ter rezado pela mesma cartilha. Mas são sempre assim as bestas em todo o lado: tentam conspurcar com o seu veneno e a sua pequenez quem, mesmo morto, continua a ser mais vida do que elas. Quanto à perda que a sua morte representa para a lusofonia, creio que apesar da invulgar energia criativa para a idade, o essencial da sua obra já estava fixado, e o que fica sobreviverá ao julgamento do tempo. O próximo Nobel para a língua? Vou telefonar aos velhinhos da academia sueca a tentar saber. De todo o modo, espero que não se esqueçam desses nossos grandes talentos indígenas que povoam a bloga e as caixas dos comentários. A pátria ficar-lhes-ia agradecida.

Acabas de vencer o Prémio de Poesia Cidade de Ourense, pelo teu trabalho "As irrevogáveis Trevas". Além da dotação pecuniária dá-te direito à publicação do livro na mais importante editora da Galiza, a Espiral Maior. É mais um prémio, ou são novas portas que se abrem?
É preciso relativizar um pouco essas coisas. O mundo não começa nem acaba na ponta da minha caneta, embora tenha a consciência (se calhar demasiada) de que tenho levado duma forma consistente e meritória o nome e a literatura do meu país a muitos espaços geográficos e culturais onde quase nenhum escritor tinha chegado individualmente. Se isso alegra as pessoas, enche-lhes de orgulho, aumenta a sua estima e o seu sentimento de pertença, a mim dá-me mais energia, crença e motivação para prosseguir.

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Autoria:António Monteiro,3 jul 2010 23:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  3 jul 2010 23:00

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