A estreia do documentário “Vozes Solidárias: Um outro canto à esperança” deu o mote a esta conversa com Leão Lopes, realizador e professor no Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura. O docente passa em revista a história do audiovisual e das artes cénicas em Cabo Verde e lança um olhar sobre as suas principais obras.
Expresso das Ilhas – Como vai o audiovisual em Cabo Verde?
Leão Lopes – É uma pergunta difícil, porque não sei como é que está. Já disse isso várias vezes: nós começamos bem. Após a independência havia uma sensibilidade política para a área, tanto é que das primeiras instituições que se criou na altura foi o Instituto Cabo-verdiano do Cinema. Não sei se foi intuição, mas o que mais me estranha em todo o nosso processo é como é que havendo essa sensibilidade e de termos começado bem, termos depois regredido e até ainda não conseguimos recuperar essa experiência para relançar o país nas dinâmicas das indústrias criativas ligadas ao audiovisual que hoje são incontornáveis. Por exemplo, ainda a semana passada ouvimos o sr. primeiro ministro a falar mais uma vez sobre a indústria criativa. Isto parece um paradoxo, porque isto não tem expressão no Orçamento do Estado, o ministério da Cultura não tem esses meios expressos e não há política, de facto, nem educativa, nem cultural expressa ou visível para o sector. E muito menos linhas de financiamento que possam estimular os produtores e os realizadores, sobretudo os mais jovens, que poderiam estar a trabalhar neste momento serenamente e a produzir esse património audiovisual de que bem precisamos de afirmar aqui em Cabo Verde. As coisas estão em estádio de omissão que não vejo onde isto poderá desembocar, mesmo quando há um discurso político animado à volta das indústrias criativas. Eu sei que quando se fala das indústrias criativas em Cabo Verde, está-se a pensar eventualmente é na música. Mas a música tem o seu caminho, tem a sua história e vai por si própria…
Nos anos 90 houve grandes produções, mas depois não veio muita coisa.
Como disse, começamos relativamente bem. Eu costumo dizer que não temos que pretender que Cabo Verde tenha os meios que dificilmente poderá ter à disposição de algum sector. O país tem as suas prioridades, mas isso não quer dizer que não havendo meios não se crie políticas para o sector do audiovisual, porque há várias formas de mobilizar meios. Há muita curiosidade à volta de Cabo Verde nesse sector: há realizadores que já fazem carreira, como o Guenny Pires, por exemplo. Há o Silvão que é um dos realizadores mais activos de Cabo Verde. É uma pena ele não estar a trabalhar todos os dias. Há o Paulo Cabral que é um empenhadíssimo, mas que sofrimento é que esse rapaz tem para fazer um trabalho. Sei que vai haver no mês de Maio um festival internacional de cinema dedicado a Cabo Verde em Washington. Com certeza vão requisitar a presença de obras cabo-verdianas e de autores cabo-verdianos, mas de qualquer maneira parece um paradoxo que uma produtora dos Estados Unidos organize um festival de cinema de Cabo Verde (risos). Aliás, Cabo Verde tem uma história interessante de cinema. Não do cinema comercial, é verdade, mas do cinema experimental, amador. Não só internamente, mas também lá fora com imigrantes que começaram muito cedo a experimentar a imagem. Gente nossa da diáspora que se aproximou de Hollywood, que fizeram carreira em Hollyhood; não só como actores, mas também como técnicos. Enfim, há uma história interessante que valia a pena ser valorizada como património deste país e que poderia reflectir naquilo que podia-se estar a fazer hoje através desses jovens que estão empenhados, que gostam, que querem e que fazem esforço para se formarem. Tivemos no nosso cursos [M_EIA (Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura)] vários jovens profissionais com muitas potencialidades de fazer carreira…
Um outro paradoxo. Temos o caso do realizador guineense Flora Gomes que vem a Cabo Verde faz um filme sobre o Carnaval e é aplaudido em festivais internacionais.
Bom, Flora Gomes é um caso especial. A Guiné tem um palmarés extraordinário na área do audiovisual. É incrível, tu vês um país com aqueles problemas, mas quando vês aquele país através do cinema de Flora Gomes, é completamente outra coisa. E Flora Gomes conseguiu isso para o país dele. Ele e o Sana são pioneiros do cinema guineense e têm uma história interessantíssima. Isso tem a ver com a nossa história da libertação nacional, porque eram miúdos da escola-piloto. O Amilcar Cabral tinha essa visão da importância da imagem para fazer história desse património registado à força da imagem. Amilcar era um homem de uma geração específica, tinha uma formação cultural sólida, e mesmo não tendo promovido a formação artística propriamente na geração deles, eram abertos à arte. É interessante ressaltar que no tempo de Amilcar Cabral foram produzidas imagens por equipas estrangeiras. Não foi só pelo interesse dessas equipas, mas porque havia essa sensibilidade. E o Amilcar, um homem daquela dimensão cultural, sabia a importância do audiovisual. Já imaginou se não houvesse essa sensibilidade o que é que teríamos hoje como imagem da luta de libertação? E o Amilcar pegou nesses dois e disse ‘vocês vão para Cuba estudar cinema’. Foram enviados para a escola de cinema e o Sana ficou confinado de alguma maneira à Guiné-Bissau, com as dificuldades do país, mas sei que realizou pelo menos duas longas-metragens. O Flora sediou-se fora da Guiné, criou outro tipo de relações e teve melhores meios para continuar.
O génio cabo-verdiano é mais musical, ou também representativo, no sentido de termos actores natos?
Cada povo tem o seu génio específico. O drama é quando não o trabalha, não o identifica e não se cria um sistema educativo que possa potenciar todos esses aspectos. Cabo Verde tem talentos. Estou ligado ao audiovisual como docente na área e posso confirmar que há uma particularidade na nossa cultura que tem este apelo, digamos, à necessidade de uma comunicação específica. A música, de facto, é incontornável, é reconhecida, mas nas outras áreas de expressão também isso acontece. Um povo tão pequeno mas com uma predisposição e uma facilidade em adoptar outras linguagens de comunicação, entre as quais a artística em várias disciplinas. No cinema eu não sei. Mas a história prova que sim, porque o cinema nasceu e pouco tempo depois já estava gente em Cabo Verde a experimentar. A começar lá em São Vicente, por causa da presença dos ingleses. Já fui professor lá fora e posso diferenciar esse tipo de apetência. É verdade que temos isso. O paradoxo é que que hoje, no nosso sistema educativo, isto não é trabalhado, nem politicamente valorizado sob o ponto de vista da pedagogia, técnica, etc. Aliás, só se compreende a força, o impacto da nossa música, por causa da alma da nossa gente. Não há um projecto político para a música como a gente sabe; não há um projecto educativo; não há um projecto de incentivo para a criação nessa área. Pura e simplesmente, e é isso que espanta todo o mundo. Até nos espanta a nós próprios. Isso é um paradoxo, não temos uma escola de música formal, assumida politicamente. Na área artística há só uma escola formal de educação artística em Cabo Verde. É extraordinário, e essa escola nem é pública.
Nos Estados Unidos temos o teatro da Broadway, por onde passaram grandes nomes do cinema americano. Existe em Cabo Verde essa sinergia entre o teatro e o cinema?
Eu tenho pena que isso não se tenha produzido. Pelo menos não dou conta. No início havia essa expectativa. É verdade que nos últimos anos se descobriu esse potencial cénico, tem-se trabalhado imenso em Cabo Verde, há toda essa experiência do Festival Internacional do Teatro em São Vicente. É notório o que se fez em tão pouco tempo. Temos todo o envolvimento das pessoas, iniciação de grupos informais, etc. Os resultados são interessantes a esse nível. Eu pessoalmente quando penso no cinema, estou à procura de actores para o cinema e infelizmente isso não aconteceu. A experiência de actores em Cabo Verde, quanto a mim, ficou confinada à experiência teatral e a uma determinada abordagem do teatro que não necessariamente poderá ser a minha. Tivemos, nos primórdios da independência, um bom momento do teatro em Cabo Verde, um momento experimental que teve uma ruptura lamentável. Francisco Fragoso, eu próprio fiz, mas lá está, eu ligava o audiovisual. A minha experiência era o teatro, mas muito colado ao audiovisual. Até misturar os mídia e fazíamos coisas experimentais com resultados curiosos. Hoje isso é difícil. Apesar de o teatro estar neste momento com esta pujança popular, dificilmente você encontra um ou outro actor desta geração que já faz teatro ou outra coisa ligada às artes cénicas. É uma coisa rara. Normalmente quando começo a desenhar um personagem que eu quero encontrar aqui em Cabo Verde, eu vou cair fora do mundo do teatro. É uma coisa que não devia ser. Às vezes, para nós da área do cinema, quando estamos perante o dilema de termos actores até interessantes, temos dificuldade em usá-los para o cinema. Para preparar esse actor, para dirigi-lo cria às vezes problemas. Assim, muitas vezes recorremo-nos a um não experiente e conseguimos melhores resultados. Mas não é só por questões técnicas. Há outros aspectos que se ligam ao cinema que tem a ver com fotografia e outras coisas que você não precisará necessariamente de um actor de palco. Mas talvez proximamente o teatro posso vir a dar esse tipo de actores que a gente possa ir buscar para o cinema.
É realizador do filme Ilhéu de Contenda, a primeira longa-metragem cabo-verdina e depois assinou vários documentários. Pode-se falar de uma filmografia?
Eu não falaria propriamente de uma filmografia, porque infelizmente ainda não é possível construir uma obra cinematográfica num país como este. São trabalhos relativamente pontuais que vou concretizando à medida que surgem as oportunidades. Ilhéu de Contenda é um marco de alguma maneira, porque foi um trabalho de grande impacto técnico-financeiro. Realizar uma longa-metragem naquela altura [1993] foi uma produção industrial bem significativa para Cabo Verde. Ainda não havia o digital e às vezes quando penso nessa realização, custa-me acreditar que passei por esta experiência. Foi um marco extraordinário, até porque, ainda que pouco falado, eu fiz uma série televisiva com o filme que nunca foi passada em Cabo Verde. São três episódios com a duração de três horas. Inclusive, quando me dei conta da natureza do contrato que assinei, fiquei assustado, porque não sabia o que é que isso implicava – fazer um filme e ao mesmo tempo uma série. Trabalhei com dois guiões, implicando uma complexidade redobrada. Tenho pena que a série nunca tinha sido passada em Cabo Verde. Em outros países eu não sei.
Porque é que nunca se mostrou a série em Cabo Verde?
Nunca percebi porquê. Tenho imensa pena que esta série nunca tenha sido vista em Cabo Verde.
Teixeira de Sousa, o autor do romance em que se baseia o seu filme, era ainda vivo na altura. Chegaram a conversar?
Sim, convidei-o, ele esteve uns dias comigo durante as filmagens. Ele acompanhou-nos também durante a escrita do guião; discutimos uma série de ideias, de propostas que eu fazia. Ele foi um companheiro fora de série.
Já realizou vários documentários, entre eles “S. Tomé – Os Últimos Contratados”, que foi exibido no Vaticano em Novembro de 2011. Como surge a ideia de fazer um documentário sobre São Tomé?
Como disse, os meus documentários têm surgido pontualmente. No caso de “Os Últimos Contratados”, eu tinha sido convidado para conhecer São Tomé e conhecia a nossa história dos contratados para São Tomé. Já no meu regresso, senti que tinha de regressar. Foi uma urgência e qualquer um de nós teria este tipo de impulso. Realmente, organizei todos os meios de produção, voltei a São Tomé e correu tudo bem. Normalmente os meus trabalhos têm decorrido relativamente bem, apesar dos constrangimentos. Eu penso que tem a ver com a necessidade de fazer determinadas coisas. Acho que quando surge o impulso interior que é necessário fazer, as coisas conjugam-se de alguma forma para se conseguir, embora o audiovisual seja uma área que exige uma mobilização financeira significativa, para este país e para nós. Mas vai-se fazendo.