Carol Castiel: A herança judaica é parte da identidade cabo-verdiana

PorAntónio Monteiro,8 ago 2015 6:03

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A presidente do Projecto de Preservação da Herança Judaica em Cabo Verde, Carol Castiel, encontra-se no arquipélago para dar seguimento aos trabalhos de reabilitação e preservação dos cemitérios judaicos existentes em Santiago, Santo Antão e Boa Vista. Em conversa com o Expresso das Ilhas, Carol Castiel faz o balanço das obras realizadas que abrangem não só o restauro dos vestígios físicos, como a parte documental, visando preencher a lacuna no campo da investigação sobre a presença judaica.

 

 

Expresso das Ilhas – Como decorre o projecto para a preservação da herança judaica em Cabo Verde? 

Carol Castiel – Estou em Cabo Verde desde 24 de Julho e o objectivo desta visita é dar seguimento ao nosso trabalho de reabilitação e preservação dos cemitérios judaicos nas três ilhas com maior herança hebraica. Aqui, em Santiago, as campas judaicas que foram restauradas no Cemitério da Várzea, em Maio de 2013. Em Santo Antão, Penha de França e o Cemitério de Ponta do Sol. E na Boa Vista vamos averiguar a situação do cemitério judaico que está em vias de reabilitação. Desde 2013, muita coisa positiva tem acontecido. O Projecto de Preservação da Herança Judaica em Cabo Verde (PPHJCV) tem conseguido apoio do World Monuments Fund (WMF), uma organização sem fins lucrativos sediada em Nova Iorque, cujo objectivo é preservar monumentos no mundo inteiro. Eles têm um departamento que trata dos projectos da herança judaica.  O WMF assinou um acordo com o PPHJCV, especialmente na área de documentação. Portanto, a nossa organização está em estreita parceria não só com o governo e as câmaras municipais de Cabo Verde, mas também com os descendentes e todos os amigos que queiram preservar esta parte da identidade cabo-verdiana que é a parte judaica. Neste sentido, queremos não só restaurar os vestígios físicos como os cemitérios, mas também documentar a história dos judeus, vindos principalmente de Marrocos (Rabat, Tanger, Tétouan e Mogador - actual Essaouira), porque eles foram realmente alguns dos alicerces das comunidades judaicas em Cabo Verde no século XIX. Então o World Monuments Fund financiou a contratação de uma historiadora que esteve o ano passado em Cabo Verde. Ela chama-se Ângela Sofia Benoliel Coutinho, é cabo-verdiana descendente de famílias judaicas e reside actualmente em Lisboa. Com o financiamento do World Monuments Fund, através do Projecto de Preservação da Herança Judaica em Cabo Verde, tem consultado arquivos em Portugal, em Londres e, ultimamente, em Marrocos e Gibraltar para justamente conhecer melhor a pista desses primeiros imigrantes. Ela pretende, com o nosso financiamento, escrever um livro que irá seguramente beber nos outros livros que já foram escritos sobre essa temática. Por exemplo, o livro da Cláudia Correia que faz um inventário da presença judaica, mas que ainda não está muito completo. Portanto, a historiadora Ângela Benoliel Coutinho vai continuar esse trabalho já feito, tentando alargá-lo com recurso aos materiais espalhados pelos arquivos. E naturalmente vai fazer outras leituras históricas. Estou agora em Cabo Verde com o representante do World Monuments Fund, o Sr. Benjamin Jeffs que é um arqueólogo perito na preservação dos monumentos históricos, especialmente de cemitérios. Ele tem trabalhado no mundo inteiro, especialmente na Índia, nesta área especifica. Ele traz um valor acrescido ao trabalho desenvolvido pelo Projecto para Preservação da Herança Judaica. Transmitimos os seus conselhos às câmaras municipais que estão a trabalhar connosco na restauração dos cemitérios. Porque a nossa organização, apesar de estar sediada nos Estados Unidos, trabalha estreitamente com os parceiros locais. Nomeamos agora a Sofia Oliveira Lima como representante do Projecto de Preservação e temos planos de expandir. Mas temos uma rede informal grande de descendentes e de pessoas amigas do Projecto. Portanto, o nosso trabalho é a preservação física dessa herança e dar seguimento ao trabalho que começamos. Fui agora a Santo Antão para me inteirar dos trabalhos em Ponta do Sol e Penha de França e constatei que estamos muito avançados naquela ilha. Daqui a pouco  [a entrevista foi realizada no dia 30] eu e o Benjamin [Jeffs] vamos a Boa Vista falar com a autarquia local e o nosso empreiteiro sobre o curso dos trabalhos. Portanto, estamos aqui para superar os problemas existentes, para que possamos fazer realmente um trabalho duradouro que possa resistir às intempéries do tempo e, por outro lado, temos planos de manutenção para ajudar o país a conservar esses monumentos. Estamos interessados em que esses monumentos sejam abertos ao público para que sejam mais facilmente compartilhados com turistas que queiram conhecer a herança judaica em Cabo Verde.

 

Os judeus de Cabo Verde vieram maioritariamente dos Marrocos. As autoridades desse país têm conhecimento do Projecto de Preservação da Herança Judaica?

Dou-lhe apenas um exemplo de um caso extraordinário. No mês de Abril acompanhei a Marrocos a historiadora Ângela Coutinho e ali encontramo-nos com o nosso patrocinador, Sr. Andre Azoulay, que é membro do nosso conselho e também  conselheiro do Rei dos Marrocos.  Foi uma visita muito frutífera, a Ângela Coutinho conheceu o arquivista do Reino de Marrocos e tivemos vários encontros com académicos do país. Tivemos também um encontro com o ministro dos assuntos relacionados com os marroquinos residentes no estrangeiro, Sr. Anis Birrou. Ele ficou muito sensibilizado com o Projecto de preservação da Herança Judaica em Cabo Verde, por saber que há muitos descendentes de judeus marroquinos aqui no país, que são nossos parceiros e dos quais dependemos para assistência e para escrever a história. Então ele convidou, através da nossa organização, uma delegação desses descendentes cabo-verdianos, os quais tive o prazer de acompanhar a Marrocos no mês de Junho. Acho que é um gesto muito bonito. O ministro vê os descendentes dos judeus marroquinos em Cabo Verde como se fossem eles mesmos diáspora marroquina. Foi de uma generosidade incrível. Queria dar a esses descendentes cabo-verdianos a oportunidade de conhecerem os lugares de memória dos seus antepassados. Fomos a expensas do Reino de Marrocos visitar as cidades de Rabat, Tanger, Tétouan e Mogador (actual Essaouira). Foi uma experiência muito gratificantes para todos nós. Os próprios marroquinos ficaram muito impressionados com a nossa visita. Penso que esta aproximação tem vantagens que nem mesmo podemos avaliar em termos de benefícios e em termos de cooperação Cabo Verde/Marrocos. Isto é uma outra história, mas Cabo Verde podia reforçar esses laços já que existem agora voos directos entre Casablanca e Praia. Os descendentes dos judeus marroquinos são mais um laço importante que liga os dois povos. 

 

Durante esta sua estadia em Cabo Verde visitou primeiramente os dois cemitérios judaicos de Santo Antão. Como vão os trabalhos?

Os projectos em Santo Antão estão a decorrer de uma forma maravilhosa. O nosso parceiro principal é obviamente a Câmara Municipal da Ribeira Grande que tem no terreno uma equipa extraordinária. Quando estivemos aqui, em Maio de 2013, propusemos à equipa camarária o projecto. Eles apresentaram o projecto que foi aprovado pelo conselho de administração e logo de seguida começaram a trabalhar. Já têm dois terços das obras terminadas. Eles recuperam Penha de França que tinha sido anteriormente recuperado graças ao empenho de um grande amigo meu, Januário Nascimento, parceiro desde o início do nosso projecto através da organização a que preside ADAD (Associação para a Defesa do Ambiente e Desenvolvimento) e com financiamento da PROMEX (Centro de Promoção Turística, do Investimento e das Exportações, actual Cabo Verde Investimentos). Mas isso foi em 1998. Desde então o cemitério de Penha de França deteriorou-se. Então o Projecto de Preservação da Herança Judaica entrou para recuperar esses túmulos. E esperamos que essa recuperação seja mesmo para durar. Portanto, não posso sublinhar suficientemente o aspecto da manutenção. Sei que todas as câmaras entendem isso, mas nós queremos reforçar esta ideia. Porque é muito bonito cortar uma fita numa cerimónia de inauguração, mas o mais importante é o seguimento: preservação e manutenção, para que os cabo-verdianos, os operadores turísticos, as câmaras municipais e o governo possam conservar esses monumentos. Para que o país possa acolher turistas e desses turistas possa receber recursos para que o projecto seja auto-suficiente. Portanto, o projecto em Santo Antão está a decorrer lindamente e há forte engajamento da autarquia local. O presidente Orlando Delgado prometeu que vai submeter ao governo uma proposta para declarar os cemitérios judaicos de Ribeira Grande como património municipal cultural. Seria óptimo se o governo aprovasse. Na reunião que mantivemos com o presidente da Câmara Municipal da Praia solicitamos ao Sr. Ulisses Correia e Silva que submetesse ao governo a mesma proposta. A ideia é proteger legalmente esses monumentos para garantir a sua preservação no tempo.

 

Os nossos investigadores acentuam o nosso passado escravocrata, negligenciado a herança judaica em Cabo Verde. Com razão?

Eu penso que o judeu e o cabo-verdiano, independentemente se é de descendência judaica, têm muita coisa em comum. O judeu é um povo da diáspora, o cabo-verdiano é um povo da diáspora. O judeu é um povo resistente e o cabo-verdiano é também um povo resistente. Ambos têm uma maneira de sobreviver, onde quer se encontrem. Podemos estabelecer mais paralelos. E é justamente o que o Projecto de Preservação da Herança Judaica quer fazer aqui: tentar preencher esta lacuna no campo da investigação. Por isso é que estamos a promover a documentação da presença judaica. Muita gente conhece mal a nossa história: pensam que os judeus chegaram a Cabo Verde no século XVI, que eram cristãos novos, etc. Não, o nosso projecto está mais focalizado no século XIX, quando esses judeus vieram principalmente dos Marrocos e Gibraltar. Ao contrário dos cristãos novos, eles não escondiam a sua identidade. Eram: Cohen, Levy, Benchimol, Wahnon, Benoliel, Pinto, etc. De facto, esses judeus chamados sefarditas eram pouco numerosos, mas deram um contributo muito desproporcional ao seu número. Então nós vimos que há uma lacuna que ainda não foi preenchida, a despeito da historiadora Cláudia Correia que fez um trabalho pioneiro de inventariar a presença judaica em Cabo Verde. Mas não é suficiente. Porque é que não se ensina nos manuais escolares esta história? Depois da conclusão da documentação da presença judaica em Cabo Verde a cargo de Ângela Coutinho e outros, gostaríamos de disponibilizar esses estudos para que se calhar o próprio Ministério da Educação passasse a incluir nos manuais um pequeno capítulo dando conta que especialmente no século XIX vieram judeus dos Marrocos e Gibraltar e deram o seu contributo para este país. David Benoliel é citado no livro do Sr. José Vicente Lopes sobre o ex-presidente Aristides Pereira. Ele disse: “qualquer que fosse o administrador que o governo de Portugal destacasse, mal ele chegasse estava automaticamente subordinado ao David”. David Benoliel abastecia a ilha da Boa Vista. É recordado na sua ilha como um homem bondoso, que deu emprego a muitos cabo-verdianos. Por isso o Projecto de Preservação da Herança Judaica quer dar o seu pequeno contributo para o preenchimento do capítulo da identidade múltipla do cabo-verdiano. É certo que o cabo-verdiano é resultado da mestiçagem entre portugueses e africanos, mas tem também essa herança judaica.

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Autoria:António Monteiro,8 ago 2015 6:03

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  10 ago 2015 8:10

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